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Arquitetura Moderna e Preexistência Edificada, Notas de estudo de Urbanismo

Um pouco de história...

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 06/12/2010

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wiverson-de-oliveira-4 🇧🇷

4.8

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Baixe Arquitetura Moderna e Preexistência Edificada e outras Notas de estudo em PDF para Urbanismo, somente na Docsity! Arquitetura Moderna e Preexistência Edificada: intervenções sobre o patrimônio arquitetônico de Salvador a partir dos anos 1950 Nivaldo Vieira de Andrade Junior Mestrando PPGAU/FAUFBA nivandrade@superig.com.br Este trabalho pretende analisar algumas das principais intervenções de arquitetura moderna realizadas sobre o patrimônio edificado em Salvador a partir do início da década de 1950, visando identificar quais as possíveis abordagens projetuais contemporâneas sobre a preexistência arquitetônica no Brasil. Desta forma, analisamos as mais significativas intervenções projetuais em edifícios existentes, bem como as novas construções em terrenos vazios do Centro Histórico de Salvador, destacando-se aquelas realizadas por Lina Bo Bardi (1914-92), Diógenes Rebouças (1914-94), João Filgueiras Lima “Lelé” (n. 1932) e Paulo Ormindo de Azevedo (n. 1937). Palavras-chave: Arquitetura Moderna, Patrimônio Arquitetônico, Centro Histórico de Salvador This paper aims to analyze some of the most important projects of modern architecture designed for listed buildings or sites in Salvador, Bahia, since the early 1950’s, trying to understand which are the possible contemporary design approaches on preexisting architecture in Brazil. Thus, we have identified the most significant recycling projects of listed buildings and new buildings designed for unoccupied sites inside Salvador’s Historic Center, particularly those designed by Lina Bo Bardi (1914-92), Diógenes Rebouças (1914-94), João Filgueiras Lima “Lelé” (born 1932) and Paulo Ormindo de Azevedo (born 1937). Arquitetura Moderna e Preexistência Edificada: intervenções sobre o patrimônio arquitetônico de Salvador a partir dos anos 1950 Este trabalho pretende analisar algumas das principais intervenções de arquitetura moderna realizadas sobre o patrimônio edificado em Salvador a partir do início da década de 1950, visando identificar quais as possíveis abordagens projetuais contemporâneas sobre a preexistência arquitetônica no Brasil. Desta forma, analisamos as mais significativas intervenções projetuais em edifícios existentes, bem como as novas construções em terrenos vazios do Centro Histórico de Salvador, destacando-se aquelas realizadas por Lina Bo Bardi, Diógenes Rebouças, João Filgueiras Lima “Lelé” e Paulo Ormindo de Azevedo. Lina Bo Bardi (1914-92) e Diógenes Rebouças (1914-94) fazem parte da “primeira geração” do Movimento Moderno no Brasil, responsável, entre as décadas de 1930 e 1940, pela introdução da arquitetura moderna nas diversas cidades brasileiras. Foi através dos projetos de Rino Levi (1901-65), Oswaldo Bratke (1907-97), Álvaro Vital Brazil (1909-97) e João Batista Vilanova Artigas (1915-85), no rastro do pioneiro Gregori Warchavchik (1896-1972), que a arquitetura moderna se consolidou em São Paulo. No Rio de Janeiro, por sua vez, a realização do Ministério da Educação e Saúde, entre 1936 e 1942, com consultoria de Le Corbusier (1887- 1965), representou o principal passo na afirmação da arquitetura moderna em nível nacional. A equipe formada por Lúcio Costa (coordenador; 1902-98), Jorge Machado Moreira (1904-92), Carlos Leão (1906-83), Oscar Niemeyer (n. 1907), Affonso Eduardo Reidy (1909-64) e Ernani Vasconcellos (1909-88) se configurou, nas décadas seguintes, como alguns dos principais nomes da arquitetura brasileira. Destacavam-se ainda no cenário da arquitetura carioca os irmãos Marcelo (1908-64) e Milton Roberto (1914-53) e Alcides da Rocha Miranda (1909-2001). Em Recife, por sua vez, o principal nome desta geração foi Luís Nunes (1908-37). Os outros dois arquitetos cujas obras serão analisadas pertencem à “segunda geração” do Movimento Moderno. Formada nas faculdades de arquitetura a partir dos anos 1950, quando a arquitetura moderna já se encontrava consolidada, esta geração corresponde a grosso modo aos profissionais nascidos entre meados da década de 1920 e o final da década seguinte. É a geração de Assis Reis (n. 1926), Paulo Mendes da Rocha (n. 1928), Severiano Porto (n. 1930), Joaquim Guedes (n. 1932) e Ruy Ohtake (n. 1938), dentre muitos outros. Desta geração, abordaremos neste trabalho as intervenções sobre o patrimônio soteropolitano realizadas pelo Figura 1: Solar Berquó, fachada dos fundos Figura 2: Solar Berquó, escada interna que conecta os dois pavimentos principais Apenas no trecho onde localiza os sanitários, a copa e uma nova escada, Diógenes se utiliza de materiais e linguagem marcadamente modernos: a escada com degraus independentes em placas pré-moldadas de concreto aparente e a laje volterrana deixada com os tijolos à mostra, sem revestimento. Contudo, a concepção geral da intervenção coordenada por Diógenes, um dos principais responsáveis pela consolidação da arquitetura moderna na Bahia, consistiu em resgatar vestígios de um passado que pode jamais ter existido, uma atuação anacrônica, violletleductiana, que realiza falsos históricos.3 A trajetória de Lina Bo foi bastante distinta da de Diógenes. Nascida em Roma em 1914, Lina diplomou-se em arquitetura nesta mesma cidade em 1940. Segundo a própria Lina, a Faculdade de Arquitetura de Roma – naqueles tempos liderada por Gustavo Giovannoni e Marcello Piacentini – era então muito mais voltada para a história da arquitetura do que para a composição arquitetônica e ela, buscando encontrar um ambiente mais propício à realização de arquitetura moderna, transferiu-se, logo após a conclusão do curso, para Milão, onde trabalhou com Giò Ponti e dirigiu a revista Domus. Em 1946, casou-se com o já então renomado crítico de arte Pietro Maria Bardi, com quem transferiu-se imediatamente para o Brasil, vivendo 3 As informações a respeito das transformações realizadas por Diógenes no Solar Berquó nos anos 1980 foram obtidas através da análise dos documentos cartográficos e iconográficos originais existentes no acervo da 7ª Superintendência Regional do IPHAN, bem como através de entrevistas realizadas com o técnico João Legal Leal, então fotógrafo e desenhista do IPHAN, que acompanhou e documentou a intervenção. primeiramente no Rio de Janeiro e, em seguida, em São Paulo. É nesta cidade que o casal Bardi construiu a sua residência (1949-51), o primeiro projeto de Lina a obter certa repercussão no Brasil, e que foi seguido pelo Museu de Arte de São Paulo (1957-69), que consagrou definitivamente a arquiteta de origem italiana. A vinda de Lina Bardi a Salvador ocorreu apenas em 1958, inicialmente para ensinar Teoria da Arquitetura na Universidade Federal da Bahia, curiosamente a convite de Diógenes Rebouças. No ano seguinte, Lina é convidada pelo Governo do Estado para constituir e dirigir o Museu de Arte Moderna – inaugurado em 1960, e temporariamente instalado no foyer do Teatro Castro Alves. Em 1962, Lina iniciou o projeto de restauração do Conjunto do Unhão, antigo engenho de açúcar localizado às margens da Bahia de Todos os Santos, e sua adaptação em Museu de Arte Popular, que foi finalmente inaugurado em novembro de 1963. O Conjunto do Unhão é constituído por diversas edificações, incluindo o solar (séc. XVII), a capela, a senzala e alguns galpões e, embora não se estivesse dentro dos limites do Conjunto Arquitetônico, Urbanístico e Paisagístico do Centro Histórico de Salvador declarado patrimônio nacional em 1959, se encontrava sob proteção do IPHAN desde 1943, quando fora individualmente tombado. O projeto da Avenida do Contorno, ligando os bairros do Comércio e Barra, indicava em seu traçado original de 1959 a construção de uma das pistas passando entre o solar e a capela do Conjunto do Unhão, enquanto a outra pista destruía o aqueduto e a fonte que compõem o conjunto. As reações contrárias aparecidas na imprensa levaram Diógenes Rebouças a sugerir um novo traçado, poupando assim o Conjunto do Unhão da total descaracterização. Na intervenção que realizou no Conjunto do Unhão, Lina se utilizou da teoria do restauro crítico, desenvolvida na Itália a partir do final da Segunda Guerra Mundial e pouco difundido no Brasil do início dos anos 1960. O restauro crítico se baseia na idéia de que é impossível intervir em um monumento arquitetônico sem realizar escolhas críticas precisas, identificando e recuperando aqueles elementos ou características que lhe conferem o valor de obra de arte, ainda que em alguns casos estas escolhas críticas ocorram em detrimento do seu valor histórico. O valor histórico da obra de arte consiste no seu caráter expressivo e a sua compreensão é possível através de um processo crítico e não através de análises das condicionantes práticas que determinaram a sua criação ou dos fatos que no tempo a modificaram. [...] O restaurador, frente à obra de arte, deve atuar recuperando a sua imagem unitária e expressiva mesmo que implique no sacrifício de acréscimos de notável valor formal e documental. Igualmente, se a forma encontra-se interrompida por acréscimos, por lacunas, é possível completar a unidade da obra com a inserção de novo elementos no lugar daqueles faltantes. (BELLINI, 1979: 52) Desta forma, a intervenção de Lina na Quinta do Unhão, em lugar de pretender recuperar a configuração e as características originais do conjunto, restaurando a aparência do século XVII, incorpora também as características do conjunto em toda a sua complexidade histórica, incluindo as demais funções industriais e agrícolas que desempenhou ao longo dos séculos. Assim, os equipamentos industriais existentes no conjunto – monta-cargas, guindaste, trilhos e os galpões construídos no século XIX – são preservados e restaurados. O Conjunto do Unhão é importante por representar um dos primeiros exemplos (se não o 1º) de Arqueologia Industrial, isto é: uma restauração não somente limitada à recuperação até o século XVIII, mas uma recuperação dedicada também à documentação do ‘trabalho’ e de um território, neste caso, uma ‘fábrica’ do começo do século XIX. O conjunto do Unhão é uma antecipação dos princípios de restauração fixados posteriormente em campo internacional pela Carta de Veneza (1964-65).4 Além disso, Lina não se intimida em modificar deliberadamente determinadas características “consolidadas” do conjunto do Unhão, revestindo as paredes externas de algumas edificações com um reboco chapiscado e utilizando seixos rolados e pedras no piso do pátio que articula os principais edifícios do conjunto. Segundo Ana Carolina Bierrenbach, a principal preocupação de Lina foi preservar as características fundamentais das edificações que compõem o conjunto: a amplitude dos espaços e o seu aspecto rústico (BIERRENBACH, 2001: 73). É seguindo estes princípios que Lina simplifica o desenho das esquadrias e as pinta de vermelho, desenha divisórias treliçadas para subdividir os grandes espaços do interior dos edifícios e, principalmente, desenha uma monumental escada no interior da casa grande. A casa grande é, juntamente com a Igreja, o edifício mais nobre do conjunto e possui três pavimentos, sendo o térreo e o subsolo construídos no século XVII. Lina preserva na sua intervenção a volumetria da casa, inclusive o pavimento construído mais recentemente. A principal alteração realizada por Lina na configuração externa da casa grande é a janela que ela 4 Trecho extraído de “Pró-Memória para uma Ação na Bahia – Recuperação e Revitalização do Conjunto do Unhão”, texto não publicado. Uma cópia datilografada deste texto encontra-se dentro da pasta do Solar do Unhão no Acervo do Núcleo DOCOMOMO Bahia. Esta cópia não está assinada nem datada, porém possui impressa em todas as páginas a marca “arquiteto lina bo bardi” no canto superior esquerdo. Figura 5: Vista geral da Ladeira da Misericórdia Figura 6: Ruína dos Três Arcos após intervenção de Lina Bo Bardi Em um projeto que remete às intervenções realizadas por Carlo Scarpa no norte da Itália a partir dos anos 1950, Lina mescla novos materiais, técnicas construtivas e formas arquitetônicas à preexistência, criando entre novo e antigo relações de contraste e, ao mesmo tempo, de refinado diálogo entre elementos rústicos e de mesma densidade formal. Em março de 1987, Lina escreveu a respeito das suas intenções no Projeto da Ladeira da Misericórdia: Em geral, a restauração é a restituição a um estado primitivo de tempo, de lugar, de estilo. Depois da Carta de Veneza, de 1965, as coisas melhoraram, mas aquele marco de ranço numa obra restaurada sempre continua. É muito difícil não perceber ou sentir isso entrando num restauro. O que estamos procurando na recuperação do centro histórico da Bahia é justamente um marco moderno, respeitando rigorosamente os princípios da restauração histórica tradicional. Para isso, pensamos num sistema de recuperação que deixa perfeitamente intato o aspecto não somente exterior, mas também o espírito, a alma interna de cada edifício. Esse sistema de pré-moldados, perfeitamente distinto da parte histórica, é denunciado pela sua estrutura e pelo tempo atual. Não mexemos em nada, mas mexemos em tudo (BARDI, Lina Bo apud REVISTA PROJETO, 1992: 48). Como afirmara Lina Bardi em outra ocasião, “é preciso se libertar das amarras não jogando fora o passado e a história da arquitetura. Libertar-se conjugando o passado como um tempo de verbo: o presente histórico. O passado visto como presente histórico é uma coisa viva [...]. Frente ao presente histórico, nossa tarefa é forjar um presente verdadeiro.” (ibid.: 55). Paulo Ormindo de Azevedo e Lelé As trajetórias de Lelé e Paulo Ormindo de Azevedo tomaram rumos distintos já nos primeiros anos de atuação profissional. Paulo Ormindo, tendo estudado arquitetura na Universidade Federal da Bahia entre 1955 e 1959, trabalhou no IPHAN no início da década de 1960 e, entre 1966 e 1970, se especializou em restauro arquitetônico na Itália. É professor de restauro na Faculdade de Arquitetura da UFBA e foi coordenador, a partir do início dos anos 1970, do Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia, exaustivo trabalho de identificação do patrimônio arquitetônico baiano que logo se tornou referência nacional e internacional. Diferentemente de Lelé, as obras construídas de Paulo Ormindo de Azevedo não são abundantes, porém a relação com a preexistência edificada é uma constante na sua obra arquitetônica e projetos como a restauração do Mercado Modelo (1984-85) em Salvador e o Centro Cultural Dannemann (1987-89) em São Félix, no Recôncavo Baiano, foram publicados no Brasil e no exterior. Entretanto, a intervenção que talvez melhor represente a relação que este arquiteto desenvolve com a preexistência é o Edifício Ipê (1965). Projetado quando Paulo Ormindo trabalhava como arquiteto colaborador do IPHAN, o edifício se situa na rua Monte Alverne, no Centro Histórico de Salvador, em um lote de esquina cercado por sobrados construídos nos séculos XVII, XVIII e XIX. O edifício desenhado por Paulo Ormindo traz para o Brasil o debate surgido na Itália a partir da década de 1950 sobre a inserção em centros históricos de uma arquitetura ao mesmo tempo moderna e contextualizada, cujo maior defensor foi Ernesto N. Rogers: Estas arquiteturas contemporâneas interpretam as preexistências ambientais criticamente; mesmo quando reconhecem mais ou menos certos valores figurativos, jamais trazem a sua linguagem específica, imitando-a. É o modo mais fecundo de continuar a tradição na modernidade (ROGERS, 1997: 274). O Edifício Ipê se insere harmoniosamente no tecido urbano do Centro Histórico de Salvador, repetindo a altura e a volumetria dos sobrados vizinhos e recriando o ritmo das suas fachadas, através da estrutura em concreto aparente. Repete ainda das edificações do entorno a cobertura em telhas cerâmicas e os seus beirais e cachorros e reinterpreta os balcões das edificações tradicionais da zona por meio de largos painéis horizontais de madeira treliçada, à altura do primeiro pavimento. Por outro lado, o edifício afirma a sua modernidade através da já citada estrutura saliente em concreto deixado à vista, dos fechamentos dos intercolúnios com painéis modulares de madeira e das aberturas quadradas e centralizadas dos dois pavimentos superiores. Ao projetar este edifício, Paulo Ormindo pretendeu, na verdade, restaurar a ambiência daquele trecho do Centro Histórico. Falando de “reintegração paisagística”, o arquiteto propõe uma arquitetura moderna que se integre às “preexistências ambientais”, tal como defendia Rogers: A restauração não deve se limitar aos edifícios em separado. Deve recriar a atmosfera dos espaços externos como ladeiras, vielas, largos e encostas, através da restauração das relações de cores das calçadas e pisos, espécies vegetais, etc. A reintegração paisagística do conjunto com a cidade que cresceu em torno deve ser estudada a partir dos locais públicos de observação. [...] Especial atenção deve ser dada à abordagem do conjunto. A seqüência de emoções que culminam com o encontro do conjunto constitui a iniciação do observador à compreensão do monumento. Nos casos de demolições anteriores ao tombamento ou de acidentes que provocaram a ruína dos prédios ao ponto de impedirem a recuperação, a construção de edifícios com feição antiga é condenável. Não só pela inautenticidade, como pela impossibilidade de reproduzir com fidelidade, inclusive em sua rusticidade, edifícios do passado, quando já não existe o artesanato construtivo que os produziu.[...] Nestas situações o que se deseja são soluções válidas como expressão arquitetônica atual, embora orientadas na manutenção das linhas gerais de composição da quadra e na inalterância das relações de volume, textura e cor (AZEVEDO, 1965: 17). Figura 7: Edifício Ipê visto desde a cobertura do Liceu de Artes e Ofícios Figura 8: Edifício Ipê visto desde a Rua Monte Alverne Não obstante ser da mesma geração de Paulo Ormindo, Lelé demonstraria possuir um outro enfoque do problema de construir em um conjunto arquitetônico tombado. Formado em arquitetura pela Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro em 1955, partiu em seguida para Brasília, de cuja construção participou junto a Oscar Neiemeyer e, a partir daí, definiu o rumo de sua arquitetura, em que a linguagem e as formas estão sempre intrinsecamente ligadas aos materiais e tecnologias construtivas utilizados. A partir dos anos 1970, Lelé passou Centro Histórico uma paleta de cores vibrantes, estranha à arquitetura do sítio. Ao mesmo tempo, a volumetria geral do edifício e, principalmente, o “canhão” amarelo do ar condicionado modificam o eixo principal da Praça, reforçando a ligação da nova Prefeitura com o Palácio Rio Branco (eixo nordeste-sudoeste). Figura 9: Prefeitura Municipal vista desde a cúpula do Palácio Rio Branco Figura 10: Prefeitura Municipal e Palácio Rio Branco em segundo plano Apesar da autorização temporária, a nova Prefeitura tem se mantido neste mesmo local por quase vinte anos até que, no final de 2004, o Ministério Público emitiu sentença condenando o Município de Salvador a remover ou demolir, no prazo de seis meses, o edifício construído em 1986. O Juiz Federal Substituto que assinou a sentença a justifica alegando que o edifício “feriria o conjunto arquitetônico, paisagístico e urbanístico da Cidade [...], contrastando com a arquitetura original do local, onde se situa, além da Igreja e Santa Casa de Misericórdia, o Palácio Rio Branco e o Elevador Lacerda” (BRASIL, 2004: 1). A sentença, contudo, não apresenta soluções e sim amplia os problemas atualmente existentes. Por um lado, obriga a Prefeitura a desmontar o edifício existente, porém não estabelece ou sequer insinua a solução para o problema que representa um vazio naquela situação. Se o edifício de Lelé não é capaz de completar um dos lados da praça, limitando-a e conformando-a, a sua retirada certamente só agravaria o problema. Além disso, a exigência da demolição ou transferência deste edifício deveria estar vinculada à imediata realização de um concurso público de arquitetura para definição do projeto que o substituiria. Por outro lado, a construção do edifício de Lelé teve o grande mérito de trazer de volta à Praça o poder executivo municipal. Assim, a sua demolição ajudaria a acelerar o processo de esvaziamento do Centro Histórico das suas atividades de administração pública, iniciado nos anos 1970 com a construção do CAB. É a localização ali do edifício desenhado por Lelé, juntamente com o funcionamento da Câmara de Vereadores no Paço Municipal vizinho, que resgata à Praça Municipal o papel simbólico de praça governamental, valor que possuía desde os primórdios da ocupação do sítio, no século XVI. A inconveniência da sentença é agravada por se basear em parecer emitido por peritos de duvidosa capacidade técnica9, o que pode ser percebido através do non sense do trecho abaixo: A escolha do material utilizado, típica de encaixe, denota tratar-se de obra de caráter de urgência, sem tempo hábil para um estudo projectual mais profundo, pois, repita-se, é uma obra que foi realizada com material autoportante. [...] A construção trata-se, na verdade, de um pórtico que foi implantado em caráter provisório, daí a construção do mesmo não se enquadrar em nenhum estilo arquitetônico definido. (BRASIL, 2004: 8) Que relação pode existir entre o fato da obra ter sido construída em caráter de urgência e com “material autoportante” [sic] e a qualidade do projeto ou a oportunidade da sua inserção em um contexto histórico? Ou entre o fato de se tratar de um “pórtico implantado em caráter provisório” e enquadrar-se ou não em qualquer estilo arquitetônico? Contudo, mais do que nos determos nas contradições e inconsistências do parecer dos peritos e da sentença judicial, nos interessa analisar as repercussões da decisão do juiz. Imediatamente após a sua divulgação, arquitetos locais começaram a articular-se para solicitar o tombamento do edifício ou, pelo menos, a sua preservação neste lugar. Surgiu um abaixo assinado defendendo o projeto de Lelé com a justificativa de se tratar de obra de um dos mais importantes arquitetos brasileiros da atualidade, em uma leitura claramente idealista, segundo a qual a autoria da obra arquitetônica tem mais relevância do que as qualidades da obra em si. Mais interessante é a defesa realizada por Alberto ”Chango” Cordiviola, Professor Titular de Projeto da Faculdade de Arquitetura da UFBA, para quem, além do seu significado histórico (trazer de volta o executivo municipal à Praça Thomé de Souza, centro simbólico da cidade) e da sua qualidade arquitetônica, o edifício deve ser preservado porque “no desolador ambiente da paralisia conservacionista, outorga profundidade no tempo” (CORDIVIOLA, 2005: 34). 9 É no mínimo discutível a escolha dos dois peritos, um profissional formado em desenho industrial, arquitetura de interiores e com habilitação em programação visual e um arquiteto, ambos professores de uma escola local de decoração sem qualquer tradição no tema. Principalmente se considerarmos que Salvador abriga um Curso de Especialização em Conservação e Restauro de Monumentos e de Conjuntos Arquitetônicos reconhecido internacionalmente, além de um Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Arquitetura e Urbanismo que tem o Restauro como uma das suas áreas de concentração. Invertendo um axioma de John Summerson, segundo o qual deve ser conservado o edifício “cuja única virtude é que, no desolador ambiente da modernidade, outorga profundidade no tempo” (SUMMERSON, John apud CORDIVIOLA, op. cit.: 33). Conclusões A partir desta breve retrospectiva, podemos concluir, antes de qualquer outra coisa, que a questão da inserção de nova arquitetura frente à preexistência edificada está longe de possuir consensos. As abordagens contemporâneas da questão variam do pastiche ou da reconstrução da arquitetura histórica até o mais radical contraste. Do semi-pastiche realizado por Diógenes Rebouças no Solar Berquó até a arquitetura moderna indiferente ao contexto do mesmo Diógenes no Edifício Octacílio Gualberto, passando pela recuperação da paisagem alcançada por Paulo Ormindo de Azevedo na rua Monte Alverne e pela licenciosidade poética de Lina Bo Bardi no Solar do Unhão e na Ladeira da Misericórdia, temos, em um período de apenas vinte e cinco anos, intervenções que correspondem às mais diversas abordagens possíveis. Ainda que no Brasil, ao contrário de países como Inglaterra, Áustria e França10, não sejam correntes as intervenções de contraste absoluto, há casos isolados de novas arquiteturas em conjuntos ou edifícios tombados que atuam deliberadamente em oposição às preexistências no que se refere a gabarito, volumetria, cores, texturas e ritmos. Esta é a acusação que sofre, por exemplo, o projeto de Lelé para a Prefeitura Municipal de Salvador. Porém, neste caso, minimamente trata-se de uma arquitetura de qualidade, seja pelos seus aspectos técnicos, seja pelos seu valor estético, ainda que possa ser discutida a sua inadequação ao contexto. Mais grave é o caso do edifício situado na Praça da Sé, nº 26/28 (arquiteto Carlos Campelo, 1996- 98), apelidado de “Microondas” devido à sua fachada totalmente formada por painéis de vidro fumê. Além de representar uma atitude totalmente descomprometida com o contexto, trata-se de uma arquitetura de péssima qualidade, uma versão subdesenvolvida da arquitetura high- tech dos países centrais, realizada com uma série de limitações técnicas, orçamentárias e – por que não? – de senso estético. Cenário agravado quando se tem em consideração que o projeto 10 Nestes e em outros países têm prevalecido as intervenções de contraste radical, com utilização dos materiais e técnicas de construção mais avançados e lançando mão de volumetrias as mais dissonantes. É o caso, por exemplo, dos novos edifícios construídos recentemente por Sir Norman Foster na City de Londres (Torre da Seguradora Swiss Re, 1997-2004; Nova Prefeitura de Londres, 1999-2002); do Kunsthaus de Graz, na Áustria (Peter Cook e Colin Fournier, 2000-03) ou, no caso da França, da arquitetura high-tech do Centro Pompidou (Renzo Piano e Richard Rogers, 1971-77) e da Pirâmide do Louvre (I.M. Pei, 1983-88).
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