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Guias e Dicas
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Teologia do Antigo Testamento - Eugene Merrill, Manuais, Projetos, Pesquisas de Teologia

Análise dos livros bíblicos do Antigo Testamento

Tipologia: Manuais, Projetos, Pesquisas

2017
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Compartilhado em 09/07/2017

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Baixe Teologia do Antigo Testamento - Eugene Merrill e outras Manuais, Projetos, Pesquisas em PDF para Teologia, somente na Docsity! E u g e n e H . M e r r i l l T E O L O G IA D O A N T I G O T E S T A M E N T O E u g e n e H . M e r r i l l T E O L O G I A D O A N T I G O T E S T A M E N T O T R A D U Ç Ã O H E L E N A A R A N H A R E G I N A A R A N H A A aliança de fidelidade de D e u s .........................................................7 9 A confiabilidade de D e u s ....................................................................... 81 A paciência de D e u s ..................................................................................82 A raiva/ira de D e u s ................................................................................... 83 O perdão de D e u s .................................................................................... 84 Capítub três .................................................................................................................................... 87 A REVELAÇÃO DE DEUS A revelação pela Palavra........................................................................................... 87 A revelação por meio de visões e so n h o s.......................................................... 88 A revelação por meio do anjo de Ia v é ................................................................9 2 A revelação por meio dos nomes d ivinos......................................................... 95 A revelação por meio dos profetas.......................................................................9 7 A revelação por meio dos sinais........................................................................... 106 A revelação por meio da so rte ...............................................................................109 Capítub quatro............................................................................................................................. 111 As obras de D eus C ria çã o ............................................................................................................................ 111 Julgam ento.....................................................................................................................118 Salvação e livram ento................................................................................................ 123 R edenção........................................................................................................................ 129 Capítub cinco................................................................................................................................ 135 O s propósitos de D eus Israel e os propósitos de D e u s .............................................................................. 135 O reinado de D e u s ................................................................................................... 137 Criação e soberania divina..................................................................... 137 História e soberania d ivina.................................................................................... 144 O território da soberania divina.......................................................... 149 A hierarquia da soberania divina.........................................................150 A com unhão de Deus com a hum anidade..................................................... 155 Com unhão com o o motivo da criação ..............................................155 Com unhão no despertar da Q u ed a....................................................156 Com unhão por intermédio do governo h u m an o ........................ 158 Com unhão por intermédio do povo escolhido.............................160 Segunda P a r t e ............................................................................................................................. 169 H umanidade: à imagem de D eus Capítub seis...................................................................................................................................... 171 A criação da humanidade A criação e o propósito da hum anidade.......................................................... 171 A criação das narrativas............................................................................173 A imagem de D e u s ................................................................................... 175 A criação da hum anidade.......................................................................179 A natureza da hum anidade.....................................................................................183 A teologia do indivíduo...........................................................................183 A teologia da com unidade..................................................................... 188 A teologia do c l ã .........................................................................................191 A teologia da tr ib o .....................................................................................192 A teologia das n ações................................................................................ 194 A teologia da hum anidade..................................................................... 196 Capitub sete.................................................................................................................................... 2 0 3 A Q ueda da humanidade A narrativa da Q u e d a ............................................................................................... 2 0 3 A possibilidade de uma Q u e d a ............................................................2 0 4 O resultado da Q u ed a ..............................................................................2 0 6 A identidade do ten tad or.......................................................................2 0 9 A morte e a vida fu tu ra ...........................................................................................2 1 2 A Queda e a pecaminosidade h u m an a ............................................................. 2 1 9 A alienação do p ecad o ..............................................................................2 1 9 O s termos técnicos para pecad o...........................................................2 2 2 O pecado e os domínios concorrentes............................................. ,2 2 5 Capítulo oito ................................................................................................................................... 2 2 9 A redenção da humanidade O princípio e prática do sacrifício ......................................................................2 3 0 O material para o sacrifício ............................................................................... 2 3 4 Aliança e redenção .................. ................................................................................. 2 3 9 O protoevangelium...................................................................................................... 2 4 7 C on clu são ..................................... , ................................................................................2 4 9 Capítulo nove..................................................................................................................................251 A criação de uma nação A promessa de um povo especial........................................................................ 251 A fundação de uma nação ............................................................................... 2 5 2 A libertação da n a çã o ..............*................................................................................258 O sentido das pragas .................................................................................258 A aliança do S in a i...................................................................................................... 2 6 7 T erceira Pa r t e ...........................................+............................................................................... 2 7 3 O R eino de D eus Capítulo dez .....................................................................................................................................275 D eus e o mundo O conceito de R e in o .................................................................................................2 7 6 O conceito de lugar sagrado..................................................................................2 7 9 O jardim do É d e n .....................................................................................2 7 9 Expulsão do lugar sagrado.......................................................... 280 Renovação escatológica do lugar sagrado.................................. 281 Altares e santuários como lugares sagrados...............................284 O templo como lugar sagrado................................................... 287 A mediação do Reino................................................................................ 289 O conceito de aliança.................................................................. 290 A resistência das nações ao Reino........................................................... 294 Os reinos deste mundo...............................................................294 Os profetas e as nações..............................................................................298 Amós.............................................................................................298 Isaías.............................................................................................. 299 Naum........................................................................................... 301 Jeremias......................................................................................... 301 Sofonias.........................................................................................304 Ezequiel.........................................................................................304 Daniel............................................................................................307 Restituição do Reino................................................................................. 313 Os salmos sobre a realeza do Iavé..............................................313 Os salmos reais.............................................................................316 Conclusão .................................................................................................. 317 Capítulo onze.............................................................................................................319 Df.us e Israel A aliança mosaica.......................................................................................319 Os Dez Mandamentos...............................................................................323 O primeiro mandamento............................................................324 O segundo mandamento.............................................................326 O terceiro mandamento..............................................................330 O quarto mandamento................................................................332 O quinto mandamento................................................................334 O sexto mandamento.................................................................. 334 O sétimo mandamento............................................................... 335 O oitavo mandamento................................................................ 336 O nono mandamento................................................................. 337 O décimo mandamento.............................................................. 337 O livro da aliança.......................................................................................338 A lei do altar................................................................................. 338 Outras leis.....................................................................................340 A cerimônia da aliança................................................................ 342 Israel como uma comunidade cultual.......................................342 O lugar sagrado............................................................................343 As pessoas sagradas.......................................................................350 Os períodos sagrados................................................................... 356 Capítulo dezessete...........................................................................................................................525 A TEOLOGIA DOS PROFETAS DO PERÍODO PÓS-EXÍLIO O profeta D aniel......................................................................................................... 525 A competição pela soberania................................................................ 526 Os reinos deste m u n d o ........................................................................... 5 2 7 O Reino dos cé u s....................................................................................... 530 Deus com o soberano................................................................................ 531 O profeta J o e l ...............................................................................................................532 O profeta O badias...................................................................................................... 533 O profeta A g e u ............................................................................................................534 O profeta Z acarias...................................................................................................... 535 A desobediência de Israel........................................................................ 5 3 6 O julgamento de Israel.............................................................................5 3 6 A restauração de Israel..............................................................................5 3 6 O julgamento das nações........................................................................ 537 A salvação das n ações................................................................................538 A vinda do Messias ................................................................................... 539 A soberania do Iavé „ J ............................................................................... 5 3 9 O profeta M alaquias.................J................................................................................539 Q uinta parte................................................ .................................................................................5 4 3 A REFLEXÃO HUMANA SOBRE OS CAMINHOS DE DEUS Capítulo dezoito............................................................................................................................. 545 A TEOLOGIA DOS SALMOS Deus com o R e i ............................................................................................................5 4 6 A humanidade com o vice-rei de D e u s............................................................. 551 O rei m essiânico.......................................................................................................... 5 5 3 O papel do Reino de S iã o ...................................................................................... 557 A vida no re in o ............................................................................................................5 5 9 Dificuldades na vida do R e in o ............................................................................ 564 Hostilidade ao re in o .................................................................................................. 569 A fidelidade de Iavé ao R ein o ................................................................................572 Capítulo dezenove..........................................................................................................................575 A TEOLOGIA DA IJTF.RATURA DE SABEDORIA Observações introdutórias.......................................................................................575 A teologia do livro d e j ó .........................................................................................5 7 6 O problema da difícil situação h u m an a.......................................... 577 Deus e a difícil situação h u m an a........................................................ 582 A resolução da difícil situação h u m an a............................................588 A teologia de Provérbios............................................................................593 A essência da sabedoria................................................................ 594 A expressão da sabedoria..............................................................595 A função da sabedoria................................................................. 596 As manifestações da sabedoria.................................................... 597 A acessibilidade da sabedoria......................................................600 A teologia de Eclesiastes............................................................................602 A teologia do livro Cântico dos Cânticos...............................................608 Capítulo vinte.............................................................................................................611 C o n c l u s ã o As premissas teológicas..............................................................................611 O método teológico................................................................................... 612 O centro teológico......................................................................................616 O Antigo Testamento e o Novo Testamento......................................... 617 Prefácio Há muitos anos, admoesto meus alunos, mais que meio a sério, dizendo que a teologia bíblica é “um jogo do homem idoso”. Com esse comentário, quero dizer que a teologia pressupõe tantas outras disciplinas e um acúmulo tão grande de conhecimento que poucos estudiosos estão preparados para empreender essa tarefa, a menos que tenham investido longos e árduos anos à preparação dessa realização. Antes, a teologia bíblica é como o topo de uma pirâmide, o toque final de um edifício consistindo de camada sobre camada de aprendizado que fornecem a fundação de método e de sentido. Antes de tudo, é uma módica familiaridade com o próprio conteúdo bíblico, perceber a totalidade e as particu­ laridades dele. Para fazer isso bem, deve-se ter um domínio competente das linguagens dos textos bíblicos; pois declarar uma compreensão da literatura que depende só das traduções e das interpretações de outros, por melhores que se­ jam, tende a viciar qualquer senso de autoridade que o teólogo traga para sua alegação. Por fim, princípios sólidos de exegese e de hermenêutica estão entre outras ferramentas que devem sustentar esse estudo tanto quanto uma profunda familiaridade com o ambiente da Israel do Antigo Testamento — o cenário, a história e a interação com as pessoas e com as culturas do mundo do Oriente Próximo da Antiguidade. De um lado, seria presunção minha fazer a absurda afirmação de que domino essa díspar gama de conhecimento; todavia, de outro lado, os imperativos do tipo agora ou nunca da vida chegam inexoravelmente quando a pessoa deve fazer o melhor que pode com os recursos que tem. Muitas teologias nascem prematuramente, sem a moderação e o amadurecimento da gestação completa e, por isso, ficam aquém de seu potencial. Outras teologias nunca vêem a luz do dia, pois (para continuar com a metáfora), embora bem concebidas, morrem no 16 TEOLCX;iA IX ) ANTIGO TESTAMENTO Que o Deus de Abraão, Isaque e Jacó, o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo possa se agradar com esta oferenda, e que esra obra possa redundar em glória e louvor duradouros para ele. Eugene H. Merrill Capítulo um Introdução: as origens, a natureza e o estado atual da teologia do Antigo Testamento Descrever teologia como “bíblica” tende a introduzir imediatamente am­ bigüidade à disciplina, pois o adjetivo parece estar evidente ou ser redundante. Como a teologia pode ser outra coisa que não bíblica se ela é cristã (ou até mesmo judaica), uma vez que essas tradições vêem a Bíblia como sua testemu­ nha peremptória e oficial da verdade e desde que, poderíamos cogitar, a teologia não pode ser separada da Bíblia? Todavia, o adjetivo não é todo supérfluo, pois ele distingue a teologia bíblica de outras disciplinas que são ligadas ao empreen­ dimento teológico — disciplinas, por exemplo, como a teologia sistemática e histórica. Os expositores sistemático e histórico também são cuidadosamente es­ colhidos a fim de sugerir um determinado aspecto, ou impulso, do estudo teológico, aquele que enfatiza a lógica categorizando as idéias teológicas em um todo coerente, e o outro que traça o reflexo sobre essas idéias e as sínteses delas ao longo do curso da história pós-bíblica.1 Parte da confusão terminológica tem que ver com o ponto gramatical de se a palavra bíblica é subjetiva ou objetiva em sua conexão com a teologia. Ou seja, 0 termo bíblico quer dizer que a teologia está alinhada com a verdade bíblica ou apenas que ela tem origem na Bíblia? Embora idealmente essas perspectivas de­ vessem resultar em uma única e mesma conclusão do ensinamento bíblico, na prática real, com freqüência, esse não é o caso porque, embora a teologia possa ser bíblica no sentido de que ela não é anti-bíblica nem profana, ela pode conter idéias que sejam extra-bíblicas, ou seja, idéias extraídas da filosofia, da ciência, da história, da sociologia ou de inúmeras outras fontes. De qualquer modo, a 1 Para mais distinções úteis, veja Richard B. GafFin, “Systematic Theology and Biblical Theology”, W TJ 38 (1976), p. 281-99; Gerhard F. Hasel, “The Relationship between Biblical Theology and Systematic Theology”, T J 5 (1984), p. 113-27. 18 TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO teologia bíblica, quando mais bem praticada, limita sua fonte material à Bíblia, recusando-se a deixar a Bíblia dizer mais do que pretende e, ao mesmo tempo, sem negar voz à Bíblia sempre que ela tem uma mensagem a transmitir. Está claro que até aqui estamos falando mais de um método, ou estratégia, para fazer teologia que de textos teológicos e a exposição deles. A questão não é se determinada teologia é biblicamente defensável, mas se ela se origina exclusi­ vamente da Bíblia e está alinhada com os termos e as intenções da Bíblia. Em outras palavras, o método teológico bíblico apropriado é (1) aquele que não tem idéias preconcebidas a respeito da verdade bíblica; (2) aquele que se recusa a ler idéias teológicas extrínsecas no texto; e (3) aquele que deixa a Bíblia falar por si mesma em cada estágio de seu desenvolvimento, tanto do ponto de vista canônico como histórico. Isso levanta a questão de uma metodologia mais abrangente que dedica atenção especial ao cânon e à história, assuntos introduzidos sumariamente aqui e desenvolvidos de forma mais completa mais adiante. Cânon sugere algo fixo e estático, quer dizer, algo sincrônico, ao passo que história, obviamente progres­ siva por definição, deve ser entendida como diacrônica. O cânon do Antigo Testamento consiste de uma coleção de textos sagrados julgados divinamente inspirados pelo judaísmo e pela igreja e, por isso, autorizados, mas uma coleção que permanece plana, por assim dizer, sem nenhum sinal óbvio de movimento ou direção, apenas uma coleção per se. Não obstante, a leitura atenta desses textos revela que eles estão longe de não ter vida e de serem estáticos. Eles não podem, pela própria natureza de sua condição de textos revelados, ser expandi­ dos nem diminuídos — nesse sentido, eles são inflexíveis — mas eles, do início ao fim, transmitem um fluxo histórico dinâmico. O Antigo Testamento, em um exame atento, trai-se pelo que realmente é, uma narrativa vibrante e trans­ formadora de vida que tem um início, uma trama, um desenlace e uma con­ clusão (pelo menos, uma tentativa de conclusão). O sincrônico (cânon) e o diacrônico (história) devem ser reconhecidos jun­ tos como aspectos parelhos e complementares do método teológico bíblico apropriado. Em um ponto mais apropriado deste estudo trataremos o método como um todo, mas mesmo nesse estágio inicial seria útil oferecer, pelo menos, definições breves de termos metodológicos fundamentais e algumas sugestões de como os conceitos que os termos representam se relacionam uns com os outros. Assim que o termo cânon é trazido ao primeiro plano, apresentam-se diver­ sas questões. O que o termo cânon ou qual cânon você tem em mente? Os INTRODUÇÃO: AS ORIGENS, A NATUREZA E O ESTADO ATUAI. DA TEOLOGIA DO AT 21 Muitos estudiosos estão certos em distinguir entre essa compreensão abrangente de teologia bíblica e seu uso técnico moderno; todavia, é melhor considerar que a guinada mais recente aludia à teologia bíblica se tornar um movimento separado e distinto da teologia em geral, além de entender como e por que isso ocorreu. É lugar-comum iniciar a argumentação com um jovem estudioso da Universidade de Altdorf, Alemanha, que, como parte de seu teste de admissão para a faculdade dessa instituição, fez um discurso inaugural fa­ moso, intitulado “Sobre a Distinção Apropriada entre Teologia Bíblica e Dog­ mática e o Objetivo Específico de Cada Uma Delas” (30 de março de 1787)/ Por teologia dogmática, Johann P. Gabler referia-se ao que usualmente hoje chamamos de teologia “sistemática”. O impulso e a preocupação centrais de Gabler eram a distinção entre teolo­ gia bíblica e dogmática, tendo claramente favorecido a primeira delas. Ele apre­ senta a matéria desta maneira: Existe realmente uma teologia bíblica, de origem histórica, que transmite o que os escritores santos sentiam em relação aos assuntos divinos; existe, por sua vez, uma teologia dogmática, de origem didática, que ensina o que cada teólogo filosofa racionalmente a respeito das coisas divinas, depen­ dendo de sua habilidade ou de sua época, idade, nacionalidade, facção, escola e outros fatores similares. A teologia bíblica, como é apropriado a qualquer argumento histórico, está sempre em concordância consigo mes­ ma quando considerada por si mesma — embora até mesmo a teologia bíblica, quando elaborada por uma das disciplinas, possa ser modelada de uma forma por alguns e de outra forma por outros. Todavia, a teologia dogmática está sujeita a uma multiplicidade de mudanças juntamente com o resto das disciplinas humanas; a observação perpétua e constante ao longo de muitos séculos demonstra que isso é mais que suficiente.5 Assim, para não interpretar erroneamente a Gabler, em especial como filho do século iluminista, é importante observar que, com o uso de expressões como “origem histórica” e “o que os escritores santos sentiam em relação aos assuntos divinos”, ele não quer negar a obra de inspiração divina, mas, antes, está focando 4 Veja, de forma conveniente, “Johann P. Gabler on Biblical Theology” em Ben C. Ollenburger, Elmer A. Martens e Gerhard Hasel, ed., The Flowering o f Old Testament Theology, Winona Lake, Ind.: Eisenbrauns, 1992, p. 492-502. 5 John Sandys-Wunsch e I-aurence Eldredge, “J. P. Gabler and the Distinction between Biblical and Dogmatic Theology: Translation, Commentary, and Discussion o f His Originality”, Scottish Jotirnal o f Theology 33 (1980), p. 137. 22 TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO o fato de que a boa teologia deve ser fundamentada na história e baseada apenas nos ensinamentos dos profetas. Todavia, ele, em um óbvio exagero, acusa a teologia dogmática de ser deturpada por todos os tipos de influências filosóficas e culturais externas ou até mesmo de ser vítima delas. Sem dúvida, sua ardente adesão aos métodos da teologia bíblica alimenta seu retrato caricato e injusto de qualquer outra abordagem. No entanto, suas observações anunciadas aqui — independentemente de quão simplistas sejam — foram bem-sucedidas e deram nascimento ao movimento teológico bíblico mais que qualquer outro fator. Todavia, Gabler foi de fato um filho de sua época e inalou o ar filosófico e teológico dela. O Iluminismo estava bem estabelecido na época em que ele lançou seu ensaio; e ele, na verdade, demonstra estar ciente da nova forma de pensamento por meio de várias alusões a alguns porta-vozes do Iluminismo. A principal premissa do Iluminismo era que as instituições, as tradições e as cos- movisões assimiladas não deviam ser consideradas sacrossantas apenas por que eram comumente abraçadas. E a epistemologia subjacente, a que poderia desafi­ ar o antigo e abraçar o novo, era o racionalismo, a noção de que só se pode acreditar no que é crível.6 A observação atenta da citação de Gabler apresentada acima mostra que ela reflete esse espírito racionalista em seu ataque frontal a formas consagradas pelo tempo de desenvolver teologia e de pensá-la. No mun­ do pré-Iluminismo, reinava a teologia dogmática; agora, com a liberdade ad­ quirida por meio da inquirição racional, o dogmatismo foi destronado e substituído pelas novas formas de fazer teologia, estas não estavam fundamenta­ das na tradição eclesiástica. Uma dessas formas era a teologia bíblica. Ironica­ mente, a exata abordagem que poderia explorar e esclarecer as riquezas da revelação de Deus, de formas dantes nunca imaginadas, torna-se um subproduto de um ceticismo racional que incluía em seu programa uma diminuição do método teológico tradicional (dogmático). Ao mesmo tempo, um subproduto da comoção intelectual que varria a Europa, e especialmente a Alemanha, foi o fato de a Bíblia, como literatura e também como texto religioso, estar se tornando alvo de análise crítica quanto a sua autoria e datação/ Apenas 24 anos antes do discurso de Gabler, Jean Astruc, secular francês, apresentou a idéia para um romance no qual Moisés, embora 6 Veja, por exemplo, W. T. Jones, A History o f Western Philosophy, Nova York: Har- court, Brace and Company, 1952, p. 805-10. 7 Para uma história adequada da chamada abordagem crítica-histórica do Antigo Testa­ mento, veja R. K. Harrison, Introduction to the Old Testament, Grand Rapids: Eerd- mans, 1969, p. 3-82. INTRODUÇÃO: AS ORIGENS, A NATUREZA F. O ESTADO ATUAL DA TEOLOGIA DO AT 23 tenha escrito o livro de Gênesis, usou vários documentos pré-existentes para escrevê-lo e de que, nem sempre, esses documentos estavam em harmonia uns com os outros. J. G. Eichhorn e outros críticos seguiram essa linha e expandiram a hipótese documentária a ponto de a autoria de nenhum dos livros do Pen- tateuco ser atribuída a Moisés, sendo todos considerados um trabalho posterior de juntar fragmentos de tradições editados por redatores pós-exílicos. Um sécu­ lo depois de Gabler, Julius Wellhausen deu os retoques finais na hipótese, hipó­ tese essa que ainda exerce enorme influência no estudo do Antigo Testamento.8 Devemos apresentar o ponto aqui de que a bibliologia (a questão da origem e da natureza da Bíblia) não pode ser separada da teologia, ponto a ser mais elaborado sob o título “Pressuposições”. Por enquanto é suficiente observar que Gabler foi impactado pelo racionalismo de sua época e que boa parte de sua iconoclasia vis-à-vis a teologia dogmática deve ser entendida à luz de seu ceticis­ mo em relação à natureza da Bíblia como a Palavra de Deus. Além disso, ele teve mentores igualmente afetados pelo racionalismo da época e aos quais era agrade­ cido, e ele reconheceu essa gratidão em seu ensaio. Apenas poucos deles pre­ cisam ser mencionados no esboço histórico apresentado a seguir. Talvez o principal entre esses mentores tenha sido S. F. N. Morus (1736- 1792), descrito por Gabler como “esse homem excelente” que “nos ensinou que devemos ter cautela na interpretação da relação entre os sentidos da mesma pa­ lavra”.9 Essa cautela precedeu um argumento similar nos tempos modernos, desenvolvido de forma mais contundente por James Barr.10 Gabler, continuan­ do seu elogio de Morus, dessa vez por sua renúncia à exegese alegórica e excessi­ vamente figurativa que era comum no século XV11I, fala dele como “um homem extraordinário cuja reputação é seu monumento”.11 No entanto, a expressão de apreço por Morus mais efusiva de Gabler concernia ao método teológico dele, método esse que argumentava a favor da noção de que os textos bíblicos indi­ viduais devem ser examinados por suas idéias universais enquanto, ao mesmo tempo, devem ser lidos à luz de seu próprio cenário contextuai e histórico.12 Embora Gabler mencione freqüentemente Morus em seu discurso, o estu­ do atento dos métodos e das conclusões dele mesmo não deixa sombra de dúvi­ 8 Julius Wellhausen, Prolegomena to the History o f Ancient Israel, Cleveland: World, 1957, 1883. 9 Sandys-Wunsch e Eldredge, “J. P. Gabler”, p. 140. 10 James Barr, The Semantics o f Biblical Language, Oxford: Oxford Universiry Press, 1961. 11 Sandys-Wunsch e Eldredge, “J. B. Gabler”, p. 141. 12 Ibid., p. 141-42. 26 TEOl.OGIA DO ANTIGO TESTAMENTO de “uma reinterpretação infeliz do hebraísmo”.20 Tal atitude incorporou uma corrente de anti-semitismo que, no fim, levou aos horrores acontecidos no século XX. Gramberg tentou escrever uma história objetiva do desenvolvimento da religião de Israel sem compromisso prévio com a dogmática nem com o racio- nalismo cético. No sentido mais estrito, o que ele produziu não foi de modo algum uma teologia, mas uma história da religião de Israel, não obstante, uma história que leva o Antigo Testamento a sério como o registro dessa história. Von Cõlln, por sua vez, argumentava que a teologia bíblica devia ser desenvolvi­ da genética e historicamente baseada apenas na Bíblia. Infelizmente, ele abraçou os princípios do evolucionismo religioso de sua época que se ajustavam como uma luva às várias hipóteses crítico-histórico que também ganhavam aceitação. Assim, a religião de Israel não teve origem real na revelação, certamente não na revelação mosaica, mas evoluiu de forma gradativa de um primitivismo puro até alcançar sua forma plena nos períodos exílico e pós-exílico. Entrementes, inúmeros filósofos, sendo Georg Hegel o principal entre eles, começaram a causar impacto na teologia bíblica.21 Hegel (1770-1831) estabele­ ceu o fundamento para uma irrefutável (aos olhos dele) explicação da origem e do desenvolvimento da religião de Israel no contexto do fenômeno religioso universal. Ele sugeriu que esse desenvolvimento teve três estágios: 1. A religião da natureza — Deus é uma matéria natural. 2. A religião da individualidade espiritual — Deus é um sujeito (judaísmo). 3. A religião absoluta (cristianismo). A estrutura dialética de Hegel reabilita o Antigo Testamento no sentido de que o Antigo Testamento pode ser entendido como essencial no resultante surgi­ mento da religião mais elevada do Novo Testamento. Essa percepção deu novo ímpeto ao estudo teológico do Antigo Testamento, foi um empurrão no movi­ mento que corria o risco de ficar paralisado. Apoderando-se da interpretação de Hegel da história, em especial da história de Israel, J. K. W. Vatke (1806-1882), estudioso com quem Wellhausen, con­ forme este afirmou posteriormente, aprendeu mais e melhor, desenvolveu sua própria posição teológica, que promovia três idéias-chave:22 20 Ibid., p. 100. 21 R. G. Collingwood, The Idea o f History, Oxford: Clarendon, 1946, p. 113-22. 22 Hayes e Prussner, Old Testament Theology, p. 100-3. INTRODUÇÃO: AS ORIGENS, A NATUREZA E O ESTADO ATUAL DA TEOLOGIA DO AT 27 1. A teologia bíblica deve mostrar o desenvolvimento da religião e da ética na consciência de Israel. 2. A revelação é indispensável, mas só pode ser reconhecida e avaliada de acordo com linhas desenvolvimentistas (leia-se “evolucionárias”). 3. A filosofia evolucionária deve assegurar uma interpretação da história e da religião do Antigo Testamento. Essa forma evolucionária de ver o desenvolvimento da religião de Israel era compatível com as abordagens modernas do estudo do Antigo Testamento, como crítica da fonte e da redação. Na verdade, fica claro que esta e a crítica posterior encontram seu caráter e princípio organizador em uma compreensão evolucionária do desenvolvimento do pensamento do Antigo e do Novo Testa­ mentos. O resultado disso para a teologia foi ela ser forçada a se amoldar ao molde prescrito pelo modelo evolucionário e, assim, não poder mais refletir a abordagem que fora objeto de grande simpatia por Hegel. O aspecto diacrônico da teologia que entendia a teologia nascendo de Moisés e dos patriarcas dos tempos antigos foi substituído por um no qual Moisés tinha um papel menor ou nenhum papel e que entendia as grandes idéias mosaicas como produtos de desenvolvimento religioso posterior. Essas formas radicais de entender o Antigo Testamento não podiam ficar sem contestação e, por volta do meio do século XIX, diversos paladinos da orto­ doxia começaram a dar voz a sua oposição. Felizmente, essa reação não veio apenas como uma resistência ao radicalismo da crítica bíblica, mas também por meio do reconhecimento de que a teologia bíblica não era per se incompatível com a fé ortodoxa. Um dos primeiros proponentes do renascimento conservador foi Ernst W. Hengstenberg (1802-1869) que, em sua sólida obra Christologie desAlten Testa­ ments [Cristologia do Antigo Testamento],2i reafirma a inspiração da Escritura, rejeita o método crítico-histórico com seus adornos evolucionários e, conforme o título de sua obra sugere, vê, do começo ao fim do Antigo Testamento, uma teologia messiânica totalmente desenvolvida. Todavia, a abordagem dele diminui muitíssimo o princípio da revelação progressiva e, assim, também o elemento longitudinal, ou diacrônico, essencial para a verdadeira teologia bíblica. Hengsten­ berg retornou a uma abordagem teológica dogmática pré-bíblica que não podia favorecer a produção de uma verdadeira teologia bíblica. 23 Ernst W. Hengstenberg, Christologie des Alten Testaments, Berlim: L. Ohmigde, 1829, p. 35. 28 TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO J. C. F. Steudel (1779-1837), por sua vez, adotou o método teológico bíblico de Gabler, mas sem as pressuposições negativas defendidas pela maioria dos teólogos da época.24 Steudel, primeiro, lidou geneticamente com o Antigo Testamento (isto é, como uma revelação progressiva) e, depois, sistematicamente, um método seguido desde essa época pela maioria dos estudiosos conservadores. Método “sistemático” representa apenas a organização dos dados bíblicos em categorias de idéias similares ou idênticas, matéria a ser continuada mais tarde (veja “Método”). Para Steudel e seus seguidores, a revelação progressiva era en­ tendida como essencial para a interpretação apropriada da Escritura. H. A. C. Hãvernick também rejeitou as mais altas hipóteses críticas e seu subjetivismo e, em uma importante obra, publicada em 1848, argumentou que o objetivismo instruído pela compreensão espiritual e pelo princípio orgânico (o “genético” de Steudel) do desenvolvimento religioso do Antigo Testamento levaria à teologia bíblica apropriada. Ele entendia que havia necessidade de tratar a teologia do Antigo Testamento em termos de seu contexto histórico. G. E Oehler (1812-1872), aluno de Steudel, produziu o que muitos estu­ diosos (conservadores) consideram ser a mais extraordinária teologia do Antigo Testamento do século XIX. A principal obra dele (Theologie des Alten Testa- ments [Teobgia do Antigo Testamento]-, de 1873) insiste no princípio do cresci­ mento orgânico da revelação do Antigo Testamento, princípio esse que ele admitiu ter emprestado de Hegel e dos filósofos da escola da história da religião, mas que ele “organizou” a fim de evitar os aspectos humanistas da cosmovisão hegeliana.25 Para Oehler, a essência da verdade bíblica em torno da qual tudo o mais é ornamentado e ampliado é o Espírito divino quando, por fim, é cumpri­ do em Cristo no Novo Testamento. Essa idéia (isto é, o Espírito) tem de ser descoberta (embora seja um dado objeto de revelação especial) por meio da aplicação do método histórico-gramatical. A combinação de Oehler do princí­ pio da revelação progressiva (baseado na leitura bíblica da história) e do método exegético apropriado estabelece o fundamento para uma teologia bíblica sólida e sensível. Por volta do fim do século XIX, a teologia do Antigo Testamento foi eclip­ sada pelo intenso interesse na história da religião de Israel, uma virada dos even­ tos que deve ser atribuída ao impacto contínuo da historiologia hegeliana ligada à abordagem crítico-histórica em relação aos estudos bíblicos. Apenas depois da 24 Hayes e Prussner, Old Testament Theology, p. 107-9. 25 Gustave F. Oehler, trad. por George E. Day e republicado como Theology o f the Old Testament, Grand Rapids: Zondervan, reimpressão da edição de 1883. INTRODUÇÃO: AS ORIGENS, A NATUREZA E O ESTADO ATUAL DA TEOLOGIA DO AT 31 da religião porque, para ele, a preocupação apropriada de uma teologia do Anti­ go Testamento é o próprio Antigo Testamento canônico, e não a reconstrução hipotética e imaginativa do desenvolvimento da religião de Israel. Edmond Ja- cob, estudioso francês, propôs que o sujeito que é matéria da teologia é Deus, e não as instituições; a cristologia, e não a teoria.32 Gerhard von Rad (1901- 1971) compara-se a Eichrodt em sua estatura e influência. Ele, em oposição a Eichrodt, resiste à chamada abordagem do “corte oblíquo”; antes, defende o que pode ser chamado de método “longitudinal” ou “diacrônico”.33 Para von Rad, a preocupação da teologia não é o que realmente aconteceu na história, mas a compreensão, interpretação e proclamação de Israel do que aconteceu. Os dois tipos de história não precisam necessariamente ser coincidentes. No cerne do pensamento de von Rad está a idéia de que o hexateuco (o Pentateuco mais o livro de Josué), na verdade, é uma confissão cultual que pode ser reduzida a breves asserções de credo de que Deus, por meio de uma série de atos salvadores, libertou seu povo e concedeu-lhes uma terra. Vários temas de aliança (como a revelação do monte Sinai), de promessas patriarcais e de histórias primevas (Gn 1— 11) foram acrescentadas mais tarde a fim de sus­ tentar o credo no cerne da tradição hexateuca. Uma avaliação justa de sua obra é que von Rad produziu na atualidade uma história de tradições, em vez de uma teologia no sentido usual, e que ele é extremamente cético em relação à história sobre a qual se fundamenta a tradição. Qualquer pesquisa de importantes teologias bíblicas do século XX seria negli­ gente se não incluísse a obra do grande estudioso de Princeton, Geerhardus Vos, obra essa que influenciou profundamente o pensamento desse escritor.34 O talen­ to da abordagem de Vos é seu reconhecimento da natureza orgânica da revelação de Deus à medida que ele expunha seus propósitos para o reino ao longo da história. Vos leva a sério a interpretação da história feita pelo Antigo Testamento e, como Oehler antes dele, a vê como o veículo por meio do qual a mensagem salvadora pode ser levada adiante, da criação à escatologia. Por fim, seria útil examinar rapidamente alguns teólogos contemporâneos, não só para poder avaliar a contribuição deles, mas para fornecer um pano de fundo por meio do qual julgar a necessidade desta obra. Infelizmente, a revisão aqui deve ser muitíssimo seletiva tanto por causa de espaço para as considerações 32 Edmond Jacob, Theology o f the Old Testament, Nova York: Harper & Row, 1958. 33 Gerhard von Rad, Old Testament Theology, 2 vols., trad. por D. M. G. Stalker, Nova York: Harper & Row, 1962. 34 Geerhardus Vos, Biblical Theology: Old and New Testaments, Grand Rapids: Eerd- mans, 1948. 32 TKOl.OGIA [X I ANTIGO TESTAMENTO como pelo excesso de literatura teológica que foi produzida nos últimos vinte e cinco anos ou por volta disso. Walter C. Kaiser Jr., em sua obra seminal sobre a teologia do Antigo Testa­ mento, centra sua atenção em torno do tema da promessa, tema esse que ele descreve como “derivado do texto”.35 Ele rastreia seus temas ao longo das épocas bíblicas, dos períodos pré-patriarcal ao pós-exílico. O método dele claramente toma o testemunho do Antigo Testamento para o próprio desenvolvimento histórico por seu valor de face e não o fundamenta em alguma reconstrução da história de Israel derivada de hipóteses crítico-históricas. Kaiser, como evangéli­ co, é sensível ao fato de que a teologia do Antigo Testamento não pode ser desenvolvida sem levar em consideração o Novo Testamento, mas ele também insiste que a revelação do Novo Testamento não deve ser lida contra o pano de fundo do Antigo Testamento de forma que distorça a mensagem única do An­ tigo Testamento. Elmer A. Martens organiza sua teologia em torno do conceito de formação de uma grade para a mensagem do Antigo Testamento, conforme enunciada em Êxodo 5.22— 6.8.36 Ele, como Kaiser, traça seu escopo historicamente ao lon­ go do Antigo Testamento, encontrando quatro elementos em cada era: a sal­ vação, a comunidade da aliança, o conhecimento de Deus e a terra. Sua fé evangélica também o impulsiona em direção a Cristo e ao evangelho, assim, ele vê no Novo Testamento (especificamente no evangelho de Mateus e na epístola para os Romanos) o mesmo padrão de desígnio divino do Antigo Testamento. A teologia mais próxima no escopo e no método da que será desenvolvida aqui é a do evangélico australiano William J. Dumbrell. A obra mais impor­ tante dele a respeito do assunto, Convenant and Creation [Aliança e criação], organiza sua teologia em torno da ordem da criação de Gênesis 1.26-28, ordem essa que, a despeito da dificuldade de implementação por causa do pecado e da queda da humanidade, continua em vigor e assim continuará até a grande con­ sumação dos propósitos do Reino de Deus no fim dos tempos.37 Esse tratamen­ to, embora limitado ao Antigo Testamento, lança um olhar adiante, para um cumprimento na obra expiatória e redentora de Jesus Cristo. 35 Walter C. Kaiser Jr., Toward an Old Testametn Theology, Grand Rapids: Zondervan, 1978. Em português, Teologia do AT, Editora Vida Nova, 2008. 36 Elmer A. Martens, God’s Design, Grand Rapids: Baker, 1981. 37 William J. Dumbrell, Convenant and Creation. A Theology o f Old Testament Cove­ nants, Nashville: Thomas Nelson, 1984. Outra abordagem semelhante à nossa é a de Stephen G. Dempster, Dominion and Dynasty: A Theology o f the Hebrew Bible, Downers Grove, III.: InterVarsity, 2003. IN T R O D U Ç Ã O : AS ORIGENS, A NATUREZA E O ESTADO ATUAI. DA TEOLOGIA DO AT 33 Brevard S. Childs é um dos mais relevantes e influentes pensadores teológi­ cos do final do século XX. Suas duas principais obras, Old Testament Theology in a Canonical Context [ Teologia do Antigo Testamento em um contexto canôni­ co^ e Biblical Theology o f the Old and New Testaments [ Teologia bíblica do Antigo e do Novo Testamentos],39 argumentam em favor de uma teologia dia- crônica que tira sua matéria-prima do cânon hebraico, e só de lá, da forma que saiu das mãos dos redatores finais do texto sagrado. Childs, conforme é possível perceber pelo título do segundo volume, está convencido de que a teologia bíblica só pode ser desenvolvida com a inclusão do Antigo e Novo Testamen­ tos. Ao descrever essa tarefa, ele diz que a teologia bíblica deve “explorar a relação entre esses dois testemunhos [o Antigo Testamento e o Novo Testamento], ao passo que a tarefa da teologia do Antigo Testamento é refletir teologicamente a respeito apenas de uma porção do cânon cristão, mas como Escritura cristã”.40 Essa distinção útil fundamentará, em grande extensão, nosso próprio esforço em desenvolver uma teologia apenas do Antigo Testamento. Nossa breve história do movimento da teologia bíblica chega ao fim com uma sucinta visão geral da criativa e provocativa percepção teológica de Walter Brueggemann, especialmente conforme enunciada na Theology o f the Old Testa­ ment [ Teobgia do Antigo Testamento], sua magnum opus, obra-prima.41 Bruegge­ mann institui um modelo forense no qual Iavé, em certo sentido, está em julgamento, e o Antigo Testamento é a transcrição dos procedimentos da corte. Estes começam com o testemunho central de Israel no qual Iavé é descrito por seus vários atributos e características. A seguir, segue-se um contra-testemunho que parece diminuir alguns desses aspectos positivos ou, pelo menos, questioná- los. A nação de Israel, embora inquieta a respeito de determinadas questões relativas ao lado afirmativo do testemunho, alinha-se com Iavé, como parceira, testemunhando, por assim dizer, a integridade dele. Brueggemann conclui sua teologia adequadamente delineando os meios pelos quais Iavé testemunha por si mesmo — por meio da Torá, da monarquia, dos profetas, do culto e dos sábios. A parte mais útil do esforço de Brueggemann é o fato de trazer à luz o dilema apresentado para a teologia clássica e por ela como o lado negativo ou 38 Brevard S. Childs, Old Testament Theology in a Canonical Context, Filadélfia: For­ tress, 1985. 39 Brevard S. Childs, Biblical Theology o f the Old and New Testaments, Mineápolis: Fortress, 1993. Veja também, Sailhamer, Introduction to Old Testament Theology. 40 Childs, Old Testament Theology in a Canonical Context, p. 9. 41 Walter Brueggemann, Theology o f the Old Testament, Mineápolis: Fortress, 1997. 36 TEOLOGIA IX ) ANTIGO TESTAMENTO reducionista a ponto de convidar a grade sugerida acima. Ou seja, elas não po­ dem dar conta de todas as linhas diversificadas e multifárias da revelação bíblica sem trazer essas linhas, contra a vontade delas, a uma conformidade forçada. Ou, ainda pior, elas simplesmente deixam grandes partes do cânon fora da dis­ cussão exatamente porque eles (os centros) não podem acomodá-las. Alguns, reconhecendo o dilema, optaram por não ter nenhum centro, uma opção que, embora honesta, parece promover a noção de que a narrativa do Antigo Testa­ mento não tem enredo e, por isso, não tem linha de pensamento nem objetivo que a una e forneça a linha central da narrativa. Esperamos mostrar como isso é improvável e inexeqüível (veja a seção “Afirmação dos pressupostos” abaixo). 3. Muitas teológicas evangélicas contemporâneas, na verdade, são pesquisas, resumos ou até mesmo esboços teológicos. Elas são incapazes ou relutam em investir o tratamento profundo e necessário para lidar à exaustão com a vastidão das riquezas teológicas da revelação bíblica. Esse comentário não pretende ser uma critica, pois existe todo tipo de limitações em empreender um projeto desse tipo. No entanto, essas insuficiências convidam a justificação para um exame e apresentação mais sintéticos. 4i Por fim (e, de alguma forma, alinhado com o ponto 1), algumas teolo- gias recentes estão tão presas ao credo formal ou informal ou às tradições eclesiás­ ticas confessionais que, na verdade, tornam-se um esforço subjetivo de escorar essas tradições, evitando assim, a objetividade que está no cerne do autêntico método teológico bíblico. Na verdade, claro que é impossível se despojar de sua herança eclesiástica e ser verdadeiramente objetivo no trato com os dados do Antigo Testamento. Sem dúvida, esta obra será acusada de seguir essa mesma tendência, ou pré-compromisso, e algo parecido. Todavia, deve-se fazer um es­ forço para se envolver na tarefa com tapa-olhos, por assim dizer, para que o produto final possa ser considerado bíblico, e não dogmático. O projeto empreendido aqui se propõe a levar a sério os seguintes objetivos a fim de se livrar do ônus de um empreendimento preconcebido e pré-acondi- cionado ou da legítima acusação de não lidar com as difíceis questões de pres­ suposição e de metodologia. 1. Temos de tratar o testemunho do Antigo Testamento com seriedade tanto em termos de seu testemunho que valida a si mesmo como de sua nature­ za como revelação divina e seu conteúdo de caráter inerente e intencionalmente teológico. Na verdade, esse é confessional, mas, conforme argumentaremos a seguir (veja a seção “Afirmação dos pressupostos”), essa postura é inevitável se for para, de algum modo, desenvolver teologia. INTRODUÇÃO: AS ORIGENS, A NATUREZA E O ESTADO ATUAI. DA TEOLOGIA IX ) AT 37 2. Todo esforço direciona-se a um método teológico bíblico apropriado, um método sensível ao caráter mesmo da própria disciplina, como também consciente­ mente distinto do que Gabler chamava dogmático. Estamos perfeitamente cons­ cientes da impossibilidade de seguir esse curso de forma rígida e consistente, mas estamos igualmente convencidos de que se deve fazer o esforço para isso. 3. O método incorporará o compromisso com o modelo canônico abraça­ do por Childs e outros (mas com diferentes suposições críticas) ao mesmo tem­ po em que será constantemente direcionado pelo princípio da revelação progressiva e do desenvolvimento histórico. Em outras palavras, seremos sin- crônicos no sentido de que o cânon testemunha a última confissão de fé de Israel e a compreensão dessa nação de si mesma, mas será diacrônico no sentido de traçar a história dessa revelação que culmina em sua forma final, uma forma que não pode ser redigida. 4. Por fim, proporemos um centro teológico, um que acreditamos ser es­ treito o suficiente para encapsular as declarações proposicionais comunicativas e amplas ou abrangentes o bastante para levar em consideração a rica diversidade do cânon do Antigo Testamento (veja a seção “Método teológico” abaixo). Se isso acontecerá ou como acontecerá é algo que deve ser demonstrado, e não apenas declarado. A f ir m a ç ã o d o s p r e s s u p o s t o s Pressuposto, interalia, é “circunstância ou fato em que se considera um ante­ cedente necessário de outro”,42 portanto, pressuposição é o antecedente exigido que torna lógico o desenvolvimento possível. Infelizmente, o termo veio a ter o sentido de asserção de alguma verdade a priori feita com pouco ou nenhuma evidência empírica ou outra para apoiá-la. Pressupõe-se que uma idéia apenas tenha algo a que se agarrar sem qualquer sustentação empírica ou confirmatória. Depois, conforme o argumento se desenvolve, edifica-se todo um sistema de crença sobre a premissa pressuposta, sistema esse que só é sustentável se a premissa mesma estiver correta. Sob um aspecto, essa compreensão de pressuposicionalismo está correta no fato de que procede de uma hipótese não provada racionalmente ou até mesmo improvável. Sob outro aspecto, essa compreensão é deficiente no fato de que não leva em consideração a testabilidade da pressuposição, uma vez que ela é 42 Dicionário Eletrônico Houaiss, versão 1.0, dezembro de 2001 , produzido e dis­ tribuído pela Editora Objetiva. 38 TEOLCXíIA 1X 1 ANTIGO THSTAMF.NTO abraçada e estabelecida a fim de ser validada (ou invalidada). Quando aplicada à teologia, a disciplina, do princípio ao fim, tem orientação silogística, pois teolo­ gia, por definição, é o “estudo de Deus”. Se não existir Deus (premissa princi­ pal), e a teologia devota-se ao estudo de Deus (premissa secundária), então não há teologia (conclusão). Apresentando de outra maneira, se a teologia é verda­ deiramente um exercício legítimo (premissa principal), e a teologia é o estudo de Deus (premissa secundária), então Deus deve existir (conclusão). Alguns acharam essa colocação sem sofisticação do ponto de vista lógico e filosófico, mas ela ilustra o processo pelo qual o pressuposicionalismo deve ser um elemento integral no fazer teologia. Não devemos nos desculpar por pres­ supor as exatas verdades que se supõe que a teologia demonstre, mas, sim, se afirmamos pressuposições sem tentarmos validar as asserções delas. Duas pressuposições fundamentais, cada uma com duas percepções antagôni­ cas, sustentam a teologia do Antigo Testamento: (1) Deus existe (ou não existe), e (2) Deus revelou a si mesmo (ou não se revelou). Um corolário dessa segunda afirmação — um mais específico e derivativo — é defendido tenazmente pela fé evangélica, a saber, que Deus revelou a si mesmo intencionalmente na Escritura e também na natureza ou no mero espírito, ou essência, da mensagem bíblica. É óbvio que essas pressuposições antagônicas não só ditam a descrição de uma determinada teologia, mas, mais importante, sua autoridade. Se alguém pre­ sume que não existe Deus, então a teologia do Ajitigo Testamento torna-se apenas a história da religião de Israel. Se não há auto-revelação divina, então a teologia do Antigo Testamento torna-se um testemunho da antiga Israel e de todas as outras matérias. Mais exatamente, se a revelação não é feita em palavras da linguagem humana, então a teologia do Antigo Testamento torna-se nada além de uma tentativa dos profetas de interpretar o sentido da história ou dos atos poderosos de Deus ou da natureza e semelhantes. Abraçar o oposto de tudo isso, por sua vez, não é mais pressuposicional do que abraçar essas negações em si mesmas e, claramente, é muito mais recompensador e digno de ser estudado. Nossa teologia confessa que Deus é e que ele revelou a si mesmo de muitas maneiras, particularmente no texto do Antigo Testamento e por intermédio dele. Essa pressuposição admitida carrega consigo uma multidão de implicações em relação à natureza, ao caráter e aos propósitos de Deus, tudo isso é matéria da primeira grande seção desta obra. Correndo o risco de ser redundante, se não existe Deus, não tem sentido falar de quem ele é nem de como ele é. Mas mesmo se ele existir, tudo que pode ser conhecido dele com certeza é pouco INTRODUÇÃO: AS ORIGF.NS, A NATUREZA E O ESTADO ATUAI. DA TF.OIAJGIA DO AT 41 a dizer que eles podem e devem ser “teologizados” para que possam produzir o fruto que o Autor divino pretendia transmitir desde o princípio. Um lógico e importante corolário para a proposição de que o Antigo Testa­ mento é revelação autoritativa é a asserção de que tudo que ele tem a dizer a respeito da história deve ser aceito como factual, assumindo, claro, que ele, pela forma e pela declaração, deve ser tomado como narrativa histórica.45 Sem dúvi­ da, há passagens que, embora se refiram a eventos históricos, são expressas em termos altamente poéticos ou figurativos e, por isso, não devem ser lidas apenas como historiografia. No entanto, permanece o ponto de que mesmo essa leitu­ ra pressupõe eventos históricos genuínos como o ponto de partida dos textos, e não mitos, sagas, lendas nem alguns outros registros não-históricos ou até mes­ mo quase históricos. Ao mesmo tempo, é importante enfatizar que o Antigo Testamento não é fundamentalmente uma obra de história. Na melhor das hipóteses, para empregar termos teológicos, ele é um Heilsgeschichte ou história sagrada. Ele não tem o desígnio de fornecer uma história do mundo nem mes­ mo uma história objetiva de Israel. Antes, o propósito dele é narrar a conduta do Senhor com o mundo em geral, mas através do prisma de seu povo escolhido Israel. Apenas o que contribui para essa narrativa de salvação final é considerado pertinente e, por isso, incluído no registro. Esse estreitamento da história do Antigo Testamento não deve ser construí­ do para ter o sentido de que ele pode acomodar e acomoda erros históricos ou informação histórica errônea. A história parcial não é necessariamente uma história incorreta. Ela só precisa ser história seletiva em seu assunto em questão, tenden­ ciosa em sua apresentação e pedagógica em seu intento. O Antigo Testamento revela tudo que é necessário para que alguém conheça quem é Deus e para en­ tender o grande desígnio dele para a criação. Isso é história de fato, mas história que deve ser interpretada teologicamente caso se pretenda que ela transmita de maneira holística e integrada a mensagem subjacente que ela tem a intenção de transmitir. De outro ângulo, o motivo para a insistência a respeito da integridade histórica do Antigo Testamento é que boa parte do conteúdo da teologia dele é sua inter­ 45 Veja Eugene H. Merrill, “Old Testament History: A Theological Perspective”, A Guide to Old Testament Theology and Exegesis, ed. Willem A. VanGemeren, Grand Rapids: Zondervan, 1999, p. 65-82. Veja também Ferdinand Deist, “The Problem of History in Old Testament Theology”, OTWSA 24, 1981, p. 23-39; John Goldingay, ‘“That You May Know That Yahweh is God’: A Study in the Relationship between Theology and Historical Truth in the Old Testament”, TynB 23, 1972, p. 58-93. 42 TF.O U X;iA IX ) ANTIGO TESTAMEN TO pretação do sentido dos eventos históricos. Os eventos não ocorrem nem são incluídos no registro meramente como atos aleatórios. Eles são parte e parcela dos trabalhos de um Deus soberano que, em última instância, tudo que faz é parte de um grande plano. Mas os eventos são apenas fatos brutos que por si mesmos transmitem pouco sentido ou nenhum. Eles devem estar acompanha­ dos de uma palavra de esclarecimento, palavra essa que estabelece os eventos em seu contexto e extrai dele sentidos que contribuem para o conjunto da mensa­ gem bíblica.46 Embora alguns teólogos proponham que a história sagrada não precisa ser baseada em eventos históricos autênticos, mas apenas nas percepções da realidade histórica da antiga Israel,47 é um absurdo, do ponto de vista episte- mológico e racional, supor que essa interpretação de eventos não existentes pode ter poder e validade teológicos. Insistiremos aqui que a história, conforme reve­ lada no Antigo Testamento, tem, pelo menos, dois propósitos heurísticos: (1) fornecer uma linha de tempo contra a qual a revelação divina pode ser demarca­ da; e (2) suprir exemplos de eventos que, com a palavra interpretativa, contri­ buem para a compreensão mais plena da natureza do Senhor e de seu trabalho em meio à humanidade. Uma terceira pressuposição que fundamentará essa obra é a de que a reve­ lação de Deus na Escritura é coerente e intencional; ou seja, ela está unida em torno de uma idéia fundamental central e move essa idéia em direção à con­ clusão ou, pelo menos, a uma conclusão antecipada. Essa idéia fundamental é designada de diversos modos como o centro, um Mitte, um princípio organiza­ dor e assim por diante. Escolhemos o termo centro, reconhecendo que a palavra carrega, ao mesmo tempo, dificuldade à medida que a exposição teológica re­ sultante se tornar clara. Independentemente da terminologia técnica, o ponto principal é que se o Antigo Testamento, na verdade, é fundamentalmente uma narrativa compacta (não obstante, seja teológica) descrevendo Deus, sua criação e seus propósitos, segue-se a isso o fato de que deve haver um enredo, uma linha de história que, junto com inúmeros sub-enredos, orienta o leitor em meio ao complicado labirinto da Palavra revelada. Esse enredo também pode ser chama­ do de centro, pois é o pólo em torno do qual e à luz do qual a narrativa trans­ mite a verdade. A maioria dos teólogos que concorda com a existência de um centro (e muitos não concordam) identifica-o como um conceito (por exemplo, aliança), 46 Para unia crítica do positivismo histórico que denigre a necessidade de interpretação contextuai dos fatos, veja Collingwood, The Idea o/History, p. 126-33. 47 Nesse caso, por exemplo, von Rad, Old Testament Theology, vol. 1, p. 195-215. INTRODUÇÃO: AS ORIGENS, A NATUREZA E O ESTADO ATUAL DA TEOLOGIA DO AT 43 uma abstração (por exemplo, a santidade de Deus) ou uma confissão ou as­ serção (“Eu sou o I a v é ” )/ '8 Outros constroem sua abordagem em torno de um livro (por exemplo, Deuteronômio) ou até mesmo de uma única passagem (por exemplo, Êx 5.22— 6.8). Selecionamos essa passagem, a saber, Gênesis 1.26-28, cuja defesa elaboraremos em detalhes em nossa exposição teológica. Conforme os críticos de uma abordagem “centrada em um centro” mencionam reiteradas vezes, os centros, com freqüência, não são estreitos o bastante para evitar a tauto­ logia (por exemplo, Deus é o centro da teologia) ou são amplos o bastante para incorporar todas as inúmeras multiplicidades dos textos e ensinamentos bíblicos. Essas críticas são bem aceitas, e devemos proceder, e procederemos, com cuidado na defesa do testemunho fundamental específico que considerarmos ser o mais apropriado. M é t o d o t e o l ó g ic o Por mais que alguém possa gostar de pensar na teologia como uma abs­ tração ou, na melhor das hipóteses, como uma atividade intelectual e espiritual repleta de subjetividade, a teologia, como qualquer outra área de estudo, pode e deve ser abordada e desenvolvida por uma metodologia rigorosa.49 Do con­ trário, a busca dela torna-se adhoc e indisciplinada, chegando a conclusões sem harmonia nem motivo e sem poder reivindicar credibilidade, isso para não men­ cionar a reivindicação de autoridade. Isso não quer dizer que um modelo pre­ concebido e, até mesmo, metodológico deva ser impingido no empreendimento teológico; pois a teologia é refratária e recusa-se a se conformar com programas que são trazidos a ela, não importa quão sólidos possam parecer em princípio. E necessário um método de desenvolver teologia condizente com a complexidade do material do texto bíblico e que esse método, ao mesmo tempo, cumpra, pelo menos, as exigências que são tentadas, e que essa tentativa esteja alinhada com princípios sólidos de investigação e de análise. Falar em desenvolver uma teologia do Antigo Testamento pede a pergunta já levantada: o que é o Antigo Testamento? Isto é, o que é o corpo de literatura 48 Para as dificuldades nessa área, veja Gerhard F. Hasel, “The Problem o f the Center in the O T Theology Debate”, ZAW 86, 1974, p. 65-82. 49 A. A. Anderson, “Old Testament Theology and Its Methods”, Promise an Fulfillment: Essays Presewnted to S. H. Hooke, ed. F. F. Bruce, Edimburgo: T & T Clark, 1963, p. 7- 19; J. J. Burden, “Methods o f Old Testament Theology: Past, Present and Future”, ThEv 10, 1977, p. 14-33; Ben C. Ollenburger, “Old Testament Theology: A Discourse on Method”, Biblical Theology: Problems and Perspectives, ed. Steven J. Kraftchick, Charles D. Myers Jr. e Ben C. Ollenburger, Nashville: Abingdon, 1995, p. 81-103. 46 TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO autoria e data podem ser estudados em seu contexto e como parte dele. Todavia, muitos livros não fornecem nenhuma informação e, por conseguinte, não po­ dem ser vistos em termos de sua contribuição para o progresso da revelação. Essas anomalias sugerem que o método diacrônico, embora seja recomendado como o método ideal, não pode ser aplicado para todos os livros. Por essas razões, parece melhor seguir a abordagem canônica-histórica sugerida acima. A teologia bíblica originada como um método que não está em conflito com a teologia dogmática (ou sistemática) seria, no mínimo, complementária a esta. Gabler e sua escola tentavam apontar as deficiências de uma abordagem que na percepção dele devia muito à filosofia e ao credalismo e era muito insen­ sível à teologia dos próprios textos do Antigo Testamento. Mas é importante lembrar também que ele entendia a teologia bíblica como a principal disciplina para a teologia sistemática, sem a qual ela não teria estrutura e ordem. O ideal seria a teologia bíblica produzir suas próprias estruturas e categorias, mas a leitura atenta do Antigo Testamento deixa claríssimo que isso está longe de ser o caso. O Pentateuco, por exemplo, em parte alguma é organizado de forma sistemática em sua apresentação da doutrina; pois ele, como o resto da maior parte do Antigo Testamento, é uma narrativa. Ele não foi designado para oferecer um relato ordenado de proposições teológicas. Além disso, o resto do Antigo Testamento não mostra interesse em sistematizar o Pentateuco, para não falar em desenvolver sua própria estrutura interna lógica e teológica. Até mesmo os livros de Salmos e de sabedoria, nos quais poderíamos esperar algum tipo de estrutura desse tipo, revelam poucos sinais, se é que revelam algum, de organiza­ ção deliberada de suas asserções teológicas em algo que se assemelhe a teologia sistemática. Sendo esse o caso, pode parecer mais uma vez que o melhor método de tratar a questão da teologia do Antigo Testamento é traçar o fluxo do material bíblico seriatim , versículo por versículo e capítulo por capítulo, ou seja, do começo ao fim, fazendo observações teológicas ao longo do caminho. Na ver­ dade, esse é o modelo adotado por, pelo menos, alguns estudiosos, mas, em nossa percepção, isso não é teologia, mas comentário. Falta-lhe estrutura, direção e coerência e a análise final traz pouca compreensão da totalidade do ensinamen­ to bíblico, compreensão essa que deve ser adquirida em grande parte pela com­ paração e integração de textos com textos. Em outras palavras, a teologia bíblica deve ser sintetizada e sistematizada. Por isso, trataremos (1) de Deus e a pessoa e a obra dele; (2) da humanidade como a imagem de Deus e a implementadora dos propósitos eternos dele; e (3) INTRODUÇÃO: AS ORIGENS, A NATUREZA E O ESTADO ATUAI. DA TEOLOGIA IX ) AT 47 do reino, isto é, a arena em que o programa cooperativo de Deus e do homem é representado. Admitimos desde o início que isso tem claras nuanças de uma estrutura que alguns podem chamar de teologia sistemática. No entanto, até mesmo começar a pensar e a se expressar em termos teológicos representa concordar com as exigên­ cias epistemológicas essenciais para a comunicação interpessoal das idéias abstra­ tas que estão no cerne do empreendimento teológico. Em outras palavras, até mesmo a teologia bíblica deve ser posta, em algum grau ou outro, em categorias teológicas, fato que todos os teólogos bíblicos, pelo menos, admitem tacita­ mente. O objetivo ao qual o teólogo deve aspirar é deixar a Bíblia produzir suas próprias categorias e não as importar do exterior para a Bíblia. Uma consideração metodológica final também volta à questão levantada anteriormente da distinção entre teologia bíblica e teologia do Antigo Testa­ mento. É óbvio que a teologia do Antigo Testamento está limitada ao cânon do Antigo Testamento, e, por isso, o termo é mais descritivo do conteúdo que do método. A expressão teologia bíblica, por sua vez, invoca a idéia de método e, além disso, convida a também prestar atenção ao Novo Testamento, uma vez que o Novo Testamento, pelo menos para os cristãos, também faz parte da Bíblia. Falando do ponto de vista prático, um cristão pode desenvolver uma teologia seguindo um método teológico bíblico sem, ao mesmo tempo, levar em consideração o Novo Testamento?52 Aqui temos de escolher com o maior cuidado os termos que usamos. O intento desta obra é fornecer uma teologia apenas do Antigo Testamento, não de toda a Bíblia. Mas a abordagem será bíblica; isto é, adotaremos o método da teologia bíblica. Assim, o conteúdo cria restrições em relação ao material a ser coberto, mas o método derruba essas restrições até a extensão que o teólogo cristão deve reconhecer que sua obra não pode terminar no fim do cânon do Antigo Testamento, pois o próprio Antigo Testamento está aberto a algo além dele mesmo, a saber, o Novo Testamento. Isso levanta a importante questão sobre se, de algum modo, a teologia bíblica é possível para o cristão sem a inclusão do Novo Testamento. Afinal, Deus é o autor do todo, e o Antigo Testamento, embora constitua mais de três quartos do cânon inspirado, é uma narrativa incompleta sem os eventos do NovoTesta- 52 Para essa importante questão, veja Francis Watson, Text and Truth: Redefining Bibli- cal Tbeology, Grand Rapids: Eerdmans, 1997, p. 276-320 ; Wolfhart Pannenberg, “Problems in a Theology o f (Only) the Old Testament”, Problerns in Biblical Theolo- gy: Essays in Honor o f Rolf Knierim, ed. Henry T. C. Sun e Keith L. Eades, Grand Rapids: Eerdmans, 1997, p. 275-80. 48 TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO mento, o ápice da narrativa, que fornecem o sentido último do Antigo Testa­ mento.53 A resposta pode parecer ser um discreto “não”, daí a decisão de intitu­ lar nossa obra Teologia do Antigo Testamento. Contudo, ao rotulá-la dessa maneira, não tentamos ser evasivos no que diz respeito a esse assunto extremamente im­ portante da relação dos Testamentos e do Novo Testamento como a palavra final de Deus a respeito das verdades teológicas levantadas, primeiramente, no Antigo Testamento. Apenas tentamos ser honestos em relação à complexidade do que estamos fazendo e fazemos o melhor esforço possível para apresentar a mensagem teológica do Antigo Testamento separada do Novo Testamento e, contudo, em constante débito com ele. Esta, antes prolongada, introdução pretende guiar o leitor a uma melhor compreensão da natureza da teologia do Antigo Testamento e do método a ser seguido na colocação dela a fim de que as verdades profundas e transformadoras de vida do Antigo Testamento expostas possam ser mais bem apreendidas e aplicadas. A obra a seguir não pode reivindicar ser a última palavra a respeito do assunto, pois as inesgotáveis riquezas da revelação de Deus não podem jamais ser total e conclusivamente perscrutadas por nenhum empreendimento humano. Todavia, espera-se que esta obra siga no trilho das valiosas obras que a precederam e que, com elas e outras que ainda devem ver a luz do dia, traga alguma modesta contribuição com a finalidade de que Deus seja glorificado e a igreja possa ser edificada. ,â Para o modelo de uma teologia bíblica judaica (sem o Novo Testamento), veja Elliot N. D orff e Ixmis E. Newman, ed. Contemporary Jewish Theology: A Reader, Nova York: Oxford University Press, 1999; Isaac Kalimi, “History of Israelite Religion or Old Testament Theology? Jewish Interest in Biblical Theology”, JSO T 11, 1997, p. 100-23; Matitiahu Tsevat, “Theology of the Old Testament — a Jewish View”, HBT 8, 1986, p. 33-50; Tikva Frymer-Kensky, ‘The Emergence o f Jewish Biblical Theolo­ gies”, Jews, Christians, and the Theology o f the Hebrew Scriptures, ed. Alice Ogden Beilis e Joel S. Kaminsky, Atlanta: Society o f Biblical Literature, 2000, p. 109-21. 52 TEOLOGIA IX ) ANTIGO TESTAMENTO claro como e quando foi concluído, exceto no caso do livro de Deuteronômio, apresentado como uma obra empreendida e concluída por Moisés em um curto espaço de tempo quase no final da vida dele (Dt 1.1; cf. 32.44-48). A relevância desse fato para a teologia do Antigo Testamento é apresentar desde o início o ponto de que o propósito original da Torá não era fornecer aos leitores modernos uma percepção da criação, do dilúvio ou de outras guinadas dos períodos pré-patriarcal ou patriarcal, mas tratar questões levantadas pela própria nação de Israel referentes a sua situação presente (na época), o que tinha à frente e, mais importante, suas raízes históricas. Quem somos nós? Por que estamos aqui? Que propósito Deus tem em mente para nós? Como nos relacio­ namos com as nações a nossa volta e, na verdade, com toda a ordem criada? O mais fundamental de tudo são as questões a respeito da natureza, do caráter, das obras e dos propósitos de Deus, em especial, quando ele se fez conhecer por Israel. Por isso, a história de Deus, primeiro, diz respeito à história de seu relacio­ namento com Israel.4 Uma teologia que falha em reconhecer isso é insensível ao insistente testemunho da própria Bíblia. Deus, de forma clara, revelou-se ao longo das eras da Antiguidade, mas, até o evento culminante da convocação de Moabe, nunca levou um autor humano a coletar as memórias e textos espalha­ dos, adicionar-lhes novas e vivas auto-revelações divinas, sintetizá-los em uma narrativa coesa e escrever o todo como o primeiro estágio de milhares de anos de revelação escriturada. A fim de que Israel tenha uma compreensão mais plena de seu papel como um reino de sacerdotes e de nação santa, Moisés teve de transportá-los de volta ao princípio — ao princípio absoluto — da própria criação. A nação de Israel, de acordo com o propósito e os termos da aliança sinaítica, foi chamada para ser um instrumento de comunicação para a humanidade alienada da mensagem da graça restauradora e reconciliatória de Deus (Êx 19.4-6). Isso começa o caso, Israel deve conhecer o mundo e as nações, especialmente os inícios patriarcais de sua própria história com todas as gloriosas promessas que Deus primeiro enun­ ciou. Mais importante, Israel deve conhecer mais a respeito do Criador — o ser, os atos, os planos e o propósito dele. O livro de Gênesis revela algo disso, embora de formas abrangentes e genéricas e, principalmente, por meio de obras, em contraposição a declarações teológicas específicas. Para isso, o resto do Antigo 4 Vriezen, entre outros, vê o relacionamento — ou “comunhão” para usar a terminolo­ gia dele — como o principal motivo da teologia do Antigo Testamento. Th. C. Vriezen, An Outline o f Old Testament Theology, Oxford: Basil Biackwell, 1958, p. 131. A AUTOBIOGRAFIA DE DEUS 53 Testamento deve ser trazido para dar testemunho. O que segue aqui é uma sucinta visão geral do relato de Gênesis com atenção especial para a natureza e o caráter de Deus e, depois, uma elaboração sobre esses temas ao longo do cânon, particularmente nos livros de Salmos e na literatura de sabedoria. Quando, mais tarde, esses textos mesmos forem examinados e explorados em relação a seu conteúdo teológico, eles produzirão suas próprias percepções teológicas nesses assuntos, mas do ângulo único que seus respectivos autores trazem para a tarefa. A narrativa de Gênesis começa com uma sucinta, mas majestosa, declaração de que “no princípio Deus criou os céus e a terra” (Gn 1.1). A declaração não tenta esclarecer quando e como isso foi feito, apenas afirma que tudo que existe é produto da mão onipotente de Deus. Nesse aspecto, o relato é único entre as cosmologias do mundo do Oriente Próximo da Antiguidade, pois eles não sa­ biam nada de uma criação imediata em contraposição a uma criação que faz uso de matéria pré-existente.5 O verbo hebraico bãrã\ embora não seja inerente­ mente indicativo de creatio ex n ihib, carrega esse sentido em todas suas ocorrên­ cias no relato de Gênesis.6 Deus mesmo é fundamental para a narrativa da criação no caráter domi­ nante dela, e aqui ele é denominado de Eloím. Eloím, mais um epíteto que um nome, deriva-se de uma raiz hebraica (e semítica geral) com o sentido de “poder”. Esse nome é usado mais comumente em contextos em que a singularidade ou diversidade transcendente dele está em vista em contraposição à imanência ou proximidade dele, relação mais bem descrita pelo nome Iavé. Com o advento, no século XVIII, do método crítico-histórico e suas divisões do Pentateuco em fon­ tes hipotéticas, Gênesis 1.1— 2.4a veio a ser atribuído a uma fonte que conhecia a Deus como Eloím (a fonte E, depois designada por P, sacerdotal) e 2.4b-25, a criação da humanidade, a uma fonte J (para o termo alemão Jahveh). As hipó­ teses ignoram a consideração teológica de que os nomes divinos refletem aspec­ tos da natureza e do caráter do mesmo Deus, sendo Eloím apropriado na descrição cosmológica da criação, e Iavé para falar dela antropologicamente.7 No Oriente Médio da Antiguidade, os nomes representavam mais que meros rótulos para distinguir uma pessoa de outra. Eles eram descritivos do indivíduo, 5 Veja, por exemplo, Charles Doria e Harris Lenowitz, ed. Origins: Creation Texts Jrom the Ancient Mediterranean, Garden City, N.Y.: Doubleday, 1976; Barbara Sproul, Primai Myths: Creating the World, São Francisco: Harper & Row, 1979. 6 Gênesis 1 .1 ,21,27; 2.3 ; 5 .1 ,2 ; cf. 6 .7 ; Raymond C. Van Leeuwen, arb. NIDOTTE 1:732. Para um desenvolvimento adicional do termo, veja p. 101-9. 7 Umberto Cassuto, The Documentary Hypothesis, trad. de Israel Abrahams, Jerusalém: Magnes Press, 1961, p. 32-33. 54 T EO U XIIA DO AN TIGO TESTAMENTO na verdade, expressavam a essência mesmo da pessoa. Por exemplo, por isso, Abrão (grande pai) foi nomeado por causa de seu iminente lugar na linha patri­ arcal, mas ele tornou-se Abraão (pai de uma grande multidão), nome alinhado com seu novo papel como ancestral de uma inumerável aliança de pessoas que seria gerada de seus lombos. O nome Moisés, de acordo com a etimologia popu­ lar, reflete o fato de que a filha do faraó o tirou (mãsâ) da água (embora se derive mais exatamente da palavra egípcia mesu, “criança”). A ênfase no poder transcendente de Deus na narrativa da criação de Gêne­ sis 1.1— 2.3 fica clara a partir do fato de haver 32 ocorrências do nome Eloím em um espaço de apenas 34 versículos. Ele apenas fala, e as coisas vêm à existên­ cia, mas não há comunhão entre as coisas que ele cria, não há nenhum sentido de intimidade nem mesmo quando a própria humanidade aparece (w. 26-30). Ele fala a respeito dos seres humanos e com eles, mas com uma distância magis­ tral que dificilmente admite resposta. No entanto, não é como se Deus estivesse impassível pelo que fez e vê, pois ele afirma que isso é bom (w. 4,10,12,18,21,25) ou até mesmo muito bom (v. 31), já revelando, assim, um aspecto estético da natureza dele. Em Gênesis 2.4-25, o poder de Deus, como parte dominante da natureza dele, está combinado com seu intenso envolvimento em sua criação, em espe­ cial, na ordem que deu para a humanidade: “Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra!” (Gn 1.28). O domínio do homem é derivativo e deve, primeiro, ser expresso como um tipo de teste no qual ele fora designado o administrador dos assuntos de um mero jardim. Mas o homem deve sempre lembrar que está a serviço do Regente do universo todo. O desafio para a hege­ monia humana vem na forma de uma reversão das esferas de soberania. Um animal (que em uma revelação posterior se constata ser Satanás; Ap 20.2) ques­ tiona o papel limitado do homem e da mulher, sugerindo que Deus zelava por ter uma soberania inconteste, guardando-a egoisticamente da humanidade. As­ sim, o primeiro casal questiona o senhorio de Deus com um ato de rebelião contra ele, comendo do fruto proibido. O resultado disso foi a queda, a subju­ gação da serpente e o banimento do homem do jardim, lugar no qual mostrou ser incapaz de governar como vice-regente de Deus. Do começo ao fim da narrativa da queda, registrada em Gênesis 3, a carac­ terística fundamental da identidade de Deus — a aliança soberana dele — é entendida pelo uso regular do nome S en h o r Deus (w. 1,8,9,13,14,21-23). A exceção notável está nos versículos 1 -5, em que a serpente fala e, apenas aí, ocorre o epíteto Eloím. A razão para isso está evidente: embora o poder de Deus como A a u t o b k x ; r a f ia o h d e u s 57 Moisés que uma vez que o êxodo ocorra, os egípcios saberiam que ele é o Senhor (Êx 7.5). Na verdade, os próprios conselheiros do faraó, depois de uma série inicial de pragas, são obrigados a declarar: “Isso é o dedo de Deus” (Êx 8.19). No fim, até mesmo o faraó concorda relutantemente que pecou “contra o S e n h o r , o seu Deus” (Êx 10.16), confessando, assim, tacitamente sua subserviência ao Deus de Israel. Na época dos juizes, Gideão alcançou uma vitória esmagadora sobre os inva­ sores midianitas e foi recompensado com o pedido do povo de que os governasse e estabelecesse uma dinastia de reis de seus descendentes (Jz 8.22). Ele recusou a oferta, dizendo: “O S e n h o r reinará sobre vocês” (v. 23). Em uma linha similar, Samuel, depois dos israelitas exigirem um rei igual aos das nações vizinhas, pro­ testou até o S e n h o r lhe dar permissão para lhes garantir um rei, permissão essa acompanhada do solene lembrete: “Não foi a você que rejeitaram; foi a mim que rejeitaram como rei” (ISm 8.7). Trezentos e cinqüenta anos depois, os assírios foram contra Judá com seus enormes exércitos, e os enviados de Senaqueribe desafiaram a soberania de Iavé vangloriando-se de como os outros deuses não foram capazes de opor-se ao grande rei. Ezequias responde à arrogante manobra com uma oração na qual trata ao Senhor como aquele que “reinas em teu trono, entre os querubins, só tu és Deus sobre todos os reinos da terra” (2Rs 19.15). Mais tarde ainda, o po­ deroso Nabucodonosor, da Babilônia, tendo sido humilhado pelo poder do Deus de Israel, confessa que “o Reino [de Iavé] é um reino eterno; o seu domínio dura de geração em geração” (Dn 4.3; cf. 4.34,37; 6.26,27). A mais enérgica expressão da soberania de Deus vem da pena dos poetas inspirados que enunciam, de forma normativa, quão importante essa faceta da natureza de Deus era para a comunidade de fé do Antigo Testamento. Essas expressões estão reunidas de forma mais clara e conveniente nos chamados “salmos da realeza de Iavé” (SI 47,93,95-99). Eles serão analisados com mais detalhe em um ponto mais apropriado,10 assim, nesse ponto, apenas chamamos a atenção para o fato de que a noção da soberania divina que tem raiz no livro de Gênesis e nos outros primeiros textos permanece uma noção dominante em todo o testemunho canônico. A ONIPOTÊNCIA DE DEUS Concomitante à soberania de Deus — na verdade, fluindo dela — estão inúmeras características adicionais que natural e necessariamente completam esse 10 Veja p. 546-551. 58 TKOLOG1A DO ANTIGO TESTAMENTO aspecto central do ser dele. A primeira entre essas, no registro inspirado, é seu ilimitado poder, ao qual os teólogos, em geral, chamam de onipotência (“No princípio Deus criou"-, Gn 1.1). Pode-se argumentar que a onipotência é inerente à divindade, mas o Antigo Testamento não fornece sustentação apologética em defesa dessa dedução teológica; antes, ele oferece evidência do poder de Deus por meio de seus atos poderosos. Conforme já observado, esses atos começam com as narrativas da criação, especificamente com a irresistivelmente simples declaração: “No princípio Deus criou os céus e a terra” (Gn 1.1). Com apenas sete palavras hebraicas todo o universo está realizado e é dito que veio à existência do nada. Só Deus pré-existe a tudo o mais, e ele, com seu poder, criou tudo, exceto a si mesmo. Além de tudo, ele fez tudo isso apenas falando a palavra, pois o mundo, como uma exten­ são dele mesmo (e na plenitude da revelação do Novo Testamento, é identificado com a pessoa mesma dele [Jo 1.14]), possui energia ilimitada.11 A onipotência de Deus expressa em sua obra de criação é elaborada no salmo 89, no qual o poeta afirma: “Os céus são teus, e tua também é a terra; fundaste o mundo e tudo o que nele existe. Tu criaste o Norte e o Sul; o Tabor e o Hermom cantam de alegria pelo teu nome. O teu braço é poderoso; a tua mão é forte, exaltada é tua mão direita” (SI 89.11-13). O salmo 104, falando das grandes criaturas marinhas, observa que elas existem apenas para o prazer de Deus, e que se ele tirasse sua mão sustentadora, elas pereceriam. Elas, por sua vez, são criadas quando ele envia adiante seu Espírito doador devida (SI 104.25-30; cf. Jó 33.4; Ez 37.9).12 Isaías, de todos os profetas, é o que tem mais a dizer a respeito do assunto da onipotência de Deus conforme manifestada na natureza. Em uma série de diatribes polêmicas, ele compara a impotência (e, na verdade, a inexistência) dos deuses dos pagãos com Iavé, o grande Deus de Israel. Encontramos esses discur­ sos polêmicos, em especial, em Isaías 40— 55.13 Atraindo a atenção para ima­ gens feitas pelo homem com todos seus sinais de instabilidade e decadência, o profeta incita seus ouvintes a levantar os olhos para o céu acima e ver as estrelas e os planetas. “Quem criou tudo isso?”, pergunta ele. “Aquele que põe em mar­ cha cada estrela do seu exército celestial, e a todas chama pelo nome. Tão grande 11 Para a noção do Oriente Próximo da Antiguidade da palavra como “meio de poder que efetivamente influencia os eventos”, veja Walther Eichrodt, Theology o f the Old Testament, vol. 2, trad. John Baker, Filadélfia: Westminster, 1967, p. 69-71. 12 Patrick D. Miller, “The Poetry o f Creation: Psalm 104”, The Way o f the Lord, Tiibin- gen: Mohr Siebeck, 2004, p. 178-92. 13 Eugene H. Merrill, “Isaiah 40— 55 as Anti-Babylonian Polemic”, Grace Theological Journal 8/1, 1987, p. 3-18. A a u t o b i o g r a f ia d e d e u s 59 é o seu poder e cão imensa a sua força, que nenhuma delas deixa de comparecer!” (Is 40.26). Claro que a resposta é evidente por si mesma. Deus criou todas as coisas, e ele, ao chamá-las pelo nome, afirma controle soberano sobre elas.14 Essas palavras não são dirigidas aos pagãos, mas ao próprio povo de Deus que sempre corre o risco de cair no paganismo. Eles têm de entender, principal­ mente em seu momento de necessidade, que ele, o Criador, é aquele que pode vir e viria os socorrer (Is 41.20). No primeiro cântico do servo (Is 42.1-9), em apoio ao servo do Senhor, o Senhor promete estar com ele em sua desafiadora missão de ser a luz das nações, apelando para seu próprio poder onipotente como Criador. “É o que diz Deus, o Senhor, aquele que criou o céu e o estendeu, que espalhou a terra e tudo o que dela procede, que dá fôlego aos seus moradores e vida aos que andam nela: ‘Eu, o Senhor, o chamei para justiça; segurarei firme a sua mão”’ (Is 42.5,6a). Aqui o chamado de Deus para servir está escorado pelo espantoso poder que ele demons­ trou na criação do mundo. Em um sentido um tanto distinto, Deus também criou Israel, isto é, fez Israel um povo que não era antes. Para assegurar a seu povo que estaria com eles e os libertaria em um tipo de segundo êxodo, o Senhor ordenou-lhes que não tivessem medo, pois ele é “aquele que o criou” (Is 43.1). Por isso, eles são seu povo escolhi­ do e especial, os objetos da graça e do amor dele. Eles, os que foram chamados pelo nome dele, retornariam para casa a salvo do exílio babilônio e até mesmo além dele, pois eles, diz ele, foram criados “para a minha glória” (v. 7). O lado irônico de Israel ter sido criada por Deus foi a tolice da nação de desafiar o Criador, similar ao vaso de barro desafiando o oleiro (Is 45.9,10). Fazer isso é o mesmo que lutar com o Todo-poderoso, o Onipotente, que não só criou Israel, mas também a terra e as pessoas que vivem nela. Na verdade, a soberania dele se estenderia até o ponto de levantar alguém (a saber, Ciro) que libertaria o povo de Deus do cativeiro e permitiria que retornassem para sua terra.15 Todo esse poder divino está implícito na onipotência de Deus. Ele disse de si mesmo: “Minhas próprias mãos estenderam os céus; eu dispus o seu exér­ cito de estrelas” (Is 45.12). Assim, a criação fornecia a credibilidade para crer em Deus não apenas no presente, mas também no futuro. 14 Nesse caso, Gerhard von Rad, Genesis: A Commentary, trad. John H. Marks, Lon­ dres: SCM , 1961, p. 81; para uma interpretação diferente, veja George W. Ramsey, “Is Name-Giving an Act o f Domination in Genesis 2.23 and Elsewhere?”, CBQ 50, 1988, p. 24-35. 15 Para a dita “criação teológica” em Isa/as 40— 55, veja William J . Dumbrell, Cove- nant and Creation, Nashville: Thomas Nelson, 1984, p. 190-92. 62 TEOI.OGIA DO AN TIGO TESTAMENTO Deus era comprobatório, designado para levar à glória dele mesmo. Salmos 77 apresenta o mesmo ponto: “Tu és o Deus que realiza milagres; mostras o teu poder entre os povos” (v. 14). Da mesma forma, Davi exclamou: “Anunciarão o poder dos teus feitos temíveis, e eu falarei das tuas grandes obras” (SI 145.6). E o saltério finaliza com a ordem: “Louvem-no pelos seus feitos poderosos, lou­ vem-no segundo a imensidão de sua grandeza!” (SI 150.2). O evento histórico paradigma do Antigo Testamento foi o êxodo do povo de Deus do Egito, uma libertação tão espetacular que era celebrada por uma festa anual — a Páscoa e o pão sem fermento — e servia como um protótipo dos atos salvadores de Deus no futuro. Até hoje, os judeus praticantes traçam sua raiz nacional ao êxodo e à aliança do Sinai, que aconteceu imediatamente após o êxodo. De todos os atributos de Deus celebrados pelo êxodo, nenhum é mais proeminente que a onipotência dele. Contra todas as probabilidades, Iavé libertou uma desorganizada multidão de escravos amedrontados e confusos das garras da nação mais poderosa do mundo, a dinastia dezoito do Egito, e, além disso, libertou-os através do mar! Não é de surpreender que o narrador menci­ one que “Israel viu o grande poder do S e n h o r contra os egípcios, temeu o S e n h o r e pôs nele a sua confiança, como também em Moisés, seu servo” (Êx 14.31). O cântico de Moisés, composto como resultado da travessia do mar de Juncos, proclama: “ S e n h o r , a tua mão direita foi majestosa em poder. SENHOR, a tua mão direita despedaçou o inimigo” (Êx 15.6; cf. v. 21). Mais tarde, Moisés rememorando o êxodo em face da ameaça de Deus de destruir Israel por causa da idolatria dessa nação, lembra o Senhor que Israel era a posse especial do Senhor, o povo redimido por intermédio da “tua grandeza e [que] tiraste da terra do Egito com mão poderosa” (Dt 9.26; cf. v. 29). O livro de Salmos também teologiza o evento histórico do êxodo, especial­ mente o salmo 78 que, na verdade, é uma confissão da fé de Israel no Deus que, por meio de atos poderosos, transformou-a na nação da aliança.18 O poeta roga à comunidade: “Não os [esses ensinos] esconderemos dos nossos filhos; contare­ mos à próxima geração os louváveis feitos do Senhor, o seu poder e as maravilhas que fez” (v. 4). O foco especial é o êxodo (v. 13) e a bondade de Deus em prover para as tribos no deserto do Sinai (v. 26). Infelizmente, logo, lamenta ele: “Não se lembravam da sua mão poderosa, do dia em que os redimiu do opressor” (v. 42). Salmos 106 bate no mesmo refrão: “No Egito, os nossos antepassados não 18 Hans-Joachim Kraus sugere que “o salmo 78 celebra as grandes obras de Iavé. O salmo não se cansa de descrever as maravilhas da atividade histórica básica de Deus”. Psalms 60-150, trad. Hilton C. Oswald, Mineápolis: Fortress, 1993, p. 130. A AUTOBIOGRAFIA DE DEUS 63 deram atenção às tuas maravilhas; não se lembraram das muitas manifestações do teu amor leal e rebelaram-se junto ao mar, o mar Vermelho. Contudo, ele os salvou por causa do seu nome, para manifestar o seu poder” (w. 7,8). A despeito das muitas evidências da onipotência do Senhor, elas não foram suficientes para levar o povo de Deus à perfeita fé da aliança e à submissão. A ONISCIÊNCIA DE D EUS As narrativas da criação não só apresentam o Senhor como o Deus onipo­ tente, mas também como o Deus que conhece tudo, que é completamente sábio. Ele, claramente, tem um plano para a criação (“haja”, “façamos”); e a criação, como parte desse plano desvelado, era determinada por ele e declarada boa (Gn 1.4,10,12,18,21,25,31). Mais especificamente, o relato da criação do homem (entre outras coisas) descreve a “árvore do conhecimento do bem e do mal”, localizada no meio do jardim (Gn 2.9). A combinação de bem e mal não parece tanto sugerir antítese moral como alcance de conhecimento, isto é, onisciência. Parece que comer o fruto da árvore faria com que a humanidade conhecesse pessoalmente toda gama de conhecimento, se não cognitivamente, pelo menos, pela experiência, mas, com certeza, ficaria muito aquém da onis­ ciência divina.19 A serpente, por sua vez, sugeriu que Deus tinha ciúme de sua onisciência e, por isso, proibiu que o homem comesse daquela árvore a fim de proteger sua supremacia nesse aspecto. “Deus sabe que, no dia em que dele comerem seus olhos se abrirão”, disse ela, “e vocês, como Deus, serão conhecedores do bem e do mal” (3.5). Para imenso desapontamento e incalculável perda deles, tudo que eles aprenderam assim que comeram o fruto proibido foi que estavam nus (v. 7). Longe de alcançar onisciência semelhante à de Deus, tudo que eles conheceram foram os terríveis resultados do pecado — ignorância abismal e morte. O Antigo Testamento está repleto de referências ao Senhor como o pos­ suidor de sabedoria, conhecimento e entendimento — todas elas supõem que ele possui todas essas características como essenciais à natureza dele — mas pou­ cos textos, na verdade, descrevem-no explicitamente como sábio ou hábil. Em sua maior parte, a sabedoria e o conhecimento de Deus são dedutíveis, logica­ mente derivados da natureza dele como Deus e inferidos da regularidade e da perfeição de sua criação. No entanto, esses poucos textos relevantes são sufi­ cientes para montar o caso de que a antiga Israel via seu Deus como possuidor de todo conhecimento. 19 Veja, Gerhard von Rad, Genesis, p. 86-87. 64 TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO Dois termos hebraicos essenciais são empregados com referência à cognição de Deus, um deles, em geral, traduzido por sábio, sabedoria (hkm, hokmâ) e o outro, por conhecimento (da'â, da'at).20 O último ocorre no cântico de Ana em que ela descreve o Senhor como “Deus sábio” ( 'êlds'ôt\ lSm 2.3), a gramática e o contexto sugerem que ele conhece todas as coisas, no caso da passagem, o coração do orgulhoso. Jó perguntou se alguém pode ensinar conhecimento (da'at) a Deus (Jó 21.22). A alusão é que não pode, uma vez que ele já sabe todas as coisas. Em outra passagem, Jó declara: “Sua sabedoria (hãkam) é profunda, seu poder é imenso. Quem tentou resistir-lhe e saiu ileso?” (Jó 9.4). Isaías ecoa esse senti­ mento ao descrever Deus como sábio (hãkãm) em sua conduta com os pecadores (Is 31.2). Não obstante, não é de surpreender que a sabedoria de Deus seja de­ senvolvida mais plenamente em conexão com a criação.21 O salmista clamou em maravilhamento e alegria: “Quantas são as tuas obras, Senhor! Fizeste todas elas com sabedoria! A terra está cheia de seres que criaste” (SI 104.24). Ainda mais explícito é o testemunho do sábio que ensinava que “por sua sabedoria {hokmâ) o Senhor lançou os alicerces da terra, por seu entendimento (têbúnâ) fixou no lugar os céus; por seu conhecimento (da'at) as fontes profundas se rompem, e as nuvens gotejam o orvalho” (Pv 3.19,20). A alusão é à criação e aos mananciais de água, e, nos dois casos, a única explicação adequada é a sabedoria de um Deus onisciente. O profeta Jeremias, no meio de um polêmico discurso contra a idolatria, disse que, ao contrário dos pretensos deuses que não fizeram os céus e a terra, foi o Deus de Israel “quem fez a terra com o seu poder, firmou o mundo com a sua sabedoria (hokmâ) e estendeu os céus com o seu entendimento (têbúnâ)” (Jr 10.12). Essas palavras são repetidas ao pé da letra em Jeremias 51.15. Nos dias próximos ao exílio babilônio, quando Judá seria forçada a ir para o ambiente politeísta muitíssimo sofisticado e atraente da Babilônia, era premente que os profetas sustentassem a singularidade de Iavé como Criador e afirmassem a onis- ciência dele não só em predizer uma reviravolta dos eventos, mas também em garantir o resultado auspicioso dessa reviravolta. Um aspecto da onisciência e uma evidência dela é a presciência de Deus, a capacidade dele de conhecer o resultado de todos os eventos futuros sem que seja necessária qualquer condição nem qualificação. Conforme já observamos, Jeremias bateu nessa faceta da natureza de Deus a fim de estabelecê-lo em con­ 20 Veja, respectivamente, Gerald H. Wilson, Í22I1, NIDOTTE 2 :130-34 ; Terence E. Fretheim 17T, NIDOTTE, 2 :409-14. 21 Roland E. Murphy, The Tree o f Life, Nova York: Doubleday, 1990, p. 118-21. A AUTOBIOGRAFIA DE DEUS 67 Diz-se que Abraão adorou o “ S e n h o r , o Deus Eterno”, em Berseba (Gn 21.33). O adjetivo aqui é 'õlatn, de longe o termo mais comum para falar da eternidade de Deus. Deuteronômio 33.27, por sua vez, emprega o sinônimo qedem para descrever o Senhor como “o Deus eterno”. Salmos 90.2 afirma isso na frase: “De eternidade a eternidade tu és Deus”, usando mais uma vez o termo 'õlam. Nessa conexão, o salmista menciona que Deus precedeu todas as coisas que fez na criação. Salmos 93.2, ao falar da natureza eterna do trono de Iavé, aclama: “Tu existes desde a eternidade”, sentimento compartilhado pelo escritor do salmo 106 que fala do Senhor como aquele que existe “por toda a eter­ nidade” (v. 48). Isaías descreveu a figura messiânica por vir como ’ãbVad, “Pai Eterno” (Is 9.6), em algum sentido, aquele que compartilha a natureza eterna de Deus. O mesmo profeta exalta o Senhor como “o Deus eterno, o Criador de toda a terra” (Is 40.28). Isso é dito no contexto da polêmica na qual a transitoriedade dos deuses pagãos é contraposta à permanência do Deus de Israel (cf. w. 18-20). Habacuque fala do Senhor como o eterno {qedem) (Hc 1.12), ao passo que Jeremias, no livro Lamentações, enfatiza a imutabilidade do Senhor de geração em geração (Lm 5.19). A literatura pós-exílica também testifica esse aspecto da natureza de Deus. Os líderes dos levitas, depois de reunir a comunidade judaica na época das festas de outono, falaram do Senhor para o povo como aquele “que vive para todo o sempre” (Ne 9.5). O cronista empregou a mesma fórmula em seu relato do cântico de louvor de Davi por ocasião da mudança da arca para Jerusalém (lC r 16.36). Semelhante ao uso dessas afirmações, temos a asserção de que Iavé vive para sempre. Isso é visto, em especial, nas chamadas fórmulas de juramento, nas quais ele faz promessas, fundamentado em sua existência eterna — “Eu vivo para sempre”, etc. (cf. Dt 32.40; ARC).23 De outro lado, é dito que ele vive “de eternidade a eternidade” (SI 41.13), e ele é tratado como aquele que continua para sempre (SI 92.8). Lado a lado com essas confissões diretas estão as afir­ mações que descrevem o Senhor como a eterna ( 'õlam) Rocha (Is 26.4), aquele que vive para sempre ( 'ad\ Is 57.15), que é luz para sempre ('õlam; Is 60.20) e eterno ( ’õlam) Redentor (Is 63.16). Iavé, alinhado a seu papel de soberano sobre todas as coisas, é rei para sem­ pre (SI 55.19), cujo reino é eterno (SI 145.13). Jeremias fala dele como “o Deus 23 Para a noção da eternidade de Deus como fundamento para a confiabilidade dele nas fórmulas de juramento do Antigo Testamento, veja M. R. Lehmann, “Biblical Oaths”, ZAW 81, 1969, p. 74-92. 68 TEOI.OG1A LX> ANTIGO TESTAMENTO verdadeiro; ele é o Deus vivo; o rei eterno ( ’õlcim)” (Jr 10.10). Ele, como tal, reina para sempre, ponto apresentado explicitamente em Salmos 9.7; 29.10 e 66.7. Em Salmos 102.12, o poeta declara: “Tu, porém, Senhor, no trono reinarás para sempre; o teu nome será lembrado de geração em geração”. Ainda mais enfático é o testemunho de Salmos 146.10: “O Senhor reina para sempre! O teu Deus, ó Sião, reina de geração em geração”. Até mesmo Nabucodonosor, rei pagão, foi forçado a concluir que “o seu reino é um reino eterno ('õlam ); o seu domínio dura de geração em geração” (Dn 4.3; cf. v. 34). Outros traços da essência divina — onipresença, imutabilidade e perfeição de Deus — encontram expressão mais sutil que esses traços cujas raízes já estão embutidas nas narrativas da criação. No entanto, eles aparecem em outras pas­ sagens do registro sagrado e serão comentados, no ponto em que ocorrem, em conexão com o relacionamento de Deus com seu povo e suas obras em favor deles. Até aqui, focamos a natureza de Deus — quem ele é. Voltamo-nos agora ao exame do caráter dele — o que ele faz — conforme revelado canônica e progressivamente no Antigo Testamento. Para usar terminologia teológica padrão, consideraremos os atributos dele, a soma total do que se nos apresenta como o retrato bíblico com toda sua beleza. O CARÁTER DE Ü E U S A SANTIDADE DE ÜEUS Propomos, em concordância com muitos teólogos, que a verdade funda­ mental a respeito do caráter de Deus apresentado na Bíblia é que ele é santo.24 Quase tudo o mais que se pode dizer a respeito dele nasce dessa convicção. Preten­ dem-se, pelo menos, duas coisas com santo: (1) que Deus está separado de tudo o mais que existe (por isso, a esfera semântica de f/</5);25 e (2) que a santidade dele é traduzida em perfeição moral e ética. Uma pletora de passagens deixa isso claro e juntas elas formam a estrutura na qual essa qualidade essencial assume o lugar central. Os dois termos relevantes essenciais são santidade (qõdes) e santo (qãdôs), respectivamente substantivo e adjetivo. A primeira passagem em que os dois termos são usados para Deus é no cântico de Moisés, no qual a letra o descreve 24 Eichrodt propõe que, “de todas as qualidades atribuídas à natureza divina, há uma que, em virtude da freqüência com que ocorre e da ênfase com que é usada, ocupa uma posição de importância singular — a saber, a santidade”; Theology o f the Old Testament, vol. 1, p. 270. 25 Jackie A. Naudé, tínp, NIDOTTE 3 :877-87. A AUTOBIOGRAFIA DF. DF.US 69 como “majestoso em santidade”, incomparavelmente santo em contraposição a todos os outros deuses (Ex 15.11). Davi usa a combinação “beleza da sua san­ tidade”, sugerindo, como Moisés, que a santidade emite uma aura (SI 29.2; ARC). A santidade não é apenas uma abstração, mas produz um efeito tangível sobre todos que entram em contato com ela. Encontramos mais a respeito do aspecto ético da santidade na declaração de lavé: “Jurei pela minha santidade, e não mentirei a Davi” (SI 89.35). O profeta Isaías contribui para a compreensão da santidade de Deus com a observação de que, no dia da redenção do Senhor, seu povo será dominado por sua graça salvadora e “reconhecerá a santidade do Santo de Jacó, e no temor do Deus de Israel permanecerá” (Is 29.23,24). Ezequiel expressa um sentimento semelhante ao dizer que quando Israel testemunhar fielmente a santidade de Deus diante das nações, então “as nações saberão que eu sou o S e n h o r ” (E z 36.23; cf. 38.23). Portanto, a santidade de Deus separa-o e obriga os homens a reconhecê-lo como Senhor e apenas a ele. A declaração-fórmula de que Deus é santo é enunciada pela primeira vez no livro de Levítico, livro esse mais preocupado que qualquer outro com a san­ tidade em geral. Aqui, o Senhor ordena a seu povo: “Consagrem-se e sejam santos, porque eu sou santo” (Lv 11.44; cf. v. 45; 19.2; 21.8). Levítico 20.26 apresenta uma definição formal do que isso quer dizer, nessa passagem, o Senhor, depois de ordenar que seu povo seja santo, diz: “Os separei dentre os povos para serem meus”. Esse, pelo menos em parte, é o sentido de ser santo. Outra faceta dessa verdade é a ordem: “Não profanem o meu santo nome. Eu serei reconhe­ cido como santo pelos israelitas” (Lv 22.32; cf. Êx 20.7; Dt 5.11). A santidade incomparável de lavé, embora sugerida no cântico de Ana (1 Sm 2.2), é muito mais bem elaborada no saltério e no livro de Isaías. Davi afirma claramente que Deus é santo e, por essa razão, é digno de ser adorado (SI 22.3); e um poeta anônimo acrescenta a essa conexão de louvor e santidade ao se referir ao Senhor como o Santo de Israel (SI 71.22; cf. 2Rs 19.22), epíteto desenvolvi­ do plenamente por Isaías. Salmos 89.18 conecta a realeza humana a uma dádiva do Santo de Israel. Mas nenhum salmo retrata esse atributo mais que o salmo 99, o qual declara que o nome de Deus é santo (v.3), que ele deve ser adorado precisamente por ser santo (v. 5) e que deve ser exaltado acima de todos, mais uma vez, porque “o Senhor, o nosso Deus, é santo” (v. 9). Isaías, que viu o Senhor assentado ao trono no templo e ouviu os louvores dos serafins que clamavam: “Santo, santo, santo”, era, de todos os profetas, o mais impressionado com a santidade de Deus. Como resultado dessa visão beatífica, 72 TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO tudo que ele faz é reto. Conforme um salmista coloca: “A tua mão direita está cheia de justiça” (SI 48.10; cf. SI 65.5). Ele traz salvação como uma expressão de sua retidão (SI 71.2), e Davi testifica que foi salvo de dificuldades por meio da retidão de Deus (SI 143.11). Isaías traça um paralelo entre a retidão e a salvação do Senhor (Is 46.13). Para Isaías, a salvação é produto da retidão de Deus, pois ela é um sinal da vindicação do povo do Senhor que repousa nesse aspecto do caráter de Deus. Melhor de tudo, esse tipo de retidão não é transitório nem está preso ao tempo, antes ela, por ser inerente à natureza de Deus, é eterna (SI 111.3; 112.3,9; 119.142). Tudo isso leva o povo de Deus a louvá-lo por sua retidão (SI 35.28) e a proclamá-la para todos que queiram ouvir. Davi declarou que não esconde a retidão de Deus em seu interior, mas fala publicamente dela (SI 40.10). Davi, ao rogar perdão ao Senhor pelo homicídio e pelo adultério que cometeu, roga que, uma vez que tenha sido perdoado, “a minha língua aclam[e] a tua justiça” (SI 51.14). Deus foi reto ao condenar esse pecado, mas ele também é reto em fornecer um meio de expiação para o pecado. Esses atos de graça, fundamentados como são na retidão, e não na mera pena, evocam louvores daqueles que os vivenciam (SI 89.16). A j u s t i ç a d e D e u s Justiça é a aplicação da retidão, em especial, em situações de prescrição legal. Nas situações em que a lei é interpretada de uma maneira reta, a justiça preva­ lece. Portanto, não é de surpreender que um dos importantes atributos de Deus registrado no Antigo Testamento seja que ele é justo. Também não é de sur­ preender que as palavras-chave para justiça (mispat) e retidão (sedeq, sédãqâ) nor­ malmente ocorram juntas, em geral em paralelo, pelo menos, nos textos poéticos.27 Na verdade, os termos, às vezes, compartilham a mesma tradução nas várias versões da Bíblia. Também é digno de nota o fato de que a noção da justiça de Deus raramente é encontrada fora das passagens poéticas. Não há dúvida de que isso é para ser explicado por sua sinonímia com retidão e outros termos mais comuns aos quais está conceitualmente ligado. O primeiro desses textos é Deuteronômio 32, a canção de Moisés, em que o grande legislador declara que as “obras [do Senhor] são perfeitas, e todos os seus caminhos são justos” (v. 4; mispaf). A parelha seguinte de versos chama o Senhor de fiel (èmúnâ), justo (saddiq) e reto (yãsãr), todos esses termos estão no mesmo domínio semântico. O sentido dos termos na aplicação prática é expli­ 27 Veja, respectivamente, Peter Enns, £322?Í2, NIDOTTE 2 :1142-44; David J. Reimer, pnu, NIDOTTE, 3:744-69. A AUTOBIOGRAFIA DF. OF.US 73 cado em um rexto legal de Deuteronômio: “Ele defende a causa do órfão e da viúva e ama o estrangeiro” (10.18). Não é inesperado que em um livro, como o de Jó, cujo principal tema tem que ver com a retidão e a imparcialidade do Senhor, a questão da justiça dele ocor­ ra diversas vezes no livro. Bildade pergunta: “Acaso Deus torce a justiça?” (Jó 8.3), claro que esperando receber uma resposta negativa. Jó estava convencido da inte­ gridade de Deus a esse respeito e, assim, pergunta se alguém pode chamar o Se­ nhor para prestar contas (9.19; LXX). Eliú, como Bildade, acha inimaginável Deus ser qualquer coisa que não justo (34.12) e, combinando as noções de retidão e justiça, afirma que, para Deus, é impossível fazer mau uso de seu poder ilimitado (37.23). Salmos 9 põe a retidão (sedeq) de Deus em paralelo com sua justiça (aqui mêsãrim), proclamando que ele julga e governa de acordo com esses padrões (v. 8). Davi, por sua vez, define çèdãqà e mispat em paralelismo sinônimo, compa­ rando o primeiro com o cume de grandes montes, e o outro com a profundeza do mar insondável de tão inexauríveis que elas são (SI 36.6). Salmos 89.14 reúne uma coletânea de termos que lançam luz no papel de Deus como sobera­ no e nos atributos essenciais a isso: “A retidão (sedeq) e a justiça (mispaf) são os alicerces do teu trono; o amor (hesed) e a fidelidade ( ’emet) vão à tua frente”. Os dois últimos termos, embora sejam ocasionalmente encontrados relacionados com a justiça de Deus, ficam mais à vontade em outras situações a serem explo­ radas depois. Em um cântico atribuído a Salomão, o rei (ou alguém que fala em nome dele) roga a Deus para que revista de “justiça” (mispat) o rei e de “retidão” (sèdãqâ) o “filho do rei” (SI 72.1). Ou seja, as qualidades características do Senhor como governante também são necessárias para os reis e outros que governam em nome dele. No dia escatológico, em particular, o Senhor “julgará o mundo com justiça (sedeq) e os povos, com retidão (mêsãrim)” (SI 98.9; cf. 96.13). A justiça preva­ lecerá porque ela é encontrada na retidão impecável de Deus. “Rei poderoso, ami­ go da justiça!”, diz outro poeta, e que “estabeleceste a eqüidade” (SI 99.4). Por causa dessas características e verdades, Davi pôde prometer: “Cantarei a lealdade (hesed) e a justiça (mispat). A ti, Senhor, cantarei louvores!” (SI 101.1). O livro de Isaías, localizado próximo do saltério, tem muito a dizer a respeito da justiça de Deus. O profeta, ao descrever os terríveis dias de julgamento a cair sobre Israel, faz a irônica declaração de que “o Senhor dos Exércitos será exaltado em sua justiça (mispat)-, o Deus santo se mostrará santo em sua retidão (sédãqá)" (Is 5.16). Até mesmo o condenado terá de admitir a eqüidade do julgamento 74 TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO que sofreu. O primeiro dos cânticos do Servo enfatiza muito a justiça escatológica de Deus. O Servo, capacitado pelo Espírito de Deus, “trará justiça (mispat) às nações” (Is 42.1) e “com fidelidade fará justiça” (v. 3). E ele não esmorecerá em seu esforço para isso “até que estabeleça a justiça na terra” (v. 4). O a m o r d e D e u s O Deus de justiça e julgamento também é o Deus de amor, o atributo dele que o incita a buscar um remédio para o pecado e a ser capaz de conter sua ira. Muitos termos são comumente traduzidos por amor, um deles (hesed), por ter nuança especialmente alta e uso importante por si mesmo, será examinado mais tarde. No momento, voltaremos nossa atenção para a raiz 'hb e suas variações. Embora esse lexema tenha o sentido comum de grande afeição com outras nuanças emocionais semelhantes, um estudo recente indicou que, em especial, no contexto das alianças ele é praticamente sinônimo de bhr, “escolher”.28 Isto é, Deus escolhe porque ama e, para ele, amar, em muitos casos, equivale a escolher (cf. Ml 1.2). Primeiro de tudo, isso fica claro no fato de que o Senhor, por amar ( ’ãhab) os patriarcas ancestrais de Israel e por ter escolhido (bãhar) os descendentes deles, foi que ele libertou a nação do Egito (Dt 4.37; cf. 7.8; 10.15). Fica claro que, aqui, o amor de Deus é eletivo, não emotivo, embora, sem dúvida, possa haver um elemento emotivo por trás dele. Essa idéia de que Deus também demonstra amor no sentido comum desse sentimento está em vista em Deuteronômio 7.13, passagem em que o amor dele resulta em bênção, e, em Deuteronômio 23.5, passagem em que a maldição de Balaão foi transformada em bênção para Israel pura e simplesmente por causa do forte afeto que Deus sente por seu povo. Os dois tipos de amor divino são atestados do começo ao fim do registro do Antigo Testamento. A nuança eletiva está implícita no amor de Deus por Jacó, cuja herança o Senhor escolheu (SI 47.4), e em seu amor pelo monte Sião, isto é, Judá, que ele também escolheu (SI 78.68). Israel era o objeto especial do amor dele seja como for que esse amor deva ser entendido. Isaías afirma que o Senhor trocará as nações por Israel por causa de seu amor por ela (Is 43.4); e Jeremias, no início da descrição da nova aliança, fala de forma ainda mais vigorosa do amor de Deus por seu povo: “Eu a amei com amor eterno; com amor leal (hesed) a atrai” (Jr 31.3). Essa também é a mensagem de Oséias, uma mensagem particularmente lancinante em vista do amor não correspondido do próprio pro­ 28 William L. Moran, “The Ancient Near Eastern Background o f the Love o f God in Deuteronomy”, CBQ 25, 1963, p. 77-87. A AUTOBIOGRAFIA DE DEUS 77 como um homem justo e íntegro (v. 9), mas não é essa avaliação que o qualifica para ser salvo. Antes, foi a escolha arbitrária dele por parte do S e n h o r .31 Essa noção de graça fica clara no testemunho de Jacó que atribui todo seu sucesso à graça de Deus, a despeito de seu comportamento tortuoso em relação a seu irmão Esaú (Gn 33.11). Moisés, em seu encontro com o Senhor no Sinai, lembra o Senhor de que tinha lhe contado que encontrara graça (hên) nele. Se era assim, continua ele, queria que essa graça continuasse para que pudesse conhecer o Se­ nhor e seus caminhos ainda melhor (Êx 33.12,13). Em resposta a isso, o Senhor faz a memorável declaração, que realmente esclarece a natureza monergística da graça: “Terei misericórdia (hannún) de quem eu quiser ter misericórdia, e terei compaixão (ra/mm) de quem eu quiser ter compaixão” (Êx 33.19; cf. 34.6). Como e por que Deus concede graça permanece no reino do mistério no que diz res­ peito ao testemunho bíblico. Gideão fez um pedido similar ao de Moisés no que diz respeito a também ter pedido um ato de Deus fundamentado na graça (Jz 6.17). Davi, por sua vez, esperou pela graça do Senhor de poupar seu filho ilegítimo, mas não recebeu essa graça (2Sm 12.22). Jonas sabia que, na análise final, Deus não destruiria Nínive, pois, conforme ele colocou, “sabia que tu és Deus misericordioso e com­ passivo, muito paciente, cheio de amor” (Jn 4.2; cf. SI 86.15; Ne 9.17). Clara­ mente, não há aqui nenhum indício de que Nínive merecesse ser poupada, fato que contribuiu demais para a frustração de Jonas com os caminhos de Deus. Isaías fez a importante observação de que o Senhor deseja ser gracioso e compassivo, por essa razão, quando o povo dele clama por ele, ele responde em graça (Is 30.18,19). O próprio Isaías pediu a graça de Deus (Is 33.2), da mesma maneira que muitos outros. A grande bênção sacerdotal implora que Deus “faça resplandecer o seu rosto sobre ti e te conceda graça” (Nm 6.25). Os salmistas fazem muitas vezes esse apelo (por exemplo, SI 25.16; 67.1; 119.29,58), e Malaquias incita seus compatriotas a orar com ele para que Deus seja gracioso (Ml 1.9). De vez em quando parece que a graça é incerta. Salmos 84.11 liga graça e honra com o caminhar com integridade. No entanto, a gramática aqui sugere que o viver piedoso não é um pré-requisito para a graça, mas o fruto 31 Mathews menciona que “não há antecedente de nenhum ato de justiça de Noé que explicasse o lugar de favorecido que ocupava diante de Deus. Esse fato aponta teo­ logicamente para o propósito eletivo de Deus por Noé, demonstrando que o patriar­ ca já desfrutava de um relacionamento com o Senhor antes do registro de seus atos de obediência”. Kenneth A. Mathews, Genesis 1— 11:26, NAC IA, Nashville: Broad- man & Holman, 1996, p. 356-57. 78 TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO dela.32 É verdade que Deus concede graça para o humilde (Pv 3.34), mas isso não acontece porque são humildes. Ele é gracioso por causa de seu grande amor e misericórdia. Por sua vez, se a graça não depende do mérito do ser humano, ela, pelo menos, fundamenta-se no caráter e nas promessas de Deus. Em relação ao último, o historiador observou que a preservação do rei Jeoacaz e de Israel em face da opressão do inimigo aconteceu porque “o S e n h o r foi bondoso para com eles, teve compaixão e mostrou preocupação por eles, por causa da sua aliança com Abraão, Isaque e Jacó” (2Rs 13.23). Deus é gracioso por natureza, quase que por definição, mas a graça dele, pelo menos de vez em quando, tem ligação com suas promessas solenes. Mesmo assim, ele toma a iniciativa de produzir a graça, e não os beneficiários dela. A c o m p a i x ã o d e D e u s O amor, a piedade, a graça e a compaixão de Deus estão intricadamente relacionadas; na verdade, os termos usados para cada um desses atributos são normalmente intercambiados. No entanto, pela etimologia e pelo uso, pode-se montar o caso de que a compaixão (rahãmim) tem uma forte qualidade emoti­ va, qualidade emotiva essa mais usual no contexto humano. A compaixão de Deus, com freqüência, é expressa como o sentimento que o pai nutre pelo filho indefeso. Em inúmeras circunstâncias diz-se que o Senhor é compassivo (Êx 34.6; Dt 4.31; SI 86.15; 103.8; 111.4; 145.8; Jn 4.2; J1 2.13; Ne 9.31; 2Cr 30.9) ou tem compaixão (SI 25.6; 116.5; 119.156; 145.9; Is 49.10; 54.10; 63.7; Lm 3.22). Foi por causa dessa compaixão que ele, no passado, chamara, guiara e libertara seu povo (SI 78.38; 2Rs 13.23; Ne 9.19,27,28) eserá por causa de sua compaixão que ele os salvará no futuro, até mesmo nos tempos escatológicos (Dt 30.3; SI 102.13; Is 14.1; 49.13; 54.7,8; 55.7; 60.10; Os 1.7; 2.19,23; Mq 7.19; Jr 12.15; 30.18; 33.26; 42.12; Ez 39.25; Zc 1.16). Às vezes, ele retira sua graça com resultados desastrosos (Is 63.15; Jr 16.5) e sempre há o temor de que ele faça isso (SI 40.11; 77.9; Is 9.17; 27.11; Os 1.6; 2.4; Jr 13.14; Zc 1.12). Todavia, houve muitas vezes petições urgentes diante das quais ele não pros­ seguiu com essa possibilidade, ao contrário, estendeu sua graça (SI 79.8; 119.77; Hb 3.2). Às vezes, parece haver contingência para que a compaixão de Deus seja es­ tendida. Moisés, ao discutir a possibilidade do surgimento de idolatria em Israel, 32 Artur Weiser, The Psalms, Filadélfia: Westminster, 1962, p. 569. A AUTOBIOGRAFIA l)F. DEUS 79 menciona que a ira de Deus seria desviada e sua compaixão seria demonstrada se o povo afastasse de si os que praticavam idolatria (Dt 13.17,18). Salmos 103.13 compara a compaixão do Senhor com a de um pai pelo filho e diz que ele “tem compaixão dos que o temem”, ou seja, dos que são totalmente submissos a ele. A compaixão, por outro lado, pode ser preveniente, fornecendo o fundamento para o perdão. Davi, em sua extraordinária oração de arrependimento, implora ao Senhor para que “por tua grande compaixão apaga as minhas transgressões” (SI 51.1). Claramente, Davi tinha consciência de que só por meio do amor compassivo de Deus por ele, ele poderia ser restaurado. A ALIANÇA DE FIDELIDADE DE DEUS Encontramos comumente o termo hesed, uma das palavras teológicas mais ricas do Antigo Testamento, em paralelo ou em justaposição com 'hh, hnn, rhm e outros termos na esfera semântica de amor ou compaixão. No entanto, esse ter­ mo é um sinônimo muitíssimo especializado e está intimamente ligado à noção de aliança e é encontrado freqüentemente em companhia de ’emet/’emímâ, fideli­ dade/fiel. É o amor de Deus que o compromete em um relacionamento, ou curso de ação, no qual ele se compromete por meio da aliança.33 Uma das descrições mais freqüentes do Senhor é de que ele é “grande em hesed’ (Nm 14.18; Jn 4.2; J1 2.13; Ne 9.17) e é dito ainda mais comumente que o “hesed dura para sempre” (SI 106.1; cf. SI 107.1; 118.1-4,29; 2Cr 5.13; 7.3,6; 20.21). A segunda linha da parelha de versículos que compõem todos os 26 versículos do salmo 136 consiste desse refrão. Mas o hesed dele tem objeti­ vos específicos — propósitos e objetivos pelos quais ele é exercido. Abraão e José estavam entre os indivíduos que foram beneficiados com o hesed divino (Gn 24.27; 39.21), e eles apenas vivenciaram as experiências típicas vivenciadas pelo povo de Deus que se junta a ele em um relacionamento especial. As noções de hesed e salvação, ou libertação, às vezes, estão associadas em uma conexão de causa e efeito. Os salmistas rogam que o Senhor os salve por meio de seu hesed (SI 6.5; 31.16; cf. 69.13; 85.7; 109.21; 119.41) e, por sua vez, oravam pela presença do hesed dele (SI 33.22) ou reconheciam a necessidade que tinham do hesed dele (SI 13.6; 25.7; 44.27; 51.1; 64.3). Entre as bênçãos do hesed de Deus estava a condução do povo dele (Ex 15.13), o senso deles do perdão fundamentado no hesed dele (Nm 14.19) e a presença deste em todos os dias da 33 Um estudo fundamental desse rico termo é o de K. D. Sakenfeld, The Meaning o f hesed in the Hebrew Bible: A New Inquiry, HSM 17, Chico, Calif.: Scholars, 1978. 82 TEOLOGIA IX ) ANTIGO TESTAMENTO também encontram expressão na promessa do Senhor para seu povo arrependi­ do e restaurado registrada em Oséias: “Eu me casarei com você com fidelidade, e você reconhecerá o Senhor” (O s 2.20). Pode-se perceber uma asserção ainda mais concreta da fidelidade de Deus como mantenedor da aliança na ligação entre os verbos 'mn e bhr (escolher) em Isaías 49.7: “‘Reis o verão e se levantarão, líderes o verão e se encurvarão, por causa do Senhor, que é fiel (ne emãn), o Santo de Israel, que o escolheu (wciyynbhãrekãY”. O verbo escolher ocorre regularmente como um termo técnico para aliança de eleição (cf. Dt 14.2; SI 78.70; 105.26; 1 Rs 3.8).35 A escolha de Israel por Deus foi uma expressão de sua fidelidade em cumprir as promessas feitas aos patriarcas; e a fidelidade dele também era uma garantia da natureza contínua e permanente da aliança. Isaías 61.8 apresenta o mesmo ponto: “Em minha fidelidade ( ’ernet) os [Israel] recompensarei e com eles farei aliança eterna”. O que torna a aliança eterna é a confiabilidade do Deus de Israel. Jeremias pôde com boa razão exclamar “Graças ao grande amor (hesecl) do SENHOR é que não somos consumidos, pois as suas misericórdias (rahõmim) são inesgotáveis. Renovam-se cada manhã; grande é a sua fidelidade ( 'êmúnâ)\” (Lm 3.22,23). A p a c i ê n c i a d e D e u s O heseci e a fidelidade de Deus pressupõem, em grande extensão, que ele é paciente, longânime e não se apressa em exercer seu terrível julgamento. A ausência de algum termo técnico no Antigo Testamento para paciência, especialmente aplicado a Deus, corrobora essa afirmação. Na verdade, uma perífrase deve ser suficiente para isso — ’erek appaytm — cujo sentido literal é “tardio em irar-se”. Isso não sugere que ele nunca é um Deus irado. A seção seguinte, na verdade, deixará claro que a ira é um importante aspecto do caráter santo e reto de Deus. Mas a ira dele entra em ação apenas quando a paciência dele foi exaurida. A paciência do Senhor é expressa em um refrão recorrente, quase uma fór­ mula, encontrado pela primeira vez no livro de Êxodo. O Senhor, após o fiasco do bezerro de ouro, apareceu para Moisés com esta elaborada asserção de si mesmo: “S e n h o r , S e n h o r , Deus compassivo e misericordioso, paciente, cheio de amor e de fidelidade” (Êx 34.6). No entanto, no versículo seguinte, Moisés continua para dizer que o Senhor “não deixa de punir o culpado” (v. 7). A paciência dele é grande, mas não é inesgotável. Em outra cena de rebelião, dessa vez pro­ vocada pelo relato negativo dos dez espiões, Moisés invoca a ira de Deus, mas ■V5 Horst Seebass, T G , TDOT 2:82-86. A AUTOBIOGRAFIA DH DEUS 83 suaviza seu pedido com o lembrete de que “o S en h o r é muito paciente e grande em fidelidade, e perdoa a iniqüidade e a rebelião” (Nm 14.18). O clichê continua com o mesmo palavreado em praticamente todo o Antigo Testamento (SI 86.15; 103.8; 145.8; Jn 4.2; Na 1.3), completado pelo resumo de Neemias da história da rebelião de Israel. Embora os ancestrais deles merecessem o terrível julgamen­ to de Deus a ponto de serem abandonados por ele, o Senhor é tardio em irar-se e, por isso, não os abandonou (Ne 9.17). A r a i v a / i r a d e D e u s Deus pode deter sua ira por um tempo, mas, no fim, diante da desobediên­ cia incorrigível, ele tem de exercê-la. A percepção de que a ira, de alguma manei­ ra, é um aspecto negativo indigno de um Deus de amor e compaixão deve ser examinada de forma mais atenta e profunda contra o pano de fundo da inefável santidade, retidão e justiça do Senhor. Para Deus, nunca ficar com raiva seria a negação da plenitude do caráter dele no aspecto que permitiria que ele tolerasse o mal, algo diametralmente oposto ao que é o cerne da essência dele — a san­ tidade absoluta.36 Em quase todos os casos registrados no Antigo Testamento, o Senhor não sentiu raiva contra a humanidade em geral, mas contra seu povo. A raiva de Deus queimou contra Moisés pelas desculpas apresentadas por este quando foi chamado para conduzir Israel para fora do Egito (Êx 4.14) e, mais uma vez, no irrefletido incidente de bater na rocha no deserto (Dt 1.37; cf. 4.21). Ele tam­ bém ficou irado com Salomão por causa de sua tolerância com cultos estrangeiros e sua caminhada em direção ao sincretismo (lR s 11.9). Mas a ira de Deus foi dirigida mais a Israel como nação, primeiro e talvez com mais veemência, por causa da adoração do bezerro de ouro. O Senhor, em sua fúria, instruiu Moisés para que se retirasse a fim de que pudesse destruir seu povo e fazer Moisés o fundador de outro povo. Todavia, Moisés intercedeu rogando a Deus para que protegesse sua própria reputação da inevitável calúnia dos egípcios e se lembrasse das promessas da aliança feitas aos patriarcas judeus. Moisés rogou com grande insistência para o Senhor: “Arrepende-te do fogo da tua ira! Tem piedade, e não tragas este mal sobre o teu povo!” (Êx 32.10-13; cf. Dt 9.8,19,20). Poucos anos depois, nas planícies moabitas, Israel entrou em ostensiva imo­ ralidade e idolatria no santuário dedicado a Baal-Peor. O resultado disso foi a ira ardente de Deus, uma furia que só poderia ser aplacada com a morte dos líderes 36 Para percepções úteis, veja Bruce E. Baloian, Anger in the Old Testament, Nova York: Peter Lang, 1992. 84 TEOLOGIA 1X5 ANTIGO TESTAMENTO da rebelião (Nm 25.4). Esse ato de violação da aliança era o tipo de coisa que Isaías tinha em mente quando falou da raiva do Senhor contra seu povo, pois eles “rejeitaram a lei do Senhor dos Exércitos, desprezaram a palavra do Santo de Israel” (Is 5.24). A falta de arrependimento desse espírito trouxe o inevitável julgamento na forma de exílio sob os assírios e os babilônios. A respeito dos últimos, a história menciona que “por causa da ira do SENHOR tudo isso aconte­ ceu a Jerusalém e a Judá; por fim ele os lançou para longe da sua presença” (2Rs 24.20; cf. 2Cr 6.36). Salomão antecipou esse resultado e em sua oração de consagração do templo disse: “Quando [e não se] pecarem contra ti, [...] e os entregares ao inimigo” (lRs 8.46). Mas até mesmo isso poderia ter sido evitado se as condições de confissão e de arrependimento tivessem sido satisfeitas. O salmista pergunta: “Até quando, Senhor? Ficarás irado para sempre?” (SI 79.5; 85.6), e o profeta Isaías responde em nome do povo em antecipação ao dia da futura redenção deles: “Eu te louvarei, Senhor! Pois estavas irado contra mim, mas a tua ira desviou-se, e tu me consolaste” (Is 12.1). O p e r d ã o d e D e u s A ira e o julgamento não precisam ser a conclusão do assunto, pois Deus também perdoa. Essa também é uma obra de graça, mas o perdão de Deus, ao mesmo tempo, depende da confissão da culpa e do arrependimento. Inúmeras passagens que descrevem o Senhor como aquele para quem perdoar é uma coisa natural deixam claro que o perdão é algo inerente ao caráter dele (Ex 34.7; Nm 14.18; SI 99.8; 103.3; Mq 7.18). No entanto, vez após outra, são feitos apelos para que ele perdoe em circunstâncias específicas. Abraão perguntou se Deus per­ doaria Sodoma se fossem encontrados alguns homens justos nela (Gn 18.24); e o Senhor disse que perdoaria se a cota de justos fosse encontrada (v. 26). Moisés rogou ao Senhor para que perdoasse a idólatra Israel (Êx 32.32; 34.9) e, depois de reconhecê-lo como um Deus perdoador, pleiteou que perdoasse os rebeldes no deserto (Nm 14.19), oração que Deus respondeu sem demora (v. 20). Salomão, em sua oração do templo, antecipando os futuros pecados de Israel, orou para que o Senhor os perdoasse (lRs 8.30,34,36,39,50). Amós fez a mesma coisa, baseando seu apelo na reputação de Deus e também na misericór­ dia dele em buscar o perdão para seu povo, que estava vivendo em condição perniciosa (Dn 9.19). Esse também é o fundamento para a petição do salmista: “Por amor do teu nome, Senhor, perdoa o meu pecado, que é tão grande!” (SI 25.11). 88 TEOI.OGIA IX ) ANTIGO TESTAMENTO duas formas descritas acima. Deus, depois de dar nome a vários fenômenos como dia, noite e céu, voltou-se para os meios pelos quais eles se revelam. As­ sim, ele disse dos corpos celestiais: “Sirvam eles de sinais para marcar estações, dias e anos” (Gn 1.14) e “governar o dia e a noite” (v. 18). Todas as gerações da humanidade que consideram essas coisas, por bem ou por mal, tiram conclusões teológicas a respeito delas, pois elas, em algum sentido, declaram Deus (SI 19.1- 6; cf. Rm 1.18-23). Todavia, com a criação do homem e da consciência não existe apenas um ser que pode “ler” a revelação silenciosa das obras divinas, mas, sim, que pode ouvir o Criador mesmo, primeiro em tons audíveis e por outros meios sensoriais e, depois, em textos escritos.1 A primeira expressão vocal registrada é a chamada ordem de criação dada por Deus à humanidade criada à imagem dele. E é uma palavra de bênção: “Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra!” (Gn 1.28). É impossível saber como essa palavra foi transmitida — talvez por meio de sonho, visão ou até mesmo por expressão vocal. As cenas de conversa subseqüentes, sem dúvida, apóiam a última hipótese (cf. Gn 2.16,17; 3.3,9-19,22). O que o homem aprendeu sobre Deus não é apresentado como algum tipo de percepção ou dedução teológica fundamentada em evidências empíricas, mas como pala­ vras ditas em fala comum e compreensível. A revelação por meio da conversa comum ou da fala divina não típica como modo ou meio de transmissão continuou ao longo do período da história pri­ meva (Gn 1— 11). Parece que Caim (4.6) e Noé (6.13), entre outros, foram contatados direta e imediatamente pelo Senhor. Na ausência de alguma qualifi­ cação para o meio de comunicação, não há nenhuma razão apriori para supor que a comunicação tenha sido feito de outro modo que não o verbal. Na verdade, essas ocorrências são mencionadas em passagens muito posteriores da literatura do Antigo Testamento e até mesmo do Novo Testamento (Êx 3.4; Js 7.10; 1 Sm 3.1-18; Mt 3.17; At 9.4-6). Todavia, com o passar do tempo, a revelação falada foi transmitida cada vez mais por canais secundários como visões e sonhos e, depois, por fim por meio de profetas. A REVELAÇÃO POR MEIO DE VISÕES E SONHOS Já no chamado de Abraão pode-se ver algum indício da revelação por meio de visões e sonhos. O Senhor, após ordenar que Abraão deixasse Ur e, depois, 1 Para uma discussão anterior, mas ainda útil do fenômeno da revelação, veja H. Wheeler Robinson, “The Philosophy o f Revelation”, Record and Revelation, Ed. H. Wheeler Robinson, Oxford: Clarendon Press, 1938, p. 303-20. A REVELAÇÃO DE DEUS 89 Harã por uma terra que mostraria a ele, apareceu para Abraão pela primeira vez em Siquém (Gn 12.7). A raiz niphaldo verbo usado aqui (rã'ãh) sugere ao pé da letra que Deus se fez visível. Não é declarado como ele é visto e, talvez, por visto queira-se apenas dizer que ele falou como em tempos anteriores. No en­ tanto, contra essa possibilidade está a ocorrência da mesma forma verbal em Gêne­ sis 18.1, passagem na qual o Senhor aparece de forma tangível na pessoa do anjo do Senhor que, na verdade, é igualado ao Senhor mesmo (Gn 18.10,13,17,20, etc.). A revelação de Deus, pelo menos nesse caso, é feita por meio de um agente celestial. O mesmo verbo é usado com referência às aparições do Senhor para Isaque (Gn 26.2,24), a segunda das quais aconteceu à noite, talvez, um indício de que Isaque o viu em sonho. Jacó também vivenciou uma aparição de Deus à noite enquanto aguardava com temor seu encontro com o irmão Esaú, com o qual se indispusera (Gn 35.1; cf. 32.21). Jacó, como Abraão, testemunhou uma forma humana de manifestação divina com a qual lutou durante a noite (Gn 32.22- 32). Embora o cenário noturno do encontro possa sugerir que fosse um sonho, os ferimentos físicos sofridos por Jacó como resultado do desacordo testificam o contrário.2 Claramente, Deus revelou-se em palavra e ato. Depois de seu re­ torno a Betei, Jacó teve uma segunda experiência de revelação de Deus. Ele apareceu para o patriarca e o abençoou, mudando seu nome para Israel (Gn 35.9,10). Na conversa posterior com José, na qual ele reitera a bênção que Deus pronunciou sobre ele e seus descendentes, Jacó estava consciente que, de uma maneira ou de outra, encontrara-se com o Deus Todo-poderoso (Gn 48.3,4). Embora o Antigo Testamento, depois, ateste inúmeras vezes a revelação de Deus descrevendo-a como sua aparição, quase sempre ela está em conjunção com algum outro fator ou aspecto como a sarça ardente (Êx 3.2), a glória shekiná (Lv 9.23; Nm 14.10; 16.19,42; 20.6; Dt 31.15), o anjo de lavé (]z 6.12; 13.3,10), os sonhos (1 Rs 3.5; 9.2; 11.9) ou as visões (Ez 1.1,16, etc.). Há uma tendência obviamente discernível da revelação direta e livre por meio da palavra para uma revelação mediada por meio de vários canais secundários. É bastante irônico o fato de que o primeiro relato de revelação em sonho retrate o governante pagão de Gerar, Abimeleque, que foi informado pelo Senhor em sonho que a mulher que estava para tomar em seu harém era a esposa de 2 Conforme Gunkel mencionou há muito tempo: “O quadril de alguém não fica descon­ juntado em uma luta de oração”. Hermann Gunkel, Genesis, trad. Mark E. Biddle, Macon, Ga.: Mercer University Press, 1997, reimp. da edição alemã de 1901, p. 349. 90 TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO Abraão (Gn 20.3-7). Claro que as religiões do Oriente Próximo da Antiguidade acreditavam que esse era um meio de comunicação possível dos deuses, por isso, Abimeleque não ficou particularmente surpreso com o sonho.3 Talvez seja ines­ perado que o Senhor Deus dos hebreus revele-se para o pagão, mas não é de ma­ neira alguma uma ocorrência única. O chefe dos padeiros e o chefe dos copeiros tiveram sonhos desencadeados pelo Senhor (Gn 40), como também o faraó (Gn 41), um soldado midianita cujo nome não é fornecido (Jz 7.13) e, o mais famo­ so, o rei babilônio Nabucodonosor (Dn 2; 4). Isso demonstra, entre outras coisas, que o Senhor é soberano além dos estreitos limites de Israel, agindo e revelando-se conforme quer. Na verdade, essa é exatamente a lição que Nabucodonosor aprende como resultado de seus sonhos (Dn 4.34-37). Jacó foi o primeiro dos patriarcas bíblicos de quem se declara especifica­ mente que teve revelação de Deus por meio de um sonho (Gn 28.10-15). A reação dele ao acordar é digna de nota, pois, na verdade, ele diz que não sabia que estava em um lugar em que se pudesse esperar a revelação de Deus. Por essa razão, ele chamou o lugar de Betei, pois, conforme observou, “[esse lugar] não é outro, senão a casa de Deus; esta é a porta dos céus” (Gn 28.17). Embora não devamos descobrir coisas demais nessa declaração, a referência a um lugar espe­ cial de revelação pode sustentar a noção de que se sentia que Deus estava associa­ do particularmente a determinados lugares santos nos quais era mais provável que ele aparecesse (cf. Gn 32.30; 35.7,14; Êx 3.5; Dt 12.5,14).4 Jacó, por sua vez, contou a respeito de outro sonho cuja localização permanece secreta exceto pelo fato de que aconteceu em algum lugar de Padã-Arã, onde morava, ou perto dali, um local bem distante da terra prometida (Gn 31.10,11). No entanto, mesmo aqui lhe foi dito no sonho para que voltasse a Canaã, ao lugar em que Deus se revelara em Betei (v. 13). De todos os sonhos dos patriarcas, os de José são os mais famosos. A idade dele na época em que teve seu primeiro sonho, apenas dezessete anos, sugere que os sonhos de revelação não estavam limitados aos israelitas nem mesmo aos patriarcas, profetas ou outras pessoas de reconhecida liderança. Deus concedia 3 James C. Vanderkam, “Prophecy and Apocalyptics in the Ancient Near East”, Civi­ lizations o f the Ancient Near East, vol. 3, ed. Jack M. Sasson, Nova York: Charles Scribners Sons, 1995, p. 2083-86; Martti Nissinen, ed. Prophecy in Its Ancient Near Eastern Context: Mesopotamian, Biblical, and Arabian Perspectives, Atlanta: Society o f Biblical literature, 2000. 4 A noção de espaço sagrado ocupará boa parte de nossa atenção mais adiante. Por agora, veja William Dyrness, Themes in Old Testamony Theology, Downers Grove, 111.: InterVarsity, 1979, p. 146-48. A REVK1AÇÃO DK DHUS 93 Ele não aparece primeiro para Abraão nem para um dos outros patriarcas, mas para Hagar, a desprezada escrava de Sara. Hagar fora expulsa do acampa­ mento de Abraão e conduzida para o deserto de Negev, no qual ela e seu peque­ no filho Ismael se viram em grandes dificuldades (Gn 16.1-6). O anjo, sem qualquer apresentação de sua identidade ou natureza, encoraja Hagar a retornar para Abraão e, depois, promete-lhe: “Multiplicarei tanto os seus descendentes que ninguém os poderá contar” (v. 10). Assim, em algum sentido, o pronome na primeira pessoa equipara o anjo ao Senhor, o único que pode fazer tal promessa. Hagar deve ter entendido isso em algum grau, pois a história continua e diz que ela lhe diz: “Tu és o Deus que me vê” (v. 13). Alguns anos depois, Hagar é banida de novo, e mais uma vez o anjo vem em socorro dela, dessa vez “do céu” (Gn 21.17). Ele fala por Deus, e, depois, o narrador diz: “Deus lhe abriu os olhos” (v. 19). Embora o anjo não seja explicitamente chamado de Deus, a justaposição do anjo e de Deus demonstra, no mínimo, uma relação íntima entre eles. Abraão é o próximo a se encontrar com o anjo de Iavé. Abraão, tendo recebido ordem de Deus para oferecer seu filho Isaque como sacrifício, estava para cravar a íàca no corpo do filho, quando o anjo fala do céu (como fizera com Hagar) e o impede de fazer isso (Gn 22.11). Depois, ele fala uma segunda vez do céu, dizendo estas extraordinárias palavras: ‘“Juro por mim mesmo’, declara o S e n h o r , ‘que por ter feito o que fez, [...] esteja certo de que o abençoarei”’ ( w . 15-17). Aqui, o anjo é praticamente equiparado ao Senhor. Em um incidente posterior, Jacó refere-se a ele como “o Anjo de Deus” (Gn 31.11), e ele é chama­ do mais uma vez de “o Deus de Betei” (v. 13; cf. 48.15,16). A mesma teologia continua com a história da sarça ardente de Moisés. O anjo de Iavé aparece para ele (Ex 3.2), e, depois, o narrador diz: “O S e n h o r viu que ele [Moisés] se aproximava para observar. E então, do meio da sarça Deus o chamou: ‘Moisés, Moisés!”’ (v. 4). Aqui, o “Anjo”, “o S e n h o r ” e “Deus” pare­ cem ser usados de forma intercambiável. O anjo revela-se mais uma vez em conexão com o êxodo, liderando os exércitos de Israel na travessia do mar (Ex 14.19). Na retomada da jornada do Sinai para Canaã, o Senhor promete que “um anjo” mostraria o caminho. É-lhe dito para carregar o nome do Senhor (“Nele está o meu nome”), associando, assim, o anjo ao Senhor, mas ao mesmo tempo fazendo distinção entre eles (Ex 23.21). Esse mesmo anjo comandaria os exércitos de Israel na conquista, expulsando as nações cananéias da terra (Êx 33.2). O caráter militar do anjo de Iavé fica aparente na história do profeta Balaão que, enquanto está a caminho para amaldiçoar Israel em Moabe, instiga a ira de 94 TF.OLOG1A DO ANTIGO TESTAMENTO Deus e, depois, encontra o anjo em seu caminho (Nm 22.22). O anjo permanece no lugar, como capitão dos exércitos do Senhor, com a espada empunhada, im­ pedindo o profeta mercenário de realizar seu objetivo. A seguir, o Senhor abre os olhos de Balaão; ele vê o anjo e prostra-se em adoração. A coalescência do anjo e do Senhor, apenas implícita aqui, parece completa na advertência do anjo para Balaão: ‘“Vá com os homens [de Moabe], mas fale apenas o que eu lhe disser’” (v. 35). Portanto, o anjo era o Senhor ou, no mínimo, seu porta-voz. O anjo aparece apenas mais duas vezes em algum tipo de narração extensa, as duas vezes na época dos juizes. Atropelada pela superioridade numérica dos midianitas, Israel, sob a liderança de Gideão, parece condenada até que o anjo do Senhor intervém oferecendo palavras de encorajamento a Gideão (Jz 6.11- 24). Ele, apresentado primeiro como o anjo (w. 11,12), depois, é chamado de “o S e n h o r ” ( w . 14,16,18), exceto por Gideão que o toma por um ser humano e o chama de “Senhor” ( 'ãdôn; v. 15). Gideão, quando ordenado a oferecer sacrifício em vez de sua pretendida refeição de hospitalidade, começa a entender que seu convidado não é um homem comum. Na verdade, uma vez que o alimento é consumido sobre o altar, Gideão exclama: “Ah, S e n h o r Soberano! Vi o Anjo do S e n h o r face a face!” (v. 22). Gideão, sem intenção de se preocupar com admiráveis distinções teológicas, identifica o anjo como o Senhor mesmo. Em uma perícope final recontando as circunstâncias do nascimento de San- são, o anjo do Senhor figura mais uma vez de forma proeminente. A mãe de Sansão, privada de filhos, encontra o anjo que lhe assegura que teria um filho, embora este deva servir ao Senhor como nazireu (Jz 13.1-5). Ela supõe que ele seja um profeta (“Um homem de Deus”; v. 6) que tem aparência de anjo. Ela não relata como é isso, diz apenas que ele tem uma “aparência impressionante”. Manoá, marido dela, toma a palavra dela pelo que ela viu e ora ao Senhor para que envie mais uma vez o homem de Deus. Quando o anjo retorna, o casal oferece-lhe uma refeição (como Gideão fizera) sem perceber que o anjo é “o Anjo do S e n h o r ” ; mas o anjo recusa a refeição com esta advertência: “Se você preparar um holocausto, ofereça-o ao S e n h o r ” (v . 16). Desconfiado, Manoá pergunta o nome do anjo, ao que este replica: “Meu nome está além do enten­ dimento” (v. 18). A seguir, Manoá acende o sacrifício e maravilhado observa o anjo ascender ao céu nas chamas. Assim, eles sabem que ele é o anjo do Senhor; e Manoá, prostrando-se em adoração, diz: “Vimos a Deus” (v. 22)! Na visão dele não há distinção entre o Senhor e seu anjo. A aparente ambigüidade do testemunho bíblico em relação à natureza e ao papel do anjo do Senhor como agente revelador existe por causa da ausência geral A REVELAÇÃO DE DEUS 95 de avaliação do conceito de um representante que ocupa o lugar de outra pessoa em um relacionamento tão íntimo que é praticamente idêntica a esta. Esse con­ ceito é bem entendido nos assuntos diplomáticos em que, por exemplo, o em­ baixador de uma nação personifica tanto a nação que um ato de violência praticado contra ele pode ser considerado um ato de violência contra o Estado que ele serve. Claro que, ao mesmo tempo, o enviado, em essência, não é o mesmo que seu governo. Já tratamos do assunto da essência e da natureza de Deus e observamos que o testemunho do Antigo Testamento aponta indubitavelmente para a invisibilidade transcendente dele. Ele, embora se comunique com sua criação, é totalmente diferente e distante dela. Esse hiato só pode ser preenchido pela intermediação, e essa intermediação é o que estamos descrevendo como revelação em todas suas formas. O anjo do Senhor, embora represente o Senhor quase ao ponto de se identificar com ele, não é Deus, mas apenas seu agente, embora um agente com poderes sobrenaturais e com um papel tipológico que, pelo menos, para os cris­ tãos encontra cumprimento antitípico em Jesus Cristo.10 A REVEIAÇÃO POR MEIO DOS NOMES DIVINOS Os nomes e epítetos Eloím e Iavé já foram apresentados em discussões ante­ riores a respeito de Deus como Criador e daremos novamente atenção a eles no desenvolvimento da narrativa de sua conduta com a humanidade e, em especial, com Israel. Por isso, a consideração subseqüente dos nomes divinos trata apenas de alguns nomes menos conhecidos e que ocorrem menos. Abraão, um ano antes do nascimento de seu filho Isaque, desanimado com a espera para ter um filho da aliança, foi visitado pelo Senhor que lhe disse: “Eu sou o Deus todo-poderoso; ande segundo a minha vontade e seja íntegro. Esta­ belecerei a minha aliança entre mim e você e multiplicarei muitíssimo a sua descendência” (Gn 17.1,2). Essa é a primeira ocorrência de uma auto-desig- nação por meio da qual Deus revelou algo de seu caráter. Os outros nomes encontrados até aqui — Eloím (Deus) e Iavé (o S e n h o r ) — são apenas declara­ dos no texto e nunca são pronunciados pelo Senhor em algum sentido revela­ dor. Conforme acabamos de mencionar, esses nomes receberão o tratamento devido em outros cenários mais reveladores. Como para o nome com o qual Hagar descreveu Deus no deserto; o nome usado, embora fecundo do ponto de 10 Para uma discussão útil da teologia inerente ao anjo como um protótipo de Cristo, veja Geerhardus Vos, Biblical Theology, Grand Rapids: Eerdmans, 1954, p. 85-89. 98 TEOLOGIA DO AN TIGO TESTAMENTO sentido se ajusta bem ao uso de nãbV em todo o cânon.14 O termo sugere mais particularmente falar em favor de outro, sendo o outro quase invariavelmente o Senhor quando fala dos verdadeiros profetas de Israel. A tradução gregaprophêtes (“falar por”) capta bem o sentido. Encontramos um claro exemplo dessa nuança na narrativa de Êxodo 7, passagem em que o Senhor faz a extraordinária declaração para Moisés: “Dou-lhe a minha autoridade perante o faraó, e seu irmão Arão será seu porta-voz” (v. 1). Ou seja, Moisés seria Deus no sentido de que seria o canal de revelação, e Arão seria um profeta ao proclamar essa revelação. Na verdade, antes o Senhor dissera ao falar de Arão para Moisés: “Assim como Deus fala ao profeta, você falará a seu irmão, e ele será o seu porta-voz diante do povo” (Êx 4.16). Portanto, o profeta era o porta-voz de Deus. No fim, Moisés submeteu-se ao chamado de Deus para ser o porta-voz profético e, na verdade, tornou-se o profeta par excellence contra o qual todos os outros eram medidos. Ele, enquanto ainda estava no deserto, exercitou o dom profético, dom esse que compartilhou com os setenta anciãos que ele designou para servir ao povo com ele. O Senhor, a fim de capacitá-los, pôs seu Espírito neles, e eles começaram a profetizar (Nm 11.16,17,25). A forma do verbo he­ braico aqui não envolve a idéia de proclamação, mas, antes, de conduta; eles começaram a agir como profetas.15 Ou seja, eles foram dominados pelo Espíri­ to e, em alguma forma de êxtase, demonstraram para a comunidade que Deus os investira com poder e autoridade incomuns. No entanto, tal demonstração de emoção jamais caracterizou os profetas canônicos dos tempos posteriores. Pouco depois desse incidente, os irmãos de Moisés, Arão e Miriã, desafiaram a autoridade dele como único porta-voz do Senhor (Nm 12.2). Em resposta ao desafio, o Senhor fez a observação mais esclarecedora a respeito do profetismo em geral e do dom da profecia de que Moisés fora investido em particular: ‘“Quando entre vocês há um profeta do S e n h o r , a ele me revelo em visões, em sonhos falo com ele. Não é assim, porém, com meu servo Moisés, que é fiel em toda a minha casa. Com ele falo face a face, claramente, e não por enigmas; e ele vê a forma do S e n h o r ’” ( w . 6 - 8 ) . Há duas verdades a serem observadas aqui: (1) Deus, em geral, revelava-se em visões e em sonhos; (2) Moisés foi a única exceção. Portanto, o profetismo mosaico não pode ser entendido como o para­ digma ao qual o profetismo israelita deveria se conformar e contra o qual seria avaliado. 14 P. A. Verhoef, “Profecy”, N/DOTTE, 4 :1067-78. 15 HALOTi 1:659. A RKVEUÇÃO DE DEUS 99 Deuteronômio 18 elabora a singularidade de Moisés nesse aspecto. O Senhor contou a Moisés a respeito de todo o movimento profético que se seguiria: “Levantarei do meio dos seus irmãos um profeta como você; porei minhas pa­ lavras na sua boca, e ele lhes dirá tudo o que eu lhe ordenar” (v. 18). Talvez aqui o pronome seja usado no singular para destacar uma pessoa que estabeleceria uma ordem de profetas que, por sua vez, pavimentariam o caminho para os grandes profetas canônicos de Israel. Esse homem seria Samuel que, após um verdadeiro hiato de trezentos anos de proclamação profética, apresentaria toda uma nova fase de profetismo (ISm 3.1,19-21). É importante, antes de explorarmos essa nova fase, dedicarmos alguma atenção à perversão, ou malversação, do ofício profético. O profetismo foi um fenômeno abundantemente atestado no mundo do Oriente Próximo da Anti­ güidade e em várias culturas e de várias formas.16 Muito fundamentado como era em sistemas de pensamento e prática religiosos em variados modelos bíbli­ cos, seus alegados porta-vozes dos deuses no profetismo deviam ser evitados em Israel, e as técnicas deles, repudiadas. Infelizmente, esse não era sempre o caso, e, por isso, o Antigo Testamento está repleto de orientações de como reconhecer os falsos profetismo e ordens a fim de eliminá-los da vida israelita. O primeiro exemplo é o de Balaão que, embora não seja descrito pelo termo n ãbi\ era claramente algum tipo de adivinhador ou vidente, um pagão contratado pelo rei de Moabe para amaldiçoar o povo de Israel (Nm 22— 24). Ele foi de Petor (acadiana Pitru), próxima de Mari, no Eufrates, local em que foram encon­ trados muitos textos proféticos detalhando as técnicas de adivinhação e de en­ cantamento desenvolvidas por Balaão.17 A maioria dos outros falsos profetas não-israelitas mencionados no Antigo Testamento emergiram de fontes cananéias e eram continuamente a meta dos verdadeiros profetas de Israel, que, vez após outra, advertiam a nação para evitá-los e não absorvê-los (cf. lRs 18.16-40). No entanto, o maior perigo não vinha de fora de Israel, mas dela mesma. Moisés advertiu contra profetas que surgiriam entre o povo de Deus e que pro­ fetizariam em nome de outros deuses ou profetizariam mentiras em nome do Senhor. Duas importantes passagens, ambas de Deuteronômio, tratam dessa grave ameaça. Em Deuteronômio 13, Moisés diz que mesmo que um profeta 16 James C. Vanderkam, “Prophecy and Apocalyptics in the Ancient Near East”, Civiliza- tions o f the Ancient Near East, vol. 3, ed. Jack M. Sasson, Nova York: Charles Scrib- ners Sons, 1995, p. 2083-94. 17 A. Malamat, “Prophetic Revelations in New Documents from Mari and the Bible”, Vetus Testamentum sup. 15, Leiden: Brill, 1996, p.207-27. 100 TEOLOGIA DO ANTIGO TESTAMENTO de sonhos consiga realizar sinais e maravilhas para autenticar sua mensagem, se essa mensagem fosse designada a levar à adoração de outros deuses, o profeta devia ser considerado falso. Em outras palavras, os sinais autenticadores só eram válidos se estivessem alinhados com a verdade de que o Senhor é Deus e de que só ele deve ser adorado. Na verdade, o Senhor mesmo permitia aos charlatães a habilidade de operar essas maravilhas a fim de que ele pudesse conhecer (mais exatamente, a fim de que eles pudessem conhecer) o profundo amor de Israel por ele (w. 1-4). Para um profeta israelita, apostatar tão notoriamente era um ato impensável de traição e de rebelião, ato que exigia nada menos que a pena de morte (v. 5). Não se podia demonstrar misericórdia, nem mesmo se o falso profeta fosse membro da própria família, pois o bem-estar da comunidade esta­ va acima de qualquer outra consideração de parentesco ou afeto familiar natural (w. 6-11). Além disso, qualquer cidade que abrigasse falsos profetas e se re­ cusasse a entregá-los para os líderes de Israel devia ser posta sob hêrem, ou seja, devotada ao Senhor em um ato de destruição total (w. 12-18). Não pode haver erro aqui em relação à atrocidade do pecado dos profetas que, a despeito de todos os sinais em contrário, estavam predeterminados a desviar o povo de Deus. Em outra passagem de Deuteronômio 18, Moisés primeiro advertiu o povo de Israel contra imitar as abomináveis práticas dos cananeus, em especial, em ter­ mos dos artifícios proféticos deles e, depois, falou de uma ordem de profetas a vir de Israel. Como na passagem anterior, o povo de Deus deve estar alerta porque não devem permitir “que se ache [...] alguém entre vocês que queime em sacrifício o seu filho ou a sua filha; que pratique adivinhação, ou se dedique à magia, ou faça presságios, ou pratique feitiçaria ou faça encantamentos; que seja médium, con­ sulte os espíritos ou consulte os mortos” (Dt 18.10,11). Mais uma vez, a questão não era tanto os profetas cananeus per se, mas a tendência de Israel de imitá-los, na verdade, eles tendiam a trapacear em todos os aspectos da vida. Eles, em contraste contundente, deviam relembrar como Deus se revelara a Moisés no Sinai, uma revelação direta que não exigira nenhum dos artifícios manipulativos típicos do profetismo pagão. E quando Moisés saiu de cena, esse tipo de profetismo mosaico continuaria na forma de um profeta semelhante a ele, ou seja, uma ordem de profetas que, como Moisés, receberia uma palavra do Senhor sem maquinação nem ambigüidade humanas. Seria uma revelação verbal, recebida em palavras e a ser transmitida pelas palavras (Dt 18.14-19). Todavia, se esse profeta falasse a partir de seu próprio coração, e não como o porta-voz de Deus ou falasse em nome de outros deuses, deveria ser morto (v. 20). A seriedade do ofício profético estava além de qualquer discussão.
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