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Guias e Dicas
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Luciane Monteiro Oliveira (Dissertação - 1999), Notas de estudo de Arqueologia

Dissertação

Tipologia: Notas de estudo

2014

Compartilhado em 25/02/2014

luciane-monteiro-oliveira-10
luciane-monteiro-oliveira-10 🇧🇷

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Baixe Luciane Monteiro Oliveira (Dissertação - 1999) e outras Notas de estudo em PDF para Arqueologia, somente na Docsity! UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUEOLOGIA A PRODUÇÃO CERÂMICA COMO REAFIRMAÇÃO DE IDENTIDADE ÉTNICA MAXAKALI: UM ESTUDO ETNOARQUEOLÓGICO Luciane Monteiro Oliveira Dissertação de Mestrado apresentada como exigência parcial para a obtenção do título de Mestre em Arqueologia, sob a orientação da Profª Drª Márcia Angelina Alves. São Paulo, outubro de 1999. RESUMO A presente Dissertação de Mestrado trata de uma pesquisa etnoarqueológica sobre a produção da cerâmica pelas mulheres Maxakali, grupo indígena pertencente ao tronco lingüístico Macro-Jê que habita a região do Vale do Mucuri, Nordeste do Estado de Minas Gerais. A abordagem empregada foi a observação participante e intervenções por meio de entrevistas informais a partir de uma perspectiva arqueológica com a finalidade de tentar responder questões pertinentes ao estudo da documentação material cerâmica. O objetivo pretendido foi evidenciar a relação da cultura material cerâmica com a dinâmica do grupo Maxakali na reprodução e reafirmação de sua identidade étnica. Foram suscitados os aspectos de organização espacial e as formas de atuação do grupo no interior das estruturas de funcionamento da sociedade, a partir dos subsistemas sociais - organização social, divisão sexual do trabalho, parentesco, relações de reciprocidade e relações extra-comunitárias; econômicos - tecnologia, processo de produção material da cerâmica, relação forma e função, uso e comercialização dos vasilhames; e ideológico/simbólico - expressão material da cultura, reprodução contínua da vida através da realização de rituais e transmissão dos conhecimentos. ABSTRACT This present Masters thesis presents an ethnoarchaelogical research on pottery making by Maxakali women an indigenous group belonging to the Macro-Jê linguistic stock, that inhabits the Vale do Mucuri region, Northeast of Minas Gerais State. The approach employed was direct observation and informal interviews from an archaelogical point of view in order to answer some relevant questions about ceramics material documentation. The intended goal was to show the relation between ceramics material culture and Maxakali social structure in the reproduction of their ethnic identity. We dealt with the following subjects; spatial organization and its interaction according to social subsystems: social organization, labour division between sexes, kinship, reciprocity and extracommunity relations; economics - technology, ceramics material production, shape and function relation, vessels use and commercialization; and ideological/simbolic - material expression of culture, continuous reproduction of life through rituals and transmissions of knowledge. SUMÁRIO Agradecimentos I Apresentação II INTRODUÇÃO 01 CAPÍTULO I (08-44) PROCESSO HISTÓRICO DE LUTA, ESPOLIAÇÃO E POSSE DA TERRA: A PRÁTICA DA POLÍTICA INDIGENISTA 08 A política indigenista nos séculos dezoito, dezenove e vinte 10 Período Colonial - Século Dezoito 11 Período Joanino - Início do século dezenove 15 Período Marlièriano - Primeiro Reinado - 1822/1831 20 Período Regencial - 1831/1837 24 Segundo Reinado - 1837/1889 26 Período Republicano - Século Vinte - a atuação do SPI e FUNAI 36 CAPÍTULO II (45-75) MOBILIDADE E DISPERSÃO 45 Relato dos Viajantes Naturalistas 46 Mobilidade 54 Dispersão 58 Os Maxakali e o confronto 61 CAPÍTULO III (76-109) A DINÂMICA DA SOCIEDADE MAXAKALI 76 Localização e Meio Ambiente 76 Organização espacial 81 Atividades econômicas 87 2 (NEWTON, 1986:15). Para a análise e interpretação da documentação material cerâmica produzida pelas mulheres Maxakali, empregamos a abordagem de coleta de dados etnográficos e entrevistas informais, de modo a verificar a estrutura de organização espacial e suas correlações sociais e simbólicas. A nossa fundamentação teórica está assentada nos pressupostos da arqueologia, no estudo da cultura material em sua relação com o comportamento humano. A partir dessa premissa, a pesquisa etnoarqueológica oferece duas vias de abordagem. A primeira investiga aspectos do comportamento sócio-cultural contemporâneo numa perspectiva arqueológica buscando estabelecer a relação entre esse comportamento e a cultura material. Segundo Kramer, os elementos comportamentais do sistema sócio-cultural possuem correlatos materiais (KRAMER, 1979). Os estudos de sociedades contemporâneas na produção e uso de cerâmica remontam a 1880 no sudoeste dos Estados Unidos. A partir de 1965 ressurgem atividades de pesquisa de campo entre sociedades atuais por arqueólogos referidos como etnoarqueológica, termo cunhado por Fewkes, também conhecida como living archaeology e action archaeology. Trata do estudo, por arqueólogos, da variabilidade na cultura material e sua relação com o comportamento humano e organização entre sociedades existentes (YELLEN, 1977; GOULD, 1979 ; LONGACRE, 1991 e SKIBO, 1992). A segunda abordagem tem os pressupostos teóricos preconizados por Binford, no qual a etnoarqueologia é o uso de analogias derivadas da observação do presente para ajudar na interpretação de eventos e processos do passado. Binford baseia-se numa perspectiva nomotética visando auferir à disciplina arqueologia um caráter científico, em conformidade com as concepções neopositivistas de Hempel na estruturação da Nova Arqueologia. Assim, o corpus etnográfico torna-se o ponto de partida para a elucidação de (ALVES, 1992 e PARAÍSO, 1992). 3 hipóteses interpretativas na compreensão, explanação e predições dos vestígios materiais arqueológicos (GOULD, 1977; INGERSOLL, 1977; HOLE, 1979 e WATSON; LEBLANC & REDMAN, 1979; ORME, 1981 e THOMPSON, 1991). Optamos pela primeira abordagem, baseando-nos na afirmação de alguns autores como Gould de que o conhecimento etnográfico serve como um norte ao arqueólogo ao proporcionar três níveis de pesquisa arqueológica. O primeiro se refere ao nível prático a partir da descrição do background metodológico; em seguida a interpretação específica, a living surface e então a interpretação mais geral que trata da história da cultura propriamente (GOULD, 1971; FORSTER, 1977 e JOCHIM, 1979). Nessa abordagem etnoarqueológica, três elementos são fundamentais na coleta de dados etnográficos: a observação direta/participante; a tecnologia da cultura material e o estudo de uma totalidade da cultura na correlação dos objetos materiais produzidos pelo grupo e os elementos comportamentais do sistema sócio-cultural em interação com o meio ambiente circundante, especificamente no caso Maxakali os aspectos territoriais (VAN DER MERWE & SCULLY, 1971; GORECKI, 1985; GOULD, 1990 e THOMPSON, 1991). Ao fazermos uma descrição das operações técnicas que envolvem a forma, função e técnicas de manufatura cerâmica, estamos realizando um estudo pontual através do emprego do método indutivo. Por outro lado, ao elucidarmos as estruturas de funcionamento da sociedade lançamos mão do método dedutivo (BROMBERGER & DIGARD, 1990). Ao realizarmos esse procedimento, temos de verificar os antecedentes históricos que justifiquem as características de resistência do grupo Maxakali à dominação imposta pela sociedade envolvente na sua luta permanente pela manutenção de suas tradições culturais refletida nas manifestações de etnicidade. Se estamos tratando de etnicidade, algumas considerações tornam-se 4 necessárias para a compreensão no emprego desses termos. O que caracteriza um grupo étnico, segundo Bonfil Batalla é sua capacidade de reproduzir-se biologicamente, o reconhecimento de uma origem comum, a identificação cultural, o território definido e a unidade política organizada (BONFIL BATALLA, 1988). (...) grupo étnico é aquele que possui um âmbito de cultura autônoma, a partir do qual define sua identidade coletiva e torna possível a reprodução de seus limites em sociedade diferenciada (BONFIL BATALLA, 1988:25). O conceito de etnicidade empregado, na definição de Batalla e Jones se dá a partir da compreensão de identidade étnica, pessoas que se identificam com um grupo cultural, ou tem descendência, em oposição à outro com bases distinta (BONFIL BATALLA, 1987 e JONES, 1997). Na prática cotidiana, identidade é o exercício de sua cultura própria, ou seja, o grupo tem suas ações reguladas por decisões na relação com a cultura que variam conforme o nível das ações consideradas, podendo ser individuais, familiares, coletivas, consensuais entre outras. Desse modo a presente Dissertação foi estruturada em quatro capítulos, com a finalidade de evidenciar os aspectos acima mencionados. O primeiro capítulo é uma exposição da política indigenista adotada desde os princípios da colonização com o intuito de atender aos interesses imediatos da estrutura econômica colonial. Essas informações contribuem no entendimento dos fatores que levaram o grupo Maxakali a constantes deslocamentos e que impuseram uma redefinição da suas condições de vida na luta pela sobrevivência. As fontes que fundamentaram esse capítulo consistem de trabalhos acadêmicos que fazem uma reflexão da política indigenista através da análise de fontes documentais dos períodos estudados. No segundo capítulo apresentamos o quadro que ilustra o processo histórico de confronto do grupo com as frentes de expansão econômica e as 7 CAPÍTULO I PROCESSO HISTÓRICO DE LUTA, ESPOLIAÇÃO E POSSE DA TERRA: A PRÁTICA DA POLÍTICA INDIGENISTA O valor da terra para os Maxakali está na interação com o universo cosmológico. É a partir das ações dos indivíduos no meio que se constituem as formas de organização social do grupo. O espaço torna-se um vetor determinante nos fatores de conduta do comportamento humano. Na cosmologia Maxakali, a partir das oposições céu e terra, o céu é o lugar de morada dos espíritos e a terra dos Tikmũ'ũn. A relação entre essas duas esferas é de trânsito, onde os espíritos descem à terra para a realização do Yãmĩy xop, permitindo a renovação da vida dos homens, que após a morte se transformam em espírito. O movimento dos espíritos é sempre vertical e o movimento dos homens é horizontal, de percorrer o meio ambiente em que vivem e atuam (ALVARES, 1992 e OLIVEIRA, 1998). A terra, portanto, é parte integrante do mundo dos Tikmũ'ũn. Sobre ela os Maxakali exercem controle cultural, na medida em que, a considera como patrimônio cultural pré-existente, herdado de seus ancestrais. É a partir dessa categoria que os indivíduos definem sua identidade coletiva, compartilham elementos e traços culturais e exercem ações sociais fundamentais para a reprodução do modo de vida do grupo. Ao pretendermos tratar da territorialidade e sua importância na organização, distribuição e atuação dos indivíduos como ponto de referência de suas formas de vida, atentamo-nos para o valor simbólico conferido à terra e o modo como os indivíduos atuam nesse espaço. Contudo, para um melhor entendimento desses aspectos no estudo do grupo Maxakali, lançamos mão de uma avaliação dos processos históricos que envolvem a questão territorial. 8 O ponto de partida para o empreendimento dessa avaliação foram os inúmeros confrontos perpetrados pela sociedade colonial dominante, ao longo dos séculos dezoito, dezenove e vinte e os vários grupos indígenas nas regiões dos Vales dos rios Jequitinhonha, Mucuri e Doce, que resultaram em disputas, espoliação e usurpação do território indígena precedidas de lutas, guerras, métodos de desarticulação e degradação. Especificamente no caso Maxakali, o início dessas disputas se deu no século dezoito, a partir do contato, no Vale do Mucuri, com a bandeira de João da Silva Guimarães, mestre de campo designado para explorar a região em busca de alternativas econômicas face ao escasseamento das áreas mineradoras. A data desse confronto é de 1734, após o que, se sucederam uma série de outros nos quais o grupo foi se submetendo às imposições reguladas por uma política violenta de dominação. Para entendermos o funcionamento das bandeiras, reportemo-nos à economia do período colonial, baseada no sistema de grandes propriedades, mão-de-obra escrava e monocultura. No início do século dezoito, a base de sustentação da economia estava localizada na região mineradora de Minas Gerais com a exploração do ouro. Em meados desse século, as jazidas minerais apresentavam sinais de esgotamento dada a intensa exploração, realizada em sua maioria por grandes proprietários de terras que empregavam enorme contingente de escravos africanos. As demais regiões da colônia viviam em torno desse centro econômico. Próximo à zona aurífera e diamantífera, na área que compreende as nascentes dos rios Jequitinhonha, Mucuri e Doce e a foz no litoral do Espírito Santo e Bahia, vários grupos indígenas ali se refugiaram uma vez que não havia presença da colonização e por apresentar matas fechadas praticamente isoladas. O Mucuri, portanto, constituiu no último refúgio de boa parte dos indígenas que outrora habitaram o território que compreende atualmente os Vales do Jequitinhonha e Doce, bem como o litoral sul da Bahia e norte do 9 Espírito Santo (PARAÍSO, 1998). A ausência da colonização se devia, em parte, ao fato de que a Coroa Portuguesa manteve essa área preservada objetivando não a segurança dos indígenas, mas o controle da circulação do ouro, freqüentemente contrabandeado, cujo escoamento se dava principalmente pelo rio Jequitinhonha até a Província da Bahia e/ou Porto Seguro onde era comercializado e enviado à Europa 2. Todavia, com a decadência econômica de zona mineradora, a Coroa Portuguesa estimulou a formação de frentes exploratórias para o desbravamento das áreas próximas a essa zona visando novas descobertas minerais de modo a sustentar o sistema, calcado no mercantilismo, para sua manutenção no mercado europeu. Em virtude da grande quantidade de nações indígenas 3 tornou-se premente a adoção de uma política indigenista agressiva, para liberalização das terras para a colonização. A política indigenista nos séculos dezoito, dezenove e vinte. A intervenção do Estado nas questões indígenas no efetivo dessas frentes exploratórias, de conquistas de novos espaços, tinha em seus princípios a formação de aldeamentos para o domínio da população indígena e sua inserção como mão-de-obra escrava, proporcionando a liberação territorial concedido à elite oligárquica 4 , representante fundamental na sustentação da economia colonial. Caso essa população oferecesse alguma resistência seriam tomadas medidas repressivas, quando não exterminatórias. Concretamente, a legislação indigenista foi fortemente marcada pelas 2 Essa delimitação espacial, que caracterizava um ato político adotado pela Metrópole, Paraíso vai denominar como região de zona tampão (PARAÍSO, 1998:08). 3 Constituíam essa população os grupos Maxakali, Malali, Makoni, Monoxó, Koporoxó, Kumanaxó, Kutatoi,Kutaxó, Pataxó, Panhame e os vários grupos e subgrupos genericamente conhecidos como Botocudos (PARAÍSO, 1994). 4 A escravidão indígena estava articulada à expansão açucareira no século dezesseis (MONTEIRO, 1994: 105). 12 desarticular o sistema de posse coletiva da terra e, em substituição, exercer o sistema de distribuição de lotes familiares. De certa forma isso assegurava a tomada das terras indígenas pelos colonizadores. Aliado a isso estava o interesse dos Diretores disporem de exército de mão-de-obra, daí o controle dos deslocamentos e a distribuição dos índios. Junto aos Diretórios estavam as Divisões Militares 6 atuando no sentido de garantir, por meio de técnicas de repressão, a incorporação dessa população na nova ordem imposta e a conquista de novos territórios exercendo combates aos habitantes que resistissem às descidas. Apesar do confinamento territorial a que eram submetidos, bem como mudanças comportamentais com a promoção de casamentos interétnicos, imposição nas construções habitacionais nos moldes das casas dos colonos e a dependência econômica, eram freqüentes as resistências e fugas. Por outro lado, muitos acabaram cedendo aos aldeamentos face à ameaça constante dos grupos inimigos definidos como Botocudos. Esse fato vai ser determinante na fundação da maioria dos aldeamentos, uma vez que eram firmadas relações de alianças político-militares, em que o dominante oferecia proteção aos aliados e se juntavam para exterminar o grupo inimigo. A prática da política de aldeamentos compulsórios, representava para os indígenas um ato de violência, levando-se em conta o fato de que foram despossuídos das terras de melhor qualidade pela usurpação dos colonizadores. Esse ato de desterritorialização e conseqüentemente de ruptura com o significado que o espaço representa para essa sociedade, levou-os a deslocamentos populacionais, que foram freqüentes, incorrendo muitas vezes numa fragmentação do grupo em vários subgrupos e desenraizamento sociocultural (PARAÍSO, 1998). Nesse sentido, a política de aldeamentos provocou uma transformação nas estruturas de funcionamentos dos grupos indígenas existentes nessa região, conforme a seguinte afirmação: 6 Órgão pertencente às Câmaras Municipais que tinha em seus princípios a manutenção da segurança. 13 Colonizar pressupõe uma ação transformadora do espaço ocupado e compreende a criação ou alteração de atividades econômicas, a formação de núcleos povoadores, a instalação de aparelhos jurídicos, políticos e administrativos de sustentação a esses empreendimentos (PARAÍSO, 1998:35). Essa política vai sofrer algumas mudanças no final do século dezoito, no qual o Marquês de Pombal determinava, entre outras condutas de sua política centralizadora, o fim da escravidão indígena e a expulsão dos religiosos. Nesse momento havia uma série de contradições entre os interesses dos missionários e dos colonos. Pombal então cria uma legislação de modo a atender os interesses de ambas as partes, discutindo medidas como o casamento inter- racial, equiparando os índios aos colonos, em termos de trabalho e direito. Em sua concepção de Estado Nação a colônia deveria apresentar uma unicidade territorial, política e cultural, legitimando a hegemonia portuguesa. Desse modo, a desagregação interna seria colocada a termo visando a incorporação dos indígenas na vida civilizada e posterior transformação das aldeias em freguesias, a partir de medidas como concessão de liberdade aos indígenas, com a supressão da atuação dos missionários nos aldeamentos, proibição das línguas faladas pelos diversos grupos aqui existentes e a instituição do português como língua oficial, oferecendo não só a liberdade mas educação O objetivo era acelerar o processo de assimilação incentivando a presença de brancos nas aldeias e aldeamentos. A administração então sob a responsabilidade dos jesuítas, calcada nos princípios da catequese, organização das aldeias e repartição dos trabalhadores indígenas, vão passar para os Diretórios. Essa transformação se justificava na concepção de que os indígenas eram incapazes de se autogovernarem (PERRONE-MOISÉS, 1992). A política pombalina tem seu fim após a morte de D. José I . Mesmo que na prática essa orientação política não tenha se concretizado, suas idéias fundamentadas no Iluminismo afetaram de certo modo a estrutura administrativa dos Aldeamentos. 14 Período Joanino - Início do século dezenove Com a transferência da Corte para o Brasil em 1808, alterações administrativas vão ser observadas na estrutura colonial. No âmbito da economia, por exemplo, a Coroa cria uma política de estímulos e incentivo para a incorporação de novos espaços e novos produtos a serem introduzidos nas exportações. Essa política incorreu no aumento dos conflitos com os indígenas, que se acirraram após a Decretação da Guerra Justa através das Cartas Régias, nas quais fora encaminhado um conjunto de medidas voltadas para viabilizar a colonização. O teor das Cartas Régias consistia na verdade numa retomada da política indigenista de conquista, seguida de combate aos que se opunham e resistiam a essa ação. Para a concretização dessa ação, o apoio dos religiosos e moradores foi de suma importância. Os debates realizados nesse momento giravam em torno dos meios pelos quais a política indigenista se fundamentaria, surgindo propostas de extermínio sumário, de distribuição aos moradores e de cativeiro para transformá-los em civilizados e posteriormente empregados como mão-de-obra escrava. Inserida nesse contexto, a Guerra Justa se justificava pela implementação do desenvolvimento econômico, baseado na agricultura, que demandava uma ocupação territorial e pela aquisição da mão-de-obra escrava em substituição aos escravos negros que representavam um alto custo para os colonos. A legislação, portanto, estava mais voltada ao combate e extermínio das populações indígenas, consideradas como entrave ao desenvolvimento econômico do Brasil. A política indigenista Joanina (1808-1821) se fundamentava prioritariamente na defesa do colono e dos interesses do Estado, dividindo o universo indígena de modo maniqueísta: havia índios bons, que podiam ser aproveitados, e maus, que seriam alvo da repressão (MARCATO, 1980:141). 17 embora as roças dos colonos surgissem como alternativa em determinados momentos (WIED-NEUWIED, 1954 e DENIS, 1986) Diante da penetração de colonos e aventureiros, os indígenas, ciosos de seus direitos sobre as terras que ocupavam, iam recuando para o interior e concentrando ódio contra os invasores; de quando em quando agindo por instinto de defesa quando não por vingança, reagiam pela violência, incendiando roças, paióis e casebres e matando ou ferindo crianças, mulheres e homens; e o branco, assim atingido, julgava-se vítima e com direito a eliminar quantos indígenas ficassem ao seu alcance (WIED-NEUWIED, 1954:207). Nas primeiras décadas do século dezenove, surge um debate em torno de uma definição do que representa o indígena e qual o seu lugar no panorama nacional. O precursor desse debate foi José Bonifácio de Andrada e Silva, que tinha como ponto de partida a crença na possibilidade de promover a incorporação do índio ao todo nacional. O seu projeto era fortemente marcado pelo ideário iluminista. Entendemos ser de extrema relevância, no quadro da política indígena do período, a proposta de Andrada e Silva. A seguir, discorreremos sobre suas propostas, baseando-nos nos trabalhos de Carneiro da Cunha e Paraíso. Os argumentos de seu projeto foram fundamentados a partir da inviabilidade da proposta de abolição da escravatura. Partindo da premissa de que os proprietários rurais que se valiam do trabalho indígena não possuíam tanto poder e prestígio político na composição de forças do Governo, aliado ao fato de que a escravidão indígena era mais reduzida espacialmente e numericamente, sua extinção surge como proposta. Na verdade, o que estava em questão era a capacidade do indígena em assimilar e incorporar os valores da sociedade dominante. Baseado nessa argumentação, sua política sugeria uma educação lenta e gradual, prioritariamente das crianças, com administração temporal e religiosa pelos missionários pagos pelo Estado, estabelecendo e fortalecendo as alianças por meio de medidas que assegurassem o direito a terra aos indígenas. Os 18 princípios liberais estavam presentes em seu discurso, embora mantivesse a estrutura dos Quartéis, Destacamento Militares e Presídios (CARNEIRO DA CUNHA, 1992 e PARAÍSO, 1998). Sua proposta configurava-se numa retomada dos métodos Jesuíticos, na medida em que visava a civilização dos índios bravios, a substituição da guerra por trocas de presentes e ameaças militares com bandeiras forçando-os a se deslocarem e aldearem-se em pontos considerados adequados, priorizando os locais das aldeias originais. Por acreditar que o quadro apresentado pelos indígenas era resultado dos tratamentos recebidos ao longo dos confrontos com a colonização, Andrada e Silva propunha aldeamentos distantes das vilas para evitar o contato com os colonos e a corrupção, terras pouco abundante de recursos naturais para forçá-los a exercerem atividades agrícolas, dando fim aos deslocamentos (CARNEIRO DA CUNHA, 1992 e PARAÍSO, 1998). Portanto, os aldeamentos deveriam ter roças de modo a atrair, alimentar e estimular os deslocados para ali permanecerem, incentivo aos casamentos interétnicos, estabelecimento de relações comerciais, introdução de novos hábitos de consumo e de nova forma de se vestirem. Tal intervenção resultaria no aumento da produtividade e ampliação de fronteiras agrícolas por meio da incorporação indígena como força de trabalho realizada através da imposição do cristianismo. Na sua concepção todos seriam considerados brasileiros, a partir do momento em que os índios abraçassem a civilização, de modo a acelerar a integração e a transformação dos indígenas em trabalhadores. Todavia isso não implicava na aceitação dessa população à categoria de cidadãos (PARAÍSO, 1998). Essa proposta não teve aplicação na prática indigenista vigente, contudo suas idéias influenciaram as discussões realizadas no cenário nacional em períodos posteriores. 19 Período Marlièriano - Primeiro Reinado - 1822 - 1831 A segunda década do século dezenove marcou o período da Era Marlière, em que foram assinaladas mudanças no padrão das relações estabelecidas com os índios. Em 1824, Guido Thomaz Marlière foi nomeado para Diretoria Geral dos Índios. Em sua concepção, a pátria estava associada ao patrimônio, considerado como domínio do rei absolutista. Portanto a idéia de nação não comportava diferenças lingüísticas. Tornava-se necessário pois, uma fixação de mecanismos de controle às distinções e oposições equilibrando com os mecanismos preservadores da civilização (PARAÍSO, 1998). Visando cumprir esse objetivo, Marlière traça estratégias, denominada de obra civilizadora que se sustentava nos quatro pilares de ação que sucedem: 1) amor ao indígena; 2) fixação nos aldeamentos; 3) serviço agrícola e 4)catequese (JOSÉ, 1964). O primeiro ponto referia-se ao tratamento até então recebido pelos indígenas nos violentos confrontos e imposições da sociedade dominante. Esse tratamento, na visão de Marlière, bestializava essa população o que implicava num entrave para a sua inserção na civilização. Marlière se contrapunha a essa prática e defendia uma aproximação amistosa onde as trocas funcionavam como motor dessa atividade 9. O seu objetivo era oferecer aos indivíduos bens da sociedade envolvente de modo a atraí-los aos aldeamentos e então intensificar as ações civilizatórias. Os procedimentos dessa ação civilizatória compreendia 1) os trabalhos dos desbravadores de matos para o acesso e contato com os grupos; 2) intérpretes para entender os indígenas; 3) sacerdotes para catequisar; 4) presença de boticários e cirurgiões; 5) comerciantes; 6) agricultores; 7) soldados para manter a ordem e 8) variado número de homens para atender as necessidades do povoado (JOSÉ, 1964). 9 Para tanto, a introdução de ferramentas, roupas, agulhas e aviamentos, espelho, miçangas, lenços, chapéus, guarnições militares, chapéus, canastra e selim inglês e retrato do Imperador em moldura eram métodos empregados para atrair os indígenas à civilização por meio de objetos e valores próprios da 22 para satisfazer interesses pessoais. Com isso os grandes conflitos entre índios e colonos foram interrompidos. Em contrapartida suscitou reações por parte dos interessados em manter o clima de guerra, reduzindo a interferência do Estado nesse setor administrativo. A postura de Marlière gerava crescentes insatisfações somando-se aos conflitos entre colonos e índios. As armas só seriam usadas, caso esgotasse os meios filantrópicos. Buscava solucionar conflitos enviando intérpretes para conversação. A insatisfação dos colonos juntamente com a dos políticos eram ponto de atrito com Marlière (PARAÍSO, 1998). Em reação ao controle e restrições do Diretor Geral dos índios aliada à cobiça das terras dos aldeamentos e aproveitamento da mão-de-obra para concessão de sesmarias, os colonos iniciam a invasão nas terras dos aldeamentos e destruição das roças, com amplo apoio das Câmaras Municipais que agiam em interesse dos colonos e buscaram interferir na Administração das Divisões, estas sob o comando de Marlière . O fim da era Marlière resultou na administração indígena sob controle e domínio dos particulares, principalmente os comerciantes, exploradores de poaia e fazendeiros. Essa administração promoveu a entrada nas matas do Mucuri, através do rio Todos os Santos, área habitada predominantemente pelo grupo Maxakali. Com a abdicação de D. Pedro I novas mudanças ocorreram, sendo que as características da política indigenista que marcou o Primeiro Reinado foi a superposição de legislações e destas com a prática social, decorrente da adoção de soluções temporárias e locais para equacionar as contradições e tensões sociais. Período Regencial - 1831 - 1840 O período regencial foi marcadamente de instabilidade política. Nesse contexto as oligarquias comandam o poder fundamentando-se num discurso, cujas idéias eram francamente de caráter liberal. Defendiam o livre-comércio, 23 produção em grande escala, representação política e descentralização administrativa. Todavia esse liberalismo era limitado, pois defendiam a manutenção do status quo, que compreendiam o sistema escravista, a estrutura fundiária, a hierarquia social e a participação política restritiva. A economia apresentava-se estagnada, desde o fim da exploração aurífera, e teve algumas oscilações durante o processo de emancipação, em que o Brasil teve de pagar uma alta taxa à Portugal para que esse reconhecesse sua independência. Tornava-se urgente então, uma retomada do desenvolvimento do país. A opção seria o estímulo à agricultura, especificamente o café, que teve boa aceitação no mercado externo. Não obstante, a elite agrária representada no poder vai defender uma redução do papel do Estado nessa atividade e se contrapor às idéias denominadas filantrópicas difundidas pela Inglaterra, entre as quais o fim do tráfico e a escravidão africana 11. Desse modo o Governo Regencial teve como princípio a descentralização da administração, em atendimento às reivindicações dos proprietários rurais, principalmente em relação à questão indígena objetivando obterem facilidade de acesso às terras dos antigos aldeamentos. Assim, a então Província de Minas Gerais passa de uma estrutura administrativa fortemente centralizadora e controladora, como o foi a atuação de Marlière, para um órgão meramente transferidor de responsabilidade administrativa dos aldeamentos indígenas a particulares. Apesar da manutenção das Divisões Militares, essas receberam orientação para reprimir possíveis agressões por parte dos índios, então sob controle do Presidente da Província, demonstrando claramente a atuação descentralizada. A estrutura de governo vai delegar a administração indígena ao Juiz de Paz, que em regra adotou uma política agressiva para a extinção dos 11 A Inglaterra nesse período obteve privilégios no Brasil, sendo a maior compradora de produtos primários e comercializadora de artigos manufaturados, pagando tarifas mais baixas, além de dominar totalmente o comércio marítimo nas Américas. Em virtude de seu poderio, defendia a liberação da mão-de-obra escrava e sua transformação em assalariados, o que representava potenciais consumidores, na concepção da nova ordem econômica internacional. 24 aldeamentos, visando o beneficiamento de foreiros e sesmeiros destas terras (PARAÍSO, 1998). Em Minas Gerais, além das questões relativas à navegabilidade do Rio Doce, as preocupações centravam-se nos problemas administrativos das Divisões Militares, no Jequitinhonha e no Mucuri, nova zona de conquista onde persistiam as revoltas indígenas. À frente dos empreendimentos estavam desafetos de Marlière, que desmantelaram a estrutura erigida por ele e Padre Lidoro da Fonseca. O objetivo era a implantação de uma Linha de Defesa em torno de Minas Novas, visando promover a pacificação da margem direita do Jequitinhonha, assegurando o acesso no Mucuri. Por meio da intensificação das forças repressivas, conjugada com a abertura de estradas, garantia o controle dos índios, e proporcionava segurança aos colonos, além de oferecer condições para a realização de novas descobertas minerais (MARCATO, 1980 e PARAÍSO, 1998). Assim como a descentralização funcionava como a peça de engrenagem da política do Governo Regencial ela foi também responsável pela instabilidade que determinou seu fim. Segundo Reinado 1840 - 1889 O Estado retoma o controle em 1837, após a renúncia do Regente Feijó que se sentiu isolado no poder frente às disputas entre Moderados e Exaltados. A partir daí, as questões relativas aos indígenas seria de competência do Ministério da Justiça, órgão responsável pela gerência. Nesse período, houve uma emergência de uma política centralizadora e restauradora dos Direitos e prerrogativas monárquicas que se estenderam até 1859. As elites conservadoras elaboraram um projeto de formação do Estado- Nação e a construção do Império. Na construção nacional, mais uma vez o índio foi considerado obstáculo à expansão e construção do território e à exploração das riquezas. O debate referente a essa questão teve como centro 27 considerável, devido à intensa redução demográfica e o avanço dos colonos nacionais no território que antes lhes pertencia. A partir dessa perspectiva de desenvolvimento do Estado-Nação, vários projetos foram elaborados no sentido de empreender a colonização de regiões pouco explorados como a área que compreende a bacia do Mucuri tanto em Minas Gerais quanto na Bahia, apesar das ações governamentais realizadas nessa região a partir das Cartas Régias. Efetivamente, o ano de 1845 foi determinante na execução dessa proposta com a criação da Companhia de Comércio e Navegação do Rio Mucuri formado por capital misto, projeto de colonização e aldeamento dos índios de autoria da família Ottoni. A presença dessa família foi de importância capital no processo de colonização do Mucuri, que tinha por finalidade a aquisição de lucros com a empreitada econômica proposta. Em seu entender, o Mucury era para todos um paiz encantado, uma espécie de El-Dorado (OTTONI, 1930: 176). Fundamentalmente a Companhia da família Ottoni no Mucuri visava transformar os índios em trabalhadores assalariados. O primeiro contato foi com os confederados Naknenuk, sendo a maioria da população pertencente ao subgrupo Malali, que buscavam refúgio de modo a evitar os ataques dos inimigos tribais, os Botocudos. De acordo com Theóphilo Ottoni, os índios, após a conquista de seus territórios, ficaram confinados entre os rios Doce e Jequitinhonha e o litoral o que contribuiu sobremaneira para o acirramento das guerras intertribais (OTTONI, 1930). Os procedimentos para a penetração da área, de certo modo correspondiam à prática adotada, além de se cercar do apoio governamental através da nomeação de parentes e aliados nos cargos da Diretoria dos Índios13 e das Divisões Militares. No caso das Divisões Militares, sua atuação atendia às várias caravanas 13O Coronel Honório Esteves Ottoni nomeado Diretor dos Índios do Distrito de Jequitinhonha (PARAÍSO, 1998:541). 28 exploratórias que contavam com soldados indígenas, cooptados ao longo dessas expedições. A predileção pelos soldados indígenas se justificava, a partir da concepção de Ottoni, que os considerava valiosos pelo conhecimento que tinham das matas e pela facilidade de exploração, pois eram menos exigentes nas contas dos soldos considerando-se as dificuldades em comunicar-se e entender o valor do dinheiro (OTTONI, 1930). Para Ottoni, os ataques em represália às bandeiras eram na verdade uma resposta ao tratamento recebido pelos indígenas no período de vigência da Guerra Justa. Erão as conseqüências do tratamento bárbaro que tinhão recebido os selvagens desde os tempos da conquista. Erão as conseqüências dessa carta Régia de triste recordação declarando guerra aos Botocudos. Erão especialmente as conseqüências do tráfico de kurucas (OTTONI, 1930:197). A sua visão do indígena era a de pessoas inocentes e facilmente manipuláveis. A figura dos militares era ameaçadora, pois constituíam os algozes, àqueles que praticavam os atos de violência contra os indígenas. A seu ver os fazendeiros eram apenas vítimas desse processo. Ottoni isenta as responsabilidades dos proprietários rurais pois prefere ignorar o conflito pelas terras e imposição de trabalho. Em referência aos Maxakali, Ottoni acreditava serem os descendentes dos Tapuia/Aimorés : Os Machacalis erão mais numerosos e aguerridos, e mostravão ódio inveterado contra os conquistadores , que os lançavão fóra de suas terras. Acrescentava também que eram caçadores, canoeiros, fabricantes de canoas e remos e oleiros. (...) a olaria é um dos ramos da sua indústria e em tal escala , que nas povoações das margens do Gequitinhonha cozinha-se exclusivamente em panellas da fabrica dos Machacalis (OTTONI, 1930:213). 29 Com a consolidação do sistema político imperial, em meados de 1850, a burocracia estatal de caráter centralizadora, configurava-se na base da política de Estado numa clara oposição às elites econômicas 14, que se encontra desarticulada nas relações entre sociedade e Estado. Com uma política voltada para fortalecer a unidade territorial, a preocupação das elites dominantes mediante o quadro de transformações econômicas e políticas era criar mecanismos legais para dificultar o acesso às propriedades da terra, com o aumento do preço. A partir da Legislação de 1850, a finalidade era legitimar a posse e sesmarias já estabelecidas, aceitando a coexistência de várias formas de produção, o que torna a lei flexível. Todas as terras efetivamente ocupadas deveriam ser registradas, medidas e demarcadas 15, bem como a aquisição de terras públicas foram proibidas exceto no caso de aquisição por compra, o que consolidou o significado da terra como bem comercializáveis (CARNEIRO DA CUNHA, 1992). O dispositivo da Lei que determinava a concessão de títulos de posse à empresas particulares para o estabelecimento de Colônias Nacionais e/ou estrangeiras16, proporcionava aos proprietários de terra o uso de mão-de-obra representada pelos negros escravos ou libertos, pelos indígenas e pelos imigrantes estrangeiros. Na verdade, apenas reafirmava o sistema vigente, de grande concentração de terras e abundância de mão-de-obra (CARNEIRO DA CUNHA, 1992:212). Esse aspecto vai ser reforçado com o Estatuto de 1850 que decretava o fim do tráfico, de promotora da civilização e colonização indígena e lei de 14 A composição das elites se encontra dividida entre os liberais que defendiam a abolição do tráfico e os tradicionalistas . A mudança no quadro da economia de exportação , com o açúcar em franca decadência e o café emergente alteraram a representatividade das elites nos quadros governamentais e conseqüentemente na regularização fundiária, exigida pelos proprietários cafeeiros somados a modernização dos sistemas financeiro, fiscal, administrativo e político além da abolição da escravatura PARAÍSO, 1998:560). 15 Esse aspecto da lei não foi eficiente face às inúmeras dificuldades de controle e fiscalização que consistia em despesas elevadas. 16 Lei N.º 601 de 18 de setembro de 1850 (CUNHA, 1992:212). 32 Pedestres, criada na segunda metade do corrente século com o objetivo de construção de estradas e vias fluviais de modo a viabilizar o comércio entre o interior e o litoral. Isso provocou um devassamento do território indígena, concomitante ao emprego do trabalho compulsório dos indivíduos desterritorializados principalmente nessa atividade. Aproximadamente em 1860 tem fim o modelo de aldeamento para civilizar, uma vez que o interesse das elites rurais era a tomada das terras dos aldeamentos por vias legais e pela força, descartando, portanto o trabalhador indígena. O crescimento da produção agrário-exportadora, bem como do mercado interno, exigia a expansão das relações de trabalho assalariadas, provenientes do projeto de imigração subvencionada e urbanização. Nesse panorama, os índios eram percebidos como obstáculo ao processo de expansão econômica voltada para a produção agrícola, no âmbito geral do desenvolvimento da Nação. Num movimento contrário, o General Couto de Magalhães, numa franca oposição às idéias de colonização estrangeira, fundava em Minas Gerais, no ano de 1870, grandes aldeamentos com o intuito de promover a integração dos índios e aproveitá-los como elementos úteis à sociedade, pois a seu ver os indígenas seriam os povoadores principalmente das zonas de conquista (PARAÍSO, 1998). A função das Colônias Militares era garantir a proteção e comunicação dos e com os indígenas, além da atuação na área econômica de promover e acelerar a ocupação e uso dos terrenos despovoados. Novamente os índios foram transformados em trabalhadores. O Governo Imperial determinava que as Colônias Militares deveriam ser administradas pelo Ministério da Guerra e da Agricultura 17. Essa divisão em duas categorias de Colônias atendia em última instância às finalidades de cada órgão. 17 Se os índios eram vistos como obstáculo para povoação e utilização das terras, então se tornava necessário destruir esse obstáculo, através da defesa (Ministério da Guerra), catequização e civilização (Ministério da Agricultura). 33 A Colônia Militar possuía fins estratégicos de proteção de fronteiras e de população, além de promover a ocupação de determinadas áreas. Já a Colônia Militar e Indígena visava promover o aproveitamento dos braços indígenas em atividades agrícolas e pastoris, possibilitar a pacificação de outros povos e torná-los guias na penetração dos sertões.(PARAÍSO, 1998). Valendo-se da estrutura administrativa das Divisões Militares, foram criadas em Minas Gerais as Circunscrições Catequéticas. Os Diretores cuidariam de fiscalizar os vários aldeamentos e seus diretores, geralmente compostos por fazendeiros locais. A década de setenta marca o princípio do processo de implantação do capitalismo no momento em que ocorre um maior direcionamento para os investimentos em ferrovias, portos e linhas de telégrafo, melhoria do serviço público, expansão da mineração e fundação de Bancos entre outros. Esse fato se configura num sintoma de que a ordem vigente carecia de transformações estruturais para sua manutenção, o que não se realizou. O ano de 1871 se apresentava como um período de estabilidade no número de aldeamentos no Vale do Jequitinhonha que até então vivia em período de estagnação no processo de expansão da conquista. Quanto aos grupos indígenas também não houve ocorrência de fracionamento, característica dos Maxakali, o que conformava as adaptações às normas estabelecidas pelos colonizadores, de confinamento em áreas restritas, redução espacial, incorporação na sociedade (PARAÍSO, 1998). Em contrapartida, os vales do Rio Doce e Mucuri apresentavam uma grande concentração de aldeamentos Macro-Jê o que de certo modo fez com que aumentasse os conflitos levando-os a se subdividirem como forma de sobrevivência (MARCATO, 1980). Na segunda metade da década de setenta o argumento era que os índios já se confundiam com a população em geral, decorrendo daí a política de desativação das estruturas administrativas de assistência ao índio, atendendo aos interesses dos proprietários e autoridades locais. A justificativa 34 era a falta de investimentos daí a necessidade de extinção dos aldeamentos. As transformações posteriores à Guerra do Paraguai vão ser fundamentais no processo político, pois representavam o declínio da monarquia que enfrentava crises de toda a ordem e a emergência de militares que se estabeleceram enquanto força política, baseados nos princípios do positivismo e do federalismo, carro chefe das idéias republicanas. O enriquecimento da região cafeeira do oeste paulista propiciou novas condições sócio-econômicas, como o crescimento de cidades, novas formas de relações de trabalho e o desenvolvimento de prestações de serviços, que resultaram na formação de novas classes sociais que se contrapunham à elite oligárquica. Esse choque entre o poder econômico, representado pelo grupo emergente da produção cafeeira e o poder político, centrado nas mãos da elite rural decadente do nordeste, vão culminar no movimento pró-República que determinavam mudanças nesse cenário político. Essas mudanças, no entanto, não tiveram caráter revolucionário, na medida em que postulavam um controle político, apesar do discurso de promover a industrialização, sem, portanto romper com a estrutura econômica agrário-exportadora, assentada em grandes latifúndios. A única alteração verificada foi a relação de trabalho de escravista para assalariada. Período Republicano - Século vinte - a atuação do SPI e da FUNAI As relações de trabalho em pauta colocam fim aos aldeamentos, que perdem sua função de aproveitamento da mão-de-obra indígena, priorizando a imigração européia. Nesse contexto, vale ressaltar as influências da doutrina positivista na esfera política de manutenção do equilíbrio social, fundamental para a consolidação da sociedade burguesa. A estreita relação do Governo e o Apostolado Positivista foram refletidas na política indigenista. Na concepção positivista os indígenas se encontravam 37 com os interesses de expansão agrícola (LIMA, 1992). A despeito da ênfase da ação protecionista do SPI em Minas Gerais, o processo de desterritorialização persiste contra os Maxakali. A ocorrência, em 1917, de um massacre nos aldeados do Rubim e Kran sob o comando do Tenente Henrique Marcelino de Oliveira, que utilizou métodos de extermínio através de distribuição de roupas contaminadas com vírus do sarampo e incêndio das roças é um claro sinal desse processo. Esse fato incorreu numa depopulação do grupo o qual se seguiram outros fatos semelhantes fazendo com que se unissem no mesmo espaço. Em 1920, o Governador de Minas Gerais, Artur Bernardes através da Lei 778 18/09/20 e do Decreto 5462 10/12/20, cedeu 2.000 ha para instalação do Posto Indígena no rio Umburanas sob a alegação de prosseguir com o trabalho de catequese dos índios hostis (MONTEIRO, 1992). Como isso não ocorreu, novas estratégias de expulsão foram praticadas e mesmo com a resistência de parte do grupo não foi possível evitar a redução demográfica e o esbulho de suas terras, que resultou na divisão do grupo em duas glebas. Em 1916 o Código Civil promulga que o Estado será o tutor das populações indígenas, sendo regulamentada essa situação somente em 1928 com o Decreto nº 5.484. Após 1930, transformações de ordem política e econômica ocorreram no cenário nacional inaugurando novas relações com as populações indígenas de intensificação do processo civilizatório. O Estado se configura no catalisador de todas as questões centralizando todas as decisões. Todavia isso não implicava numa política voltada para atender as necessidades dos indígenas, mas novamente atender aos projetos de desenvolvimento comandados pela elite oligárquica. O SPI nesse cenário de transformações passa a ser vinculado ao Ministério da Guerra como parte da Inspetoria Especial de Fronteiras, em 1936 através da Regulamentação nº 736. O teor dessa política é a nacionalização 38 dos indígenas, com a finalidade de incorporá-los à nação como guardas das fronteiras. Com o Decreto Lei 1736 de 1939, o SPI fica subordinado ao Ministério da Agricultura. No caso Maxakali, o Posto Indígena Engenheiro Mariano de Oliveira 20, foi fundando em 1940 na gleba de Água Boa dando início ao processo de demarcação da área. Todavia, os princípios de proteção e demarcação de terras, postulados pelo órgão não foram respeitados no caso Maxakali, pois a área demarcada foi bem menor que a consentida, o que a rigor não alterou o quadro existente, desagradando em demasia o grupo, uma vez que excluiu áreas de ocupação tradicionais e de certo modo referendou a ocupação intrusiva pelos fazendeiros-posseiros (BRÉA MONTEIRO, 1992). No ano de 1946 a Constituição garantia aos índios o direito a ter o domínio de seu habitat tradicional. Contudo nenhum movimento foi observado por parte dos órgãos competentes (BRÉA MONTEIRO, 1992). Novamente a área Maxakali foi demarcada de forma equivocada pois excluía a totalidade. Para o grupo representava perdas significativas nas fontes de aquisição de seus proventos com a intrusão em suas terras e destruição do meio natural, modificando as atividades econômicas do grupo. Justamente na área ocupada, considerada a melhor em termos de potencial ambiental, está a mata galeria e o ribeirão Umburanas, impedindo o acesso à caça, coleta e pesca, base das atividades econômicas do grupo. Isso ocorreu em 1956, período de instabilidade política e reordenamento econômico (BRÉA MONTEIRO, 1992 e ALVES, 1992). Com as freqüentes denúncias de corrupção dos funcionários do SPI, esse foi extinto e criado em 1967 a Fundação Nacional do Índio - FUNAI que na verdade, desempenharia as mesmas atividades do órgão extinto. Durante o período do Governo Militar, o grupo sofreu repressões e foi 20 O Engenheiro Mariano de Oliveira foi membro do Apostolado Positivista do Brasil radicado em Teófilo Ottoni. No episódio em Itambacuri de conflito entre os missionários Capuchinhos e os indígenas fixados no aldeamento sob a direção dos missionários, o Engenheiro se destacou por suas críticas contundetes da atuação dos missionários como elemento desagregador dos grupos indígenas (GAGLIARDI, 1989). 39 imposto uma militarização com a criação da Guarda Rural Indígena - GRIN. O objetivo ao implantar essa força repressiva junto aos indígenas da região de Minas e Bahia era a desestruturação total dessas sociedades e liberação das terras indígenas. O seu projeto contava com a construção de habitações nos moldes da sociedade regional, introdução de gado nas roças dos índios, apostando na mudança do modo de vida do grupo. Qualquer movimento de resistência era violentamente reprimido. Uma de suas imposições no tocante à questão territorial era a manutenção da demarcação de 1956 com duas glebas isoladas e perda de parte das terras ocupadas anteriormente por aldeias (AMORIM, 1967; MARCATO, 1980; NASCIMENTO, 1987; MONTEIRO, 1992 e PARAÍSO, 1998) (Mapa 4). A repressão realizada pelo Capitão Pinheiro, duble de militar, sertanista e fazendeiro ao grupo foi violenta, chegando a realizar prisões de alguns indivíduos considerados perigosos, levando-os para a Fazenda Guarani, localizada no município de Carmésia, próximo à Belo Horizonte. Nesse Presídio, eram imputados castigos e violências, além dos confinamentos em celas, visando desequilibrar o indivíduo, de modo que esse não tivesse condições de resistência e rebeldia (PARAÍSO, 1992). Um dos aspectos mais marcantes na história de vida dos Maxakali foi a intervenção militar, ocorrida entre 1968-73, promovida pelo Capitão Manoel dos Santos Pinheiro, Chefe da Ajudância Minas-Bahia (NASCIMENTO, 1987:73). O Estatuto do Índio de 1973 vai estabelecer que as comunidades indígenas integradas, àquelas incorporadas ao todo nacional 21 e reconhecidas no pleno exercício de seus direitos civis, mesmo mantendo seus usos, costumes e tradições culturais deixam de constituir aos olhos da lei uma comunidade indígena. Esse dispositivo surge como uma forma de atender aos interesses dos que ambicionam as terras indígenas, que argumentam que com 21 Integração é entendido como emancipação legal e serve como parâmetro para definir se uma pessoa é ou não índio ou se pertence ou não à uma comunidade indígena. 42 CAPÍTULO II MOBILIDADE E DISPERSÃO Após discorrermos acerca da política indigenista, pretendemos verificar como foi o confronto do grupo Maxakali com as frentes de expansão da sociedade dominante nesse período e entendermos a sua atuação no espaço e sua distribuição e posteriormente a relação com o meio circundante. Nesse sentido, os relatos etno-históricos dos viajantes naturalistas tomam vulto, na medida em que apontam o modo de vida do grupo, em sua maior parte nos aldeamentos e quartéis, ficando explícito as práticas políticas adotadas pela sociedade dominante. Em face dessas imposições ocorreu uma intensificação dos deslocamentos territoriais levando muitas vezes ao fracionamento dos grupos. Para tanto lançamos mão de duas teses que explicam a mobilidade do grupo no espaço em que atuava, elaborada por Rubinger e a fragmentação dos bandos que resultaram em vários subgrupos, defendida por Paraíso (RUBINGER, 1963 e PARAÍSO, 1994/98) (Mapa 3). Nos documentos oficiais e relatos etno-históricos há uma variação na compreensão e grafia dos nomes dos grupos e/ou subgrupos, como no caso dos Maxakali/Machacalizes/Machacaris/Macachacalizes/Malakaxi/ Malakaxeta (OTTONI, 1930; WIED NEUWIED,1954; NIMUENDAJU, 1958; SAINT- HILAIRE, 1975; AIRES CASAL, 1976; POHL, 1976 e SPIX & MARTIUS, 1986). A origem do termo Maxakali é desconhecida. Nimuendaju reporta ao termo Monacó bm. Popovich acredita que ele se referia ao termo para o ancestral mõnãyxop. Na verdade o grupo se autodenomina Tikmũ'ũn, que designa a identidade do grupo, nós (NIMUENDAJU, 1958 e POPOVICH, 1984). É fundamental termos claro esse aspecto para podermos compreender 43 como o grupo dos Tikmũ'ũn se articularam no processo de resistência dos combates enfrentados seja por seu deslocamento constante ou pelo seu fracionamento. Estaremos considerando não somente o grupo genericamente conhecido por Maxakali, mas todos àqueles os quais Paraíso determina como subgrupos. Relatos dos Viajantes Naturalistas Os índios, embora dependentes dos brasileiros, conservaram na sua aldeia a casa de conselhos em memória de sua antiga independência. Assim como os Maxacalis e outras tribos, os Malali, foram doutrinados há alguns anos, são chamados cristãos e vão à confissão; suas idéias, no entanto, sobre a religião são singulares, uma vez que a referência será a de sua cultura (WIED-NEUWIED, 1954:388). A despeito dos confrontos do grupo com a sociedade dominante, que muitas vezes resultaram em alianças como estratégia de sobrevivência, percebemos que durante esse processo foi possível a manutenção de elementos culturais tradicionais. Essas características foram ressaltadas nos relatos e crônicas de viagens dos naturalistas estrangeiros que tinham como finalidade conhecer o Novo Mundo para então elaborar estratégias de expansão e dominação, atendendo os interesses econômicos. Com a consolidação do capitalismo industrial na Europa, o objetivo maior dessas viagens era verificar o estágio de desenvolvimento da sociedade brasileira para viabilizar os projetos de livre comércio e ampliar os mercados. Essas viagens, portanto, implicavam numa expansão do domínio colonial sobre áreas não exploradas e apropriação do outro como elemento de auto-reflexão comparativa, como por exemplo, no século dezoito, essas viagens foram a base das reflexões filosóficas dos enciclopedistas. Mas principalmente após a vinda da Corte Portuguesa para o Brasil que 44 essas viagens foram fomentadas e intensificadas, contando inclusive com estímulos e encorajamentos dos representantes do Estado. A área que compreende o sul da Bahia, nordeste de Minas Gerais e norte do Espírito Santo foi uma das regiões mais visitadas, pelo fato de que nela viviam os Botocudos, que por suas características guerreiras e resistentes à política de dominação prescrita pela sociedade colonial, despertava a curiosidades, fundamentalmente no âmbito científico, a partir da adoção de critérios biológicos, no sentido de verificar a origem dessa espécie de ser (CARNEIRO DA CUNHA, 1992). Boa parte dos viajantes naturalistas, devido a sua formação, realizaram uma descrição dos povos indígenas, a partir da construção de tipos, classes, gêneros e espécies na classificação das sociedades. Desse modo, a maioria das obras produzida é limitada em função desse fato e da dependência de informantes, pois não falavam a língua dos povos estudados. É importante salientarmos o contexto da produção científica e intelectual do momento, em que os valores iluministas e a crença de que os autóctones estavam fadados ao desaparecimento, ou pela extinção física ou destruição das formas tradicionais de organização social eram correntes (CARNEIRO DA CUNHA, 1992 e PARAÍSO, 1998). Além do mais, a preocupação central era a obtenção de dados de cunho naturalista, geográfico ou histórico. As informações etnográficas foram organizadas geograficamente e não por etnias, ressaltando mais o exotismo que a cultura especificamente. Apesar disso, foram estruturados os primeiros Museus de História Natural, base para a afirmação das ciências humanas no período (PARAÍSO, 1998). No tocante aos relatos sobre os grupos da região do Nordeste de Minas Gerais, boa parte considerava a existência de uma confederação de tribos, o que permite-nos reforçar a hipótese defendida por Paraíso. Na visão dos autores essa confederação se justificava pela guerra intertribal com os Botocudos, o que implicava na freqüente mobilidade e alianças com os 47 sobretudo a desagregação de sua cultura tradicional e obviamente a depopulação. Essa tribo, também chamada maconi, é uma das mais fracas que habitam estas regiões montanhosas, na fronteira entre as províncias de Minas Gerais, Porto Seguro e Bahia, e, pelo terror que tem aos seus poderosos inimigos, os botocudos, tanta amizade fizeram com os portugueses, que, talvez dentro em poucos decênios, tenha ela perdido inteiramente todas as suas características. Não contará atualmente mais de 300 almas; a maioria deles dirigiu-se do interior para o mar, na vizinhança de Caravelas, onde porém, já muitos adoeceram, vítimas das sezões ali reinantes.(SPIX & MARTIUS, 1986:63). Boa parte dos contatos estabelecidos entre os viajantes e os grupos ocorreu em quartéis e aldeamentos da região do Jequitinhonha e Mucuri. A então Comarca de Minas Novas que englobava boa parte do Alto Jequitinhonha onde se localizavam o Quartel Alto dos Bois, a comunidade de Peçanha e os assentamentos localizados às margens tanto do Jequitinhonha quanto de seus afluentes é recorrente. No processo de confronto que incorreu na depopulação senão extermínio de boa parte dos grupos supracitados, Denis aponta que entre os sobreviventes das nações indígenas, que ainda erram pelas grandes florestas de leste, ou que se começam a reunir em aldeias, cumpre incluir principalmente os botocudos, os macunis e os malalis (DENIS, 1986:381). Nessa mesma perspectiva de dominação o autor relata que entre a localidade de São Pedro dos índios até Porto Seguro havia diferentes aldeias de caboclos, os quais denominavam os índios submetidos por desconhecerem o nome de sua antiga aldeia e grupo, além de não recordarem de nenhuma tradição cultural e guardarem rancor aos índios que vivem em liberdade. No que diz respeito ao entrusamento nas matas do Mucuri, Freireyss relata que, (...) corre mais perigo embrenhar na mata a enfrentar os 48 indígenas: cumachos, manos, frechas, machacalis e até mesmo os botocudos que fizeram alianças em data recente (FREIREYSS, 1976:214). O Mucuri apresentava-se no início do século dezenove uma região misteriosa e completamente desconhecida. Por suas matas fechadas e pela dificuldade de acesso serviu de refúgio para os grupos das proximidades, como os Malali, durante o processo de compulsão da sociedade dominante, além da constante luta com os Botocudos. Além destas, mais cinco outras pequenas nações habitam as matas virgens, na fronteira leste da província de Minas Gerais: os maxacaris, os capoxós, os panhames, os comanoxós e os monoxós. As moradas destes não são fixas, sobretudo por causa da pressão dos irrequietos Botocudos, que perseguem tais pequenas tribos como a inimigos mortais. Outrora, viviam eles mais espalhados, entre os rios Suruí, Suçuí, e as nascentes do Mucuri, vindo porém os Botocudos do alto Rio Doce, obrigaram-nos a seguir para leste, para as cabeceiras do Rio Mateus, região mais fria, mais pedregosa, de pouca caça (POHL,1976:132). Quanto a ocupação de Minas Novas no processo de desterritorialização indígena, Denis e Saint-Hilaire, em suas observações na região do nordeste de Minas Gerais e parte do litoral do Espírito Santo e Bahia, discorrem que a região difere por seu aspecto e por sua vegetação (SAINT-HILAIRE, 1975 e DENIS, 1986). É importante salientarmos que a região de Minas Novas nesse período abarcava toda a área do Jequitinhonha limitando a leste com o sul da Bahia e boa parte do noroeste do Mucuri, o que caracterizava posição privilegiada e uma região de grandes florestas desertas com baixa densidade populacional, proporcionando o refúgio de vários grupos. Desse modo Denis considerava que essa região ofereceria condições para a execução do projeto de civilização dos povos indígenas locais. 49 Se algumas experiências frutuosas de civilização se podem ser tentadas sobre as nações indígenas é por certo nesta região que, por seus meios de comunicação, se acha em relação direta com a costa oriental e o Rio de Janeiro, se deva pô-las em execução. Infelizmente, esses esforços sempre louváveis, já não poderiam dirigir-se senão a tribos semi-destruídas, pertencendo, em sua maior parte à raça dos tapuias, que se mostram por conseguinte mais rebeldes e mais selvagens do que as nações descendentes dos tupis (DENIS, 1986: 387). Por outro lado, fora dessa circunscrição, a população indígena já se encontrava em processo de integração do projeto civilizatório como assinalou Wied Neuwied em referência aos grupos que habitavam as proximidades de Minas Novas: (...) com mais freqüência se mistura com os colonos que habitam a orla das florestas, e se há melhoramentos no estado moral dos habitantes de Minas, dele devem necessariamente participar estas tribos nômades (WIED NEUWIED, 1954:143). Na descrição do modo de vida dos grupos percebemos uma freqüente comparação em que são apontadas as diferenças e semelhanças entre os grupos. Sobretudo em comparação com os Botocudos reforçando a tese de que os Botocudos também denominados de tapuias eram hostis, ferozes e inimigos cruéis e os demais eram pacíficos e domesticáveis. Essa visão era compartilhada por todos àqueles que percorreram a região no início do século dezenove o que é perfeitamente compreensível dado à divisão estabelecida pela política indigenista da época de modo a justificar a Guerra Justa. Denis por exemplo, ao traçar o perfil dos Botocudos, faz uma comparação aos Maxakali, especificamente no que se refere aos cantos. Bem diferentes, neste ponto de vista, dos machacalis, que nós ouvimos, e que entoam, com certa harmonia, cantos suaves e medidos, que repetem em coro (...) Os machacalis,semi- independentes, semi-civilizados, que outrora introduziram uma pena de arara no lábio inferior ( DENIS, 1986:236). 52 Rubinger, para entender o contexto binário da região recorre ao trabalho da Geógrafa Elza Coelho, que divide o Estado de Minas Gerais em duas grandes regiões limitadas pela isaritma de 141 hectares de área média e de 12 habitantes por quilômetro quadrado de área ocupada. Essas áreas se caracterizavam numa zona agrícola/agropecuária, com propriedade de área média variando de vinte e cinco a quatorze hectares e com população rural e densa e numa zona onde domina a criação extensiva feita em grandes propriedades com população rural dispersa (RUBINGER, 1963:14). A zona mencionada em primeiro ponto trata-se do sudoeste à nordeste do Estado que compreende o Alto Jequitinhonha e o Pardo, que se caracterizavam por propriedades menores de quatorze hectares. Já a segunda zona trata-se do oeste à nordeste, o Médio Jequitinhonha que possuía propriedades maiores de quartzo hectares. No seu ponto de vista, essa divisão é imprescindível para compreender a diversidade das regiões no concernente às condições geográficas, recursos naturais e a própria sociedade. Conforme os dados históricos, o povoamento nas duas áreas se deu de maneira distinta. O Alto Jequitinhonha foi explorado e povoado primeiramente, e por indução de fatores externos. A exploração de ouro e diamante possibilitou o crescimento populacional que levou a expulsão e extermínio de indígenas, próprio da dinâmica da economia extrativa do Brasil Colônia. O Médio Jequitinhonha por outro lado, teve no início de seu povoamento alguns resquícios da economia de exploração, através das bandeiras prospectoras, seguidas de exploração de madeiras, erva poaia e couros silvestres. Esse fato estabeleceu uma distinção no confronto com os indígenas. A colonização se deu à base de criação extensiva em propriedades latifundiárias nacionais. Os colonizadores do Alto Jequitinhonha tiveram em seu princípio uma frente extrativo-mineradora, região de pequenas propriedades que ainda conserva extração mineral como uma das principais atividades econômicas. Em boa medida, a atividade mineradora propiciou a divisão em pequenas 53 propriedades voltadas para uma reduzida agricultura de subsistência, lavouras de milho, feijão, arroz, mandioca, destinada à população de faiscadores e garimpeiros que ali se fixaram (RUBINGER, 1963). O principal município da área localizado ao sul de Minas Novas, no vale do rio Suaçuí, é a cidade de Peçanha, antiga Suassuhy, fundada por mineradores que extraíam ouro no rio Suassuhy Pequeno. Como a área possuía uma densidade populacional indígena, esses sofreram processos de destribalização, massacres e aldeamentos de cativeiro, entre os quais destacam-se os Monoxós, Malalis, Panhames, pertencentes à grande família ou horda indígena dos botocudos ou caboclos e bugres (RUBINGER, 1980:18). A população do Médio Jequitinhonha praticou, inicialmente, uma incipiente frente extrativa de poaia, madeiras e peles, seguidos de uma frente pastoril em lavoura reduzida. O Médio Jequitinhonha está localizado no extremo Nordeste do Estado. De acordo com a divisão proposta por Coelho, está definido como área de grandes propriedades (COELHO apud RUBINGER, 1963). O autor afirma que um dos fatores de sobrevivência das aldeias foi o tipo de colonização ali empreendido. No princípio, era uma área de frente extrativa de poaia - ipecacuanha, madeira e peles e posteriormente estabeleceu-se uma frente pastoril com lavoura reduzida, onde predominavam os extensos latifúndios. A densidade demográfica era de doze habitantes por quilômetro quadrado e também apresentava rincões perdidos, ótimos refúgios para indígenas. A respeito do Vale do Mucuri, Elza Coelho afirma que a pecuária era a principal atividade econômica e a lavoura ocupava menos de seis por cento da área produtiva. A exploração de madeira foi a principal atividade econômica na área do Vale do Mucuri, até então pouco explorada, em que as matas ocupavam quarenta por cento da área produtiva, seguida da atividade extrativo-mineral. Face à deficiência dos meios de transporte e insalubridade da região. 54 Foram as condições geográficas da área, as circunstâncias demográficas e as particularidades sociológicas da sociedade pastoril, que facilitaram o refúgio por mais algum tempo dos índios das agressões dos aventureiros e caçadores de índios (COELHO apud RUBINGER, 1963:15). Com a pressão demográfica, composta pelo que Rubinger denomina de massa de ociosos, àqueles indivíduos sem ocupação após a decadência da mineração, proporciona a penetração desses nos latifúndios, nas terras devolutas e nas terras indígenas. Em sua perspectiva, a frente de economia extrativo-mineral foi mais agressiva que a pastoril, tendo em vista que na primeira situação os indivíduos são desgarrados de sua família para trabalhar na exploração de minérios, acarretando violentas agressões ao grupo tribal, enquanto na frente pastoril era constituído de núcleos familiares, em que torna difícil um confronto desta natureza. Os Maxakali, na luta por sua sobrevivência, cria uma flexibilidade reguladora de sua estrutura econômica. Segundo o autor, o grupo foi capaz de formular seu sistema econômico e adaptá-lo às condições que garantissem sua sobrevivência frente às pressões sobre o seu território, ao contrário dos outros povos indígenas de Minas Gerais. Do ponto de vista da necessidade de sobrevivência, ambos os sistemas em contato desenvolveram ajustes mútuos que lhes permitiram reconhecer a existência de uma situação de interdependência por meio de algumas relações gerais compartilhadas por ambos os segmentos, principalmente no que diz respeito à subsistência material e à sobrevivência física (RUBINGER, 1980). A flexibilidade adaptativa de sua estrutura social 25 que o autor trata, corresponde na verdade às estratégias de sobrevivência do grupo que é baseado num sistema que condiciona a operação de fatores e injunções de 25 Rubinger se refere as sujeições do grupo às condições de vida dos aldeamentos e à sua estratégia de resistência através das inserções e adaptações de atividades econômicas alternativas (RUBINGER, 57 na medida em que reúne os indivíduos em torno do líder e do Kuxex e/ou casa dos cantos. Baseando-se no fato de que a reformulação na composição das aldeias se dá a partir da fluidez dos momentos de dispersão e concentração/reordenamento e pelo poder difuso, no qual segundo Feldner, o líder não participa das atividades produtivas do grupo. Os bandos passam a constituir sociedades autonômas e auto-suficientes tendo em destaque o líder orientando toda a dinâmica do grupo, o que de certo modo provocou um fracionamento na identidade do grupo (FELDNER apud BECHER, 1961; POPOVICH, 1992 e PARAÍSO, 1998). Paraíso defende que a dispersão dos vários bandos deveu-se às características da estrutura de funcionamento do grupo sustentado nessas quatro unidades básicas (identidade, residencial, grupo doméstico e bando), com as pressões e conquistas dos seus territórios fomentados pelos colonos e outros índios, o que agravou as condições de vida e aumentou as crises. Não obstante a esse fato, ela argumenta que a consciência étnica foi que possibilitou as alianças e os aldeamentos conjuntos bem como as mesmas práticas no enfrentamento aos inimigos comuns. A conjunção de todos esses fatores, (...) dilatação do território, dispersão dos subgrupos ou bandos, o que explica as múltiplas identificações conhecidas, a imposição de modo de vida dos aldeamentos compulsórios e o confinamento em áreas restritas fez com que essas diferentes identificações se cristalizassem (HOROWITZ apud PARAÍSO, 1998:286). Nesse aspecto de dispersão e fracionamento, Marcato credita às freqüentes guerras intertribais entre os Maxakali e Botocudos, além das pressões das frentes colonialistas de expansão no enfrentamento com os soldados, mineradores, criadores de gado e agricultores, além do fato destes exercerem atividades econômicas de caça, pesca, coleta e possuírem agricultura incipiente exigindo mobilidade constante (MARCATO, 1980). 58 Os Maxakali e o confronto Acreditamos que os confrontos só fizeram intensificar essa característica do grupo analisada por Popovich e Paraíso e obviamente que esses foram fundamentais na mobilidade do grupo como forma de sobrevivência. Daí a necessidade de explicitarmos esses enfrentamentos numa seqüência cronológica e espacial inserida na prática política vigente em cada momento. Em 1734, foram descobertos diamantes na área entre o rio São Francisco e o Jequitinhonha e o mestre de campo João da Silva Guimarães organizou uma expedição de penetração nas matas dos rios Doce, Mucuri, São Mateus, que realizou combates com os Maxakali, às margens do rio Todos os Santos, afluente do Mucuri. Essa foi a primeira referência registrada do grupo. A região de ocupação do grupo genericamente conhecido por Maxakali compreende os Vales dos rios Jequitinhonha, São Mateus e Mucuri. A região do Mucuri, em especial dado ao fato de ter ocorrido nessa região o primeiro contato e também por ser a que teve um processo de colonização mais tardia, início do século dezenove, permitiu a sobrevivência dos grupos que ali habitavam por mais tempo, proporcionando também refúgio aos grupos oriundos de regiões próximas. Conforme relato de Theophilo Benedito Ottoni, os grupos Macuni, Malali, Machacali, Nackenenuke, Arna, Bahué, Bituruna, Giporoke, etc, concentraram- se na zona do Mucuri estendendo a Nordeste e Noroeste do Jequitinhonha até o litoral e ao sul de Suassuhy Grande e Rio Doce, removidos por atos compulsórios da frente de penetração extrativo-mineradora. As que permaneceram foram dizimadas (OTTONI, 1930:174). A documentação oficial relata, logo após o contato, na segunda metade do século, que os Monoxó, Malali, Maxakali, Kopoxó e Panhame fizeram alianças pacíficas com os colonizadores e trabalharam como combatentes na guerra contra os Puris e Botocudos nas fronteiras entre Minas Gerais e Espírito 59 Santo (PARAÍSO, 1998). Nesse período estava ocorrendo a penetração exploratória no Vale do Jequitinhonha, particularmente no sentido oeste-leste, curso médio na altura de Lorena dos Tocoiós e Boa Vista do Jequitinhonha (atuais cidades de Coronel Murta e Jequitinhonha). Além da exploração em busca de riquezas minerais, essas expedições foram estimuladas em função das dificuldades de exploração do Rio Doce, especificamente por suas barreiras naturais. Em 1750 devido a expansão das frentes mineradoras e da pressão dos Botocudos eles se refugiaram para a foz do Mucuri em São José do Porto Alegre. Segundo o Sargento-Mor Francisco Alves Tourinho, essa população mantinha os hábitos tradicionais de deslocamento constantes além do fato de estabelecerem trocas com os colonos quando não atacavam as fazendas (PARAÍSO, 1998). A fundação da primeira aldeia em Minas Gerais data de 1758, comandada por João Peçanha Falcão e o Vigário Antônio Freire de Andrade na localidade de Santo Antônio de Peçanha no rio Vermelho, afluente do Suaçuí Pequeno. Os índios aldeados eram os Malali, Monoxó e Makoni que, conforme a documentação oficial, teriam se apresentado voluntariamente sentando praça em Alto dos Bois, onde também tinha um aldeamento dos grupos Monoxó, Kopoxó, Kutaxó e Panhame/Naknenukn (AIRES CASAL, 1976). Entre 1759 e 1760 os índios Giporoks, Nacknenucks, Pojichás e outros atacaram Peçanha, vindos da serra dos Aymorés, do Vale do Mucuri e Rio Doce. (AIRES CASAL, 1976). Nessa região a maioria dos indígenas pertencia à mesma nação e eram refugiados do litoral da Bahia e zona de mineração, como os que foram encontrados próximo à Vigia (Almenara), Bom Jesus (perto de Araçuaí) e São Miguel (Jequitinhonha). Com a expansão da agricultura e comércio, a partir de 1770 entre a Bahia e Minas Gerais, incentivadas pelo Governo, foram realizados vários contatos com os indígenas que ali viviam, através de entregas de brindes e 62 PARAÍSO, 1992). Em fuga dos Botocudos os grupos Malali e Makoni se apresentam no Quartel Alto dos Bois, buscando a segurança prometida pelos chefes dos aldeamentos. O registro desse fato data de 1809, quando os indivíduos desses grupos foram submetidos à régia imposição de combaterem os Botocudos. Além das ameaças dos Botocudos, esse período foi traumático para os indígenas dessa região, pois marca as determinações da Carta Régia de 1808 que decretava a Guerra Justa aos Botocudos. Frente à tantas prescrições e pressões o grupo se refugia nas matas. Há apontamentos de que os Maxakali estavam localizados no aldeamento do Prado na margem esquerda do Jucurucu por volta do ano de 1813 e mais tarde na Vila de Santa Cruz, próximos ao Quartel de Aveiros. Nos aldeamentos Sucuriú, afluente da margem direita do rio Araçuaí, destacam a presença dos Maxakali, hoje cidade de Francisco Badaró. Outro grupo foi localizado próximo a Setúbal, afluente da margem direita do Araçuí e em Boa Vista do Jequitinhonha, margem esquerda do Jequitinhonha, considerado como refúgio dos Maxakali de Lorena dos Tocoiós (Coronel Murta). No Quartel e aldeamento de Alto dos Bois, em Minas Novas, viviam aldeados os Makoni. Nas matas estavam os Maxakali, Kopoxó, Kumanaxó, Monoxó e Panhame, bem como no Quartel de Santa Cruz da Chapada, atual cidade de Chapada, situada às margens do rio Capivari, afluente do Suaçuí Grande (PARAÍSO, 1998). No período marlieriano, constam os registros de que os Maxakali ao fugirem do Quartel de São Miguel se assentaram nas proximidades da Ilha do Pão em 1817 e posteriormente, 1818, aldearam-se no Farrancho, Ribeirão dos Prates, Rubim do Sul e Jucurucu, próximo ao destacamento do Vimieiro, acima da Vila do Prado (JOSÉ, 1962). Em função dos constantes deslocamentos, o grupo foi se fragmentando 63 fazendo surgir novos aldeamentos como o de São Pedro de Alcântara e Rubim e Araçuaí entre os anos de 1830 e 1840 (RUBINGER, 1980 e PARAÍSO, 1992) A expedição comandada pelo engenheiro Pedro Victor Renault em 1837 foi impedida de ser efetivada num confronto com os Maxakali. Renault afirmava que o grupo estava anteriormente no Quartel Alto dos Bois fugindo em seguida para Capelinha da Graças e mais tarde para Sorobi (localizado entre Água Boa e Malacacheta). No aldeamento do Sorobi, a família Pego foi denunciada por Frei Bernardino do Lago Negro, pois usava das benfeitorias dos aldeamentos e imputava castigos e torturas aos índios que resistiam à escravidão e à condição de mão-de-obra alugada. Estabelece-se um conflito entre as partes que só termina com a intervenção do Governo Provincial. Nisso os Maxakali fogem para o interior do Mucuri, apesar das tentativas do Governo de mantê- los no aldeamento, pois poderiam atrair outros grupos para se aldearem na região e então cumprir a política de civilização, proporcionando condições para que essa população atenda aos interesses da elite rural como reserva de como mão-de-obra em substituição aos escravos africanos. Na década de sessenta foi realizado um levantamento dos aldeamentos na circunscrição do Jequitinhonha e constataram nove assentamentos Maxakali. O aldeamento do Farrancho foi considerado o mais próspero em relação aos demais: Água Branca, Pampã, Rubim, Kran, Americanas, São Francisco da Ilha do Pão, São Pedro de Alcântara e Volta (MARCATO, 1980 e PARAÍSO, 1992). Com a decadência do Segundo Império, que culminou com o fim dos aldeamentos e conseqüentemente com a perda das terras que foram consideradas como devolutas pela elite rural que, amparada pela Legislação e por sua forte força política usa dessa prerrogativa para usurpar o território da população indígena. Sem representante político e sem forças para combater e resistir à esse processo de espoliação, boa parte da população indígena fica à deriva da sociedade. 64 Os grupos então localizados nos aldeamentos se reuniram nas aldeias do Farrancho e do Rubim que englobava também a do Kran, resistindo até a virada do século. No início do século vinte, no ano de 1906, na região do Vale do Mucuri, com a construção da Estrada de Ferro Bahia-Minas entre Teófilo Ottoni e São Miguel do Jequitinhonha os Maxakali foram confrontados na localidade de Rubim e Kran, onde concentravam os refugiados dos remanescentes do Franco e mais outros grupos entre o rio Dois de Abril e Cachoeira dos Caboclos. A criação do SPI em Minas Gerais data de 1911, com sede em Governador Valadares. Nesse ano, Alberto Portela, então Inspetor do SPI, localizou aldeias nas margens do Umburanas, sob liderança do Capitão João a aldeia Ipkoxxexka - Orelhas Grandes. Essa denominação é uma referência aos Botocudos e possui um significado de conquista, pois nesse espaço ocorreu uma luta entre os dois grupos na qual os Maxakali sagraram-se vitoriosos. Conforme as características de fragmentação dos Maxakali, em 1913 o engenheiro Apolinário Frott encontrou grupos na Cachoeira do Caboclo, Dois de Abril e na aldeia Ipkoxxexka. O acontecimento mais marcante desse período, sofreram os Maxakali localizados nas margens do Umburanas, Ipkoxxexka, que foram pressionados para se deslocarem à localidade de Água Preta, sul da Bahia resistindo apenas a família de Mikael. Nessa localidade foram acometidos de malária, provocando uma redução demográfica assustadora, fazendo com que retornassem para aldeia de Mikael. Com a redução dos indíviduos do grupo 26, juntam-se a esse grupo os habitantes do Rubim e fundam então a aldeia Mikax kakax. Conjugado a esse fato, a não criação do Posto Indígena na área, abriu precedentes para os proprietários da região ocuparem parte das terras indígenas. Portanto, quando o grupo retorna às margens do Umburanas 26 Amorim registra 15 pessoas (AMORIM, 1967). 67 Embora a instalação do Posto os tenha beneficiado por terem a depopulação cessado e a taxa de natalidade apresentando alguns índices de elevação. A assistência oficial garantiu a sobrevivência do grupo, assegurando uma defesa de suas terras, sem, entretanto normalizar legalmente a situação. Para Rubinger, apesar da orientação em oferecer uma pequena assistência aos índios para desenvolver sua agricultura, essa não se efetivou devido a intervenção política-partidária que os deixou à própria sorte, forçando- os a buscar mecanismos de sobrevivência ajustando-se aos padrões tecno- econômicos dos posseiros que os cercam. Os conflitos a partir de então se acirram com o assassinato de Antônio Cascorado na aldeia Xatapá, líder da área do Pradinho, em 1955. No ano seguinte houve uma demarcação que não incluía a totalidade da área. Seguem-se momentos de tensão, que se intensificam com a convivência forçada com os Krenak no mesmo espaço. O SPI desrespeitou ambas as partes ao colocarem no mesmo espaço, grupos de culturas distintas e historicamente opostas, se levarmos em conta que os Krenak são remanescentes dos Botocudos. Em 1965 ocorreu uma demarcação da área do Pradinho considerada contraditória pois confirmava a faixa intermediária aos fazendeiros dividindo a área em duas glebas. No período da ditadura, o Governo Militar vai nomear o Capitão Pinheiro para chefiar a Ajudância da Fundação Nacional do Índio - FUNAI que naquele período abrangia os Estados de Minas Gerais e Bahia. Um dos aspectos de sua atuação enquanto chefe da FUNAI vai ser a fundação da Guarda Rural Indígena - GRIN. Para esse empreendimento contava com o respaldo e recebia apoio do Governo Militar, inclusive compunha os quadros do Serviço Nacional de Informação - SNI como informante. A criação da GRIN objetivava manter ordem interna nas aldeias, coibir os deslocamentos, impor trabalhos e denunciar infratores ao Destacamento da 68 Polícia Militar instalado na área Maxakali. Podemos afirmar que o Capitão Pinheiro personificava os interesses dos fazendeiros e dos políticos mineiros, pois conseguiu desarticular a resistência e oposição Maxakali ao esbulho de suas terras e em troca recebeu uma fazenda na faixa intermediária que divide as duas glebas, na entrada da gleba do Pradinho. O clima de intensa repressão e exploração Maxakali só se rompeu com a substituição de Pinheiro da direção da Ajudância Minas-Bahia (MONTEIRO, 1992; PARAÍSO, 1998) (Mapa 4). Desde então o grupo passou a ser confrontado na esfera local em conflito com os fazendeiros da área intermediária que tem total apoio da população regional, além de alguma força política institucionalizada. O Estado se fará presente de forma indireta, seja pela atuação da FUNAI ou pela ação legal no concernente à questão territorial (Desenho 01). Algumas tentativas de demarcação foram realizadas na segunda metade da década de setenta, porém não obtiveram êxito junto aos órgãos governamentais. Somente no segundo semestre de 1991 foi constituído um grupo de trabalho, coordenado pelo Sr. Lúcio Flávio Coelho, então administrador da 11ª Regional da FUNAI, responsável pelos de elaboração Laudo Pericial para a efetuação da reunificação das glebas de terras, por Paraíso e com a apresentação dos Relatórios levantados por Monteiro e Alves, sobre o processo de demarcação territorial e sobre a permanência dos gestos e da produção da cultura material dos Maxakali. Essa reunificação, realizada a partir do Laudo, unindo as duas glebas a partir da devolução da área invadida, foi aprovada em 1993 e homologada pelo Presidente da República em 1995 (PARAÍSO, 1992; MONTEIRO, 1992 e ALVES, 1992). O processo de desocupação das terras iniciou-se em 1998 com a liberação da verba para indenização das benfeitorias existentes nas fazendas da área intermediária. Desde então a questão ficou sob litígio finalizando somente em maio do presente ano (Mapa 5). Durante esse tempo, os Maxakali estiveram articulados para a 69 concretização de seus objetivos, a retomada da posse das terras. No entanto, logo após a saída dos posseiros da área, as famílias da gleba do Pradinho ocuparam toda a faixa, provocando um conflito entre os membros de Água Boa, em que as diferenças entre as glebas são ressaltadas. Rubinger considera que o contato sistemático e contínuo com as frentes de expansão recentes deu origem a novos processos sócio-econômicos na reserva indígena, levando-se em conta a invasão do território que é base do grupo. O processo de sedentarização se configura pela atividade agrícola e da ocupação das terras contíguas pela sociedade dominante. Para o autor, a introdução da economia mercantil fez com que o antigo sistema de controle social se dissociasse tornando-os dependentes dos agentes da sociedade nacional, individualizando-os, uma vez que os núcleos de cooperação foram fragmentados. No seu entender a gleba de Água Boa sofreu compulsão mais direta, mudança social mais intensa e alienação do trabalho no molde pré-capitalista, em contraposição à do Pradinho, embora tenha sofrido os mesmos confrontos, este foi menos intenso. Do ponto de vista tradicional, é o que melhor representa o universo Maxakali, no que diz respeito à cultura material e estruturas demográficas 28. O Pradinho mantém ponderável unidade étnica e Água Boa manifesta certo acaboclamento. No entanto, ainda mantém as características tribais, cuja organização social, em particular o sistema de parentesco, mantém intacto, assim como a língua e outras características organizatórias (RUBINGER, 1980:31). Um dos aspectos de transformação da economia do grupo foi o recrutamento da mão-de-obra indígena pela sociedade regional para trabalhar na agricultura. Esse fato ele denomina de compulsões advindas de fora, que em boa medida foram responsáveis pelas mudanças ocorridas no grupo. 28 Aqui o autor ressalta as diferenças de orientação econômica entre as duas glebas o que vai determinar a prática política adotada pelos órgão competentes. 72 CAPÍTULO III A DINÂMICA DA SOCIEDADE MAXAKALI Localização e Meio Ambiente O grupo Maxakali vive nas cabeceiras do rio Itanhém, na reserva que compreende os municípios de Bertópolis e Santa Helena, Vale do Mucuri, Nordeste do Estado de Minas Gerais, junto à divisa oriental do Estado da Bahia (lat. 16º, 50' long. 40º 40' ). Essa área fica localizada entre os vales do rio Rio Mucuri e do curso médio do rio Jequitinhonha (Mapas 01 e 02). A geologia da região do Vale do Mucuri é constituída predominantemente pelo complexo pré-cambriano, apresentando ilhas de formação da Série Minas, encravadas no complexo granítico-gnáissico. Ocorrem quartzitos e micaxistos, ambos apresentando camadas feldspatizadas contendo oligoclásio, microlina, biotita, anfibólio, quartzo, turmalina, zirconita e rutilo. O quartzito biotítico contém por vezes anfibólio e passa anfibolioxito. Os micaxistos apresentam leitos quartzíticos, micários e intercalam anfibolioxisto. Esses quartzitos estão em contato tectônico com calcários da Série Bambuí por meio de falha de reserva de grande rejeito (GUIMARÃES, 1964). A região tem características de vegetação da floresta mesófila, estacional subcaducifólia tropical fluvial. Apresenta a caducifólia, caules delgados e pela maior penetração de luz, abundância de cipós mais ou menos lenhosos (IBGE, 1976). A reserva florestal nativa é representada por peroba - Aspidosperma, braúna - Melanoxylon braunia, vinhático - Panthymenia, pau d’arco - Tabebuia, jequitibá - Cariniana, sucupira - Bowdichia e Diplotropis, jacarandá - Dalgerbia e Machaerium, copaíba - Copaifera multijuga, entre outros (RIZZINI, 1971). Atualmente a cobertura vegetal é predominantemente de vegetação 73 secundária e intensa interferência antrópica pelas atividades agrícolas e pecuária extensiva. O clima tropical quente e úmido está relacionado às caracaterísticas da vegetação, portanto apresenta duas estações, uma chuvosa mais longa entre seis a sete meses, com temperaturas médias em torno de 22º C e outra seca variando entre cinco a seis meses, com baixa térmica em torno dos 15º C (IBGE, 1976). O solo apresenta características onde o dominante é o latossolo vermelho-amarelo, textura argilosa e silicoargilosa, podzólio vermelho amarelo textura argilosa, bastante profundos, friáveis, porosos, colorações indiscriminadas da gama vermelha ou amarela de tonalidades variáveis assim com a textura geral (IBGE, 1976). A área é banhada pelas bacias hidrográficas do rio Itanhém e do ribeirão Umburanas, ambos afluentes do Mucuri 29. A reserva é cortada pelo ribeirão Umburanas, formando as cabeceiras do rio Itanhém. O relevo dissecado pelo rio Mucuri é acidentado, altitude entre trezentos e oitocentos metros sendo o extremo oeste mais montanhoso onde se situa o Mikax xap. (Desenho 16). A reserva se apresentava dividida em duas glebas descontínuas, Água Boa (Santa Helena) e Pradinho (Bertópolis), designação extraída dos nomes dos córregos que as atravessam. Em junho de 1999, com a regularização da situação a reserva totaliza 3.441 hectares. Distam da sede do Posto Indígena de Água Boa 12 Km de Santa Helena, 15 Km de Batinga (Distrito de Itanhém/BA), 30 Km de Bertópolis, 36 Km de Machacalis, 75 Km de Águas Formosas, 240 km de Teófilo Ottoni, 360 Km de Governador Valadares e 561 Km de Belo Horizonte (RUBINGER , 1980 e ALVARES, 1992) (Mapa 03 e Desenho 09). Os municípios da região são eminentemente rurais, cuja população é 29 A bacia do rio Mucuri abrange uma área de 13.691 quilômetros quadrados, compreendendo os rios Todos os Santos, Pampãn, Marambainha e outras bacias como o rio Itanhém IBGE, 1976). 74 constiuída por pequenos e médios proprietários de terras, que ocupam ao lado profissionais liberais e comerciantes o topo da estratificação social e na sua base estão a maioria da população, os trabalhadores rurais. A região é bem pobre, recebendo pouca atenção dos órgãos do Estado. Devido ao processo de expansão econômica para o exercício das atividades de pecuária, sendo que a criação de gado de corte ocorre em menor escala em relação ao gado leiteiro, que consiste na base econômica da região, foi provocado um desmatamento para a introdução do capim colonião. Isso resultou na escassez das fontes de provento do grupo e conseqüentemente de sua organização econômico-social. O que restou da mata nativa 30 é insuficiente para atender a demanda do grupo, pouco mais de dez por cento. Se partirmos do pressuposto de que os espaços refletem o comportamento social do grupo, cada sociedade terá seus próprios padrões de apropriação do espaço físico em que atuam. Desse modo focalizaremos alguns aspectos essenciais para o entendimento do contexto espacial da sociedade Maxakali na reprodução contínua de sua cultura e identidade. Num primeiro momento discorreremos sobre o comportamento territorial, que inclui a percepção do espaço, a relação entre a organização espacial (meio ambiente) e organização social (atuação do grupo na distribuição de habitações, roças, cemitérios) e o universo simbólico (atuação do mõnãy enquanto líder das aldeias). O comportamento territorial do grupo consiste na zona de referência do local onde foi estabelecido sua presença e delimitado o território sobre o qual ele criou mecanismos de segurança, defesa e comportamentos significativos. Esse espaço possui um valor social pois condiciona o modo de vida dos indivíduos do grupo (FISCHER, 1981). Concomitante a isso apresentamos o sistema de organização das 30 Intensamente explorada para extração de madeira, erva poaia e couro silvestre durante o período de expansão da região (ver RUBINGER, 1963/1980). 77 está cercada por propriedades rurais (Desenho 13 e Croqui 02). O ponto de maior confluência da área se situa quase no extremo sul, onde se tem a sede do Posto Indígena Engenheiro Mariano de Oliveira, fundado em 1947. A sede constitui em três construções de alvenaria alinhadas lado a lado num terreno com pequeno declive tendo mais acima a escola (Desenho 19). O terreno das áreas do extremo sul e oeste estão num plano mais baixo. As aldeias estão distribuídas em toda a área. Uma característica que diferencia a disposição das aldeias de Água Boa em relação a do Pradinho é distancia que as separam. Não foi possível encontrar um ponto mais alto para ter visibilidade de toda a área. As montanhas encobrem boa parte das aldeias, sendo que algumas se situam num plano mais baixo, muitas vezes escondidas pelo capim. A aldeia mais distante, tomando como referência a sede do posto Indígena é a do Bueno (Fotos 05, 06 e 07). Organização espacial O espaço social expressa as ações sociais do grupo no modo como organiza sua vida, envolvendo a compreensão da sociedade em seus aspectos culturais e simbólicos na relação com o meio ambiente (FISCHER, 1981:13). Quando tratamos de organização espacial, estamos falando das influências do meio sobre o comportamento humano, indicando as operações de representações das formas espaciais. São as maneiras pelas quais o grupo expressa suas ações sobre a organização de suas formas de vida. Portanto, podemos afirmar que as estruturas de funcionamento do grupo são definidas pelos papéis que cada indivíduo exerce em função dos fatores de educação, condicionamento e de normas sociais e econômicas que constituem os valores inscritos no espaço (Desenho 06). Na sociedade Maxakali a distribuição das habitações obedecem aos 78 períodos de concentração e dispersão a partir de um calendário ritual e econômico flexível e móvel, conforme as necessidades do grupo (ALVARES, 1992) (Fotos 08 e 09). Em períodos de concentração, que coincidem com o período de maior atividade ritual, as habitações se encontram praticamente uma ao lado da outra de modo a formar uma semicírculo, ou uma ferradura. Em períodos de dispersão, em que há uma intensificação da agricultura as habitações são construídas distantes uma das outras, sem porém deixar de ter uma morfologia semicircular. A distribuição espacial das habitações é geométrica com distâncias apresentando espaçamento regular (Foto 10 e Croqui 03). Os espaços de atuação das aldeias é dividido em duas partes: o doméstico e o ritual. O espaço doméstico é externo tendo sempre um pátio em que são instaladas as fogueiras e realizada as refeições, bem como a maior parte das atividades 33. A abertura das habitações nunca se encontra direcionada ao espaço do pátio interno, pois esse é o espaço do ritual, encerrado pelo Kuxex (Fotos 11 e 12). Segundo Fischer, a configuração espacial materializa a estrutura social e religiosa da sociedade, pois a emergência de práticas e significações, modo como o indivíduo é formado e transformado na realidade social, estão ligados à produção do espaço (FISCHER, 1981). Transportando para o caso Maxakali, a freqüência do Kuxex - casa dos cantos é determinante para controlar a participação das famílias na vida da aldeia, pois constituem o ponto de atração e fator de aglutinação. O líder da família extensa ou fundador da aldeia detém controle sobre uma área maior (Fotos 13 e 14). As habitações possuem uma área média de seis a nove metros quadrados constituídas de um único cômodo, ocupada por duas ou três 33 O espaço que estabelece uma ligação de uma casa à outra geralmente está associada aos laços de parentesco. 79 famílias nucleares. O formato é retangular, em planta baixa com cobertura em duas águas 34, com cumeeiras cobertas e fechadas nos lados com capim, delimitado o espaço interno, com a intenção de proteger dos efeitos climáticos. A construção das habitações tem a madeira como a principal matéria- prima, utilizada nos esteios e travessões, ou seja, a estrutura sobre a qual se fixam a cobertura na maioria das vezes de folhas e capim, materiais disponíveis no entorno. Algumas são cobertas de telhas e tem as paredes de barro batido 35 . A função dessas é para dormir e desenvolver atividades cotidianas (Foto 15). (...) a casa pode ser vista simplesmente como uma unidade, com funções específicas dentro de um contexto espacial habitado mais amplo, como a aldeia(...) (VIDAL & LOPES DA SILVA, 1995:383). Localizam-se próximas às outras com a porta da entrada de frente para a outra. No período em que realizamos as atividades de pesquisa de campo, observamos a porta de entrada das habitações não ficam em direção ao pátio central. Esse aspecto é elementar para entendermos a noção espacial de doméstico e ritual. O espaço doméstico é o espaço externo ao semi-círculo, quando muito entre uma habitação e outra. O espaço interno, onde fica localizado o pátio central é o espaço ritual (Foto 16). Essa divisão compreende também as atuações dos indivíduos do grupo, especificamente nas atividades econômicas e sociais femininas e masculinas. O espaço doméstico é área de atuação das mulheres e o espaço ritual é área de atuação dos homens (Fotos 20 e 21). A morfologia das aldeias é em U, as casas são distribuídas em torno do pátio central. O número de aldeias do Pradinho são cinco, denominadas de 34 Segundo a classificação de COSTA & MALHANO, 1986. 35 Geralmente esse material foi adquirido no processo de reforma de alguma construção do Posto Indígena ou de sedes das fazendas mais próximas. Em alguns casos foi um aproveitamento da estrutura de antigas construções da FUNAI. Um bom exemplo é a casa do “Zé Pirão”, morador da gleba de Água 82 (Foto 22). Os espaços de lazer ficam geralmente nas circunscrições das aldeias a uma distância relativa das habitações. Fazem parte desse espaço os córregos e as represas que abastecem a reserva. Na área do Pradinho, o pátio da sede do Posto Indígena também é utilizado para atividades de lazer. A presença de postes de eletricidade que abastecem a sede do Posto, o ambulatório e alojamento vão ser determinantes na realização das festas e diversões do grupo, movidos ao som do forró, alimentado pelos aparelhos de rádio e gravador 36, que constituem bens materiais muito cobiçado pelos membros do grupo. Essa apropriação e incorporação da música e dos aparelhos, acreditamos que se deve à sensibilidade musical do grupo. A música é parte integrante da cultura Maxakali. Entre as áreas de habitação e atividades ficam as construções da FUNAI, a escola e em uma área mais afastada, localizada em um terreno mais plano e baixo está o cemitério. O acesso ao local não nos foi permitido, na medida em que esse espaço é o local de trânsito dos espíritos dos mortos que não fez o ciclo do Yãmĩy xop (Desenho 26 e Croqui 1). A relação do espaço com a reprodução contínua da vida constitui num equilíbrio da vida em comunidade, pois refletem o modo pelo qual os Maxakali exercem suas ações no território. A visão do mundo está articulada à estrutura da aldeia, forma e funcionalidade de ocupação e da representação de seus significados, especificamente na noção de doméstico e ritual , público e privado, feminino e masculino. Nascimento quando se refere à organização espacial historicamente constituída, diz que o território de mobilidade dos Maxakali obedeciam a limites circunscritos de outros grupos caçadores. A mobilidade se configurava então 36 A ligação dos aparelhos são feitas através de fios eléticos que são puxados dos postes. Esse tipo de ligação é muito perigosa, pois os fios ficam parcialmente desencapados e não oferecem segurança 83 numa condição indispensável para a sobrevivência do grupo (NASCIMENTO, 1984). Atividades econômicas As atividades econômicas do grupo estão condicionadas pelas características do meio ambiente. Em função das várias frentes de exploração provocadas pelo estímulo à expansão e desenvolvimento por parte da sociedade envolvente 37 , ocorreu uma transformação do meio e o grupo teve de recorrer a estratégias para sua sobrevivência. Essa mudança ambiental resultou na descaracterização das atividades tradicionais do grupo, a caça, a pesca e a coleta. Amorim afirma que no caso Maxakali, ocorreu reações diversas às frentes de expansão, apresentando rigidez e flexibilidade na sua estrutura, ou seja, de resistência e oposição às imposições culturais e apropriação de aspectos próprios da sociedade dominante, como alternativa para assegurar a sobrevivência do grupo (AMORIM, 1980). Essa transformação remonta o início do século, período de ocupação das terras Maxakali, que foram se acentuando com o tempo. Em 1939, Curt Nimuendajú em passagem pela região registrou que o povo Maxakali, vivia sobretudo da lavoura, em função da escassez da caça provocada pela intensa extração de couro em grande escala de exploração (NIMUENDAJU apud EDELWEISS, 1971). Na década de sessenta, Amorim faz a mesma observação no que se refere as mudanças ambientais determinando as práticas econômicas do grupo. nenhuma, pois qualquer menino ou rapaz faz essa ligação e é um local onde circula bastante criança. 37 Frentes extrativas de ipecacunha e couro silvestre, frentes agrícolas e frentes pecuárias (RUBINGER, 1980). Amorim afirma que no caso Maxakali, ocorreu reações diversas às frentes de expansão, apresentando rigidez e flexibilidade na sua estrutura de funcionamento. 84 Com a perda das terras e a conseqüente transformação das matas em pastagens, a vida dos índios sofreu profundo abalo. Antes dela, possuíam agricultura elementar, caçavam, pescavam, colhiam frutas e raízes silvestres (AMORIM, 1980:102). A agricultura torna-se então a atividade econômica principal com plantio três vezes ao ano. O primeiro em fevereiro e março, cujo preparo do terreno é realizado através da técnica de coivara, e coincide com o período que antecede as chuvas de neblina. São plantados o feijão, o milho, a mandioca, a batata- doce, a abóbora, a banana, o mamão, entre outros. No segundo semestre sucedem os outros dois plantios nos meses de julho e agosto em que o preparo do terreno acontece no tempo da seca e ajusta o início do calendário ritual em setembro e outubro período antes das chuvas de trovoadas. Nessa época são cultivados o feijão, o milho, a mandioca, a batata-doce, cana, melancia, abóbora e, em menor proporção, o arroz..(NASCIMENTO, 1984 e ALVARES, 1992). Esse calendário está sintonizado com o calendário ritual e com o calendário social. A marcação do tempo coincide com os equinócios do sol, março e setembro. Esses períodos são responsáveis portanto pelo comportamento e mobilização do grupo que se intercalam em dispersão e concentração. Alvares afirma que as marcações espaciais são socialmente estabelecidas e todo o ritmo de vida social e os movimentos alternam-se em uma série de oposições, guerra e conflitos38/roça/excursões/dia (dispersão) e ritual/ aldeia/reserva/ noite (concentração) (ALVARES, 1992). O período de concentração é marcado pela seca, início das atividades de queimada para proceder-se o plantio. A vida social fica restrita à aldeia e há uma intensificação da vida ritual que vão ser determinantes na distribuição dos 38 A autora se refere a guerra aos problemas externos que o grupo enfrenta, como por exemplo a luta por 87 A distribuição do número de aposentados são em número de sete no Pradinho e treze em Ägua Boa. A proporção é de um aposentado para cada aldeia ou família extensa, conforme relato do funcionário da FUNAI, José Francisco Pereira para o ano de 1999. Com a instituição da escola bilíngüe pela Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais, a partir do ano de 1996, foram selecionados alguns indivíduos para participar dos cursos de formação de professores indígenas. Por essa atividade, que representa um fator de distinção na ordem da estrutura do grupo, esses professores recebem salários e são cadastrados como funcionários do Estado. O status de professor no interior do grupo constitui num elemento de distinção das atividades desenvolvidas pelos demais. As funções de professor não permitem que o indivíduo exerça atividades de agricultura e as formas de provento são obtidas pela compra que o dinheiro proporciona. Em algumas situações de conflitos, essas diferenças são suscitadas e apresentam características desestabilizadoras no funcionamento do grupo. Embora os Maxakali tenham sido compelidos ao longo dos anos a alterar suas velhas formas de produção, acarretando modificações e distinções na estrutura de funcionamento de sua sociedade, por indução de fatores econômicos da sociedade envolvente, não implicou numa perda de sua identidade. A resistência às mudanças se expressa na manutenção de suas características de atividades econômicas voltadas para a caça, pesca e coleta presente nos rituais, mitos e representações do imaginário. No cotidiano do grupo há sempre excursões de caçadas, pescas e coletas. A caça pode levar vários dias e mobilizam os homens de uma aldeia ou mais. Já a pesca envolvem as mulheres que saem pela manhã com suas mãnxukax tu hut, redes de pesca e vão para os córregos da região, fora dos limites da reserva, chegando a caminhar aproximadamente treze quilômetros 88 (Desenhos 02, 04 e 05). A coleta é realizada com freqüência, principalmente a coleta de matéria- prima como a madeira, lenha, entrecasca de embaúba para a fabricação do fio, sementes para a fabricação de colares, ervas de efeitos medicinais e frutos. No contexto das estratégias elaboradas pelo grupo para manutenção de suas práticas culturais, Nascimento assevera que os alimentos oferecidos nos rituais foram substituídos em função do desmatamento que acarretou o fim da caça, pesca e coleta (NASCIMENTO, 1980). Organização social Como já mencionamos anteriormente, a organização social do grupo está vinculada à percepção espacial. Na estrutura de funcionamento do grupo Maxakali, as unidades sociais se organizam a partir do parentesco determinando as atividades coletivas e não coordenadas, àquelas nas quais os indivíduos de uma seção residencial exercem conforme as necessidades de suas famílias, e as atividades consensuais, orquestrada pelo líder das aldeias em conjunto com todo o grupo. As unidades sociais representam o eixo sobre o qual o grupo assenta sua integridade cultural. A composição desse todo cultural perpassa a noção de identidade étnica, definida pelos Maxakali como tikmu'un, a residência e sua localização espacial no qual os membros possuem poder independente e portanto suas atividades, apesar de coletivas, são fragmentadas; a aldeia onde se distribuem as habitações e as relações são de reciprocidade articulando as atividades que são coordenadas; e o bando que são os grupos domésticos aglutinados em torno do líder espiritual e cujas atividades são consensuais, definindo a estrutura social igualitária (POPOVICH, 1992 e ALVARES, 1992). A formação do grupo e a escolha residencial possuem estreitas relações com a questão cosmológica, ou seja, a concepção do mundo, refletindo na dinâmica social concretizada na morfologia social (Desenho 20). 89 Essa relação indica a sociabilidade do grupo, marcada pelas distinções entre espaço e tempo e aos papéis sociais exercidos pelos indivíduos. A atuação desses indivíduos consiste no estabelecimento das alianças, que são flexíveis e responsáveis pela relação entre famílias determinando a mobilidade social, a composição das aldeias assentada no jogo das alianças, que por sua flexibilidade permite uma redefinição temporária indicando sua transitoriedade, assinalada na maioria das vezes pelo conflito que prescrevem as instâncias políticas (ALVARES, 1992). Os conflitos de qualquer ordem, internos ou externos, podem acarretar uma movimentação entre as famílias, aproximando ou distanciando conforme o grau de relacionamento dos grupos. Da mesma forma as relações de reciprocidade e a sociabilidade dependem das circunstâncias dos conflitos (Desenho 25). O termo de referência é o termo de tratamento pelos quais são chamados. Os papéis do parentesco são percebidos entre parentes de várias categorias bem como pela reação dos outros ao comportamento. O nome dado tem uma relação com a identificação espiritual mais que social. Os filhos recebem nome após o primeiro ano de vida. Coexistem com essa identificação os nomes atribuídos para efeitos legais junto aos órgãos e instituições como a FUNAI e para a as relações com a sociedade envolvente. A escolha desse nome envolve toda a família e geralmente são indicados nomes de pessoas com as quais desenvolveram alguma relação de confiança. A confiança exerce importante valor para a sociedade Maxakali. Popovich e Alvares, apresentam dois polos do sistema de parentesco. O termo xape significa parentes e pugnõg à categoria de não parentes. O xape encerra três categorias definidas pelo grau de proximidade em relação ao ego, à identidade, à consagüinidade e diferença e à afinidade. Assim, na linha direta, estão a categoria dos xape xe’x, parente verdadeiro que são os pais, avós, siblings, filhos e netos e há ocorrência de partilha de bens. Num outro estágio estão os xape max, parente bom, siblings
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