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Guias e Dicas
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cibercultura, Notas de estudo de Design

cibercultura

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 20/01/2010

carlos-bonfante-7
carlos-bonfante-7 🇧🇷

4.7

(17)

38 documentos

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Baixe cibercultura e outras Notas de estudo em PDF para Design, somente na Docsity! Pierre Lévy CIBERCULTURA editoralB34 coleção TRANS Pierre Lévy CIBERCULTURA Tradução Carlos Irineu da Costa editorall34 VI. O movimento social da cibercultura .............. Técnica e desejo coletivo: o exemplo do veículo automotivo. A infra-estrutura não é o dispositivo: o exemplo do correio. Ciberespaço e movimento social. O programa da cibercultura: a interconexão. O programa da cibercultura: as comunidades virtuais. O programa da cibercultura: a inteligência coletiva. Um programa sem objetivo nem conteúdo. VIT. O som da cibercultura ..... 135 As artes do virtual. A globalização da música. Música oral, escrita, gravada. À música tecno. IX. A arte da cibercultura . 145 A adequação entre as formas estéticas da cibercultura e seus dispositivos tecno-sociais. O universal sem totalidade: texto, música e imagem. O autor em questão. O declínio da gravação. X. A nova relação com o saber .. Educação e cibercultura. A articulação de numerosos pontos de vista. O segundo dilúvio e a inacessibilidade do todo. Quem sabe? A reencarnação do saber. À simulação, um modo de conhecimento próprio da cibercultura. Da interconexão caótica à inteligência coletiva. XL As mutações da educação e a economia do saber . 169 A aprendizagem aberta e à distância. A aprendizagem coletiva e o novo papel dos professores. Por uma regulamentação pública da economia do conhecimento. Saber-fluxo e dissolução das separações. O reconhecimento das aquisições. XIL As árvores de conhecimentos, um instrumento para a inteligência coletiva na educação e na formação .... 177 Nectar: um exemplo de uso internacional das árvores de conhecimentos. Um sistema universal sem totalidade. XII. O ciberespaço, a cidade e a democracia eletrônica... Cibercidades e democracia eletrônica, A analogia ou a cidade digital. À substituição. A assimilação, crítica das auto-estradas da informação. A articulação. Terceira Parte: PROBLEMAS XIV, Conflitos de interesse e diversidade dos pontos de vista... Abertura do devir tecnológico. O ponto de vista dos comerciantes e o advento do mercado absoluto. O ponto de vista das mídias: como fazer sensacionalismo com a Net? O ponto de vista dos Estados: controle dos fluxos transfronteiriços, criptografia, defesa da indústria e da cultura nacionais. O ponto de vista do “bem público”: a favor da inteligência coletiva. XV. Crítica da substituição e Substituição ou complexificação? Crescimentos paralelos das telecomunicações e do transporte. Aumento dos universas de escolha: a ascensão do virtual provoca a do atual. Novos planos de existência. Da perda. XVI. Crítica da dominação... Impotência dos atores “midiáticos”, Devemos temer o domínio de uma nova “classe virtual”? Dialética da utopia e dos negócios. XVI. Crítica da crítica ..... Funções do pensamento crítico. Crítica do totalitarismo ou temor da destotalização? A crítica era progressista. Estaria tornando-se conservadora? Ambivalência da potência. XVIIL Respostas a algumas perguntas frequentes ...... A cibercultura seria fonte de exclusão? À diversidade das línguas e das culturas encontra-se ameaçada pelo ciberespaço? A cibercultura não é sinônimo de caos e de confusão? A cibercultura encontra-se em ruptura com os valores fundadores da modernidade enropéia? Conclusão: À cibercultura ou a tradição simultânea ........ Glossário, por Carlos Irineu da Costa. 199 211 221 229 235 247 251 Introdução DILÚVIOS Pensar a cibercultura: esta é a proposta deste tivro. Em geral me consideram um otimista. Estão certos. Meu otimismo, contudo, não promete que a Internet resolverá, em um passe de mágica, todos os pro- btemas culturais e sociais do planeta. Consiste apenas em reconhecer dois fatos. Em primeiro lugar, que o crescimento do ciberespaço re- sulta de um movimento internacional de jovens ávidos para experimen- tar, coletivamente, formas de comunicação diferentes daquelas que as mídias clássicas nos propõem. Em segundo lugar, que estamos viven- do a abertura de um novo espaço de comunicação, e cabe apenas a nós explorar as potencialidades mais positivas deste espaço nos pla- nos econômico, político, cultural e bumano. Aqueles que denunciam a cibercultura hoje têm uma estranha semelhança com aqueles que desprezavam o rock nos anos 50 ou 60. O rock era anglo-americano, e tornou-se uma indústria. Isso não o impediu, contudo, de ser o porta-voz das aspirações de uma enorme parcela da juventude mundial. Também não impediu que muitos de nós nos divertíssemos ouvindo ou tocando juntos essa música. À música pop dos anos 70 deu uma consciência a uma ou duas gerações e con- tribuiu para o fim da Guerra do Vietnã. É bem verdade que nem o rock nem a música pop resolveram o problema da miséria ou da fome no mundo. Mas isso seria razão para “ser contra”? Durante uma dessas mesas redondas que têm se multiplicado sobre os “impactos” das novas redes de comunicação, tive a oportu- nidade de ouvir um cineasta, que se tornou um funcionário enropeu, denunciar a “barbárie” encarnada pelos videogames, os mundos vir- tuais e os fóruns eletrônicos. Respondi-lhe que aquele era um discar- so muito estranho vindo de um representante da sétima arte. Pois, ao nascer, o cinema foi desprezado como um meio de embotamento me- cânico das massas por quase todos os intelectuais bem-pensantes, as- sim como pelos porta-vozes oficiais da cultura. Hoje, no entanto, o cinema é reconhecido como uma arte completa, investido de todas as legitimidades culturais possíveis. Parece contudo gue o passado não é Cibercultura u bilhão « meio de homens na Terra em 1900, mas serão mais de seis bilhões no ano 2000. Os homens inundam a Terra. Esse crescimento global tão acelerado não tem nenhum precedente histórico. Frente à irresistível inundação humana, há duas soluções opos- tas. Uma delas é a guerra, o extermínio do dilúvio atômico, não im- portando qual seja sua forma, com o desprezo que isto implica em relação às pessoas. Nesse caso, a vida humana perde seu valor. O hu- mano é reduzido ao nível das bestas ou das formigas, esfomeado, ater- rorizado, explorado, deportado, massacrado. À outra é a exaltação do indivíduo, o humano considerado como o maior valor, recurso maravilhoso e sem preço. Para valorizar o va- lor, faremos um grande esforço a fim de tecer incansavelmente rela- ções entre as idades, os sexos, as nações e as culturas, apesar das difi- culdades e dos conflitos. A segunda solução, simbolizada pelas tele- comunicações, implica o reconhecimento do outro, a aceitação e aju- da mútuas, a cooperação, a associação, a negociação, para além das diferenças de pontos de vista e de interesses. As telecomunicações são de fato responsáveis por estender de uma ponta à outra do mundo as possibilidades de contato amigável, de transações contratuais, de trans- missões de saber, de trocas de conhecimentos, de descoberta pacífica das diferenças. O fino enredamento dos humanos de todos os horizontes em um único e imenso tecido aberta e interativo gera uma situação absolutamen- te inédita e portadora de esperança, já que é uma resposta positiva ao crescimento demográfico, embora também crie novos problemas. Gos- taria de abordar alguns deles neste livro, especialmente aqueles que estão ligados à cultura: a arte, a educação ou a cidade à mercê da comunicação interativa generalizada. Na aurora do dilúvio informacional, talvez uma meditação sobre o dilúvio bíblico possa nos ajudar a compreender me- lhor os novos tempos. Onde está Noé? O que colocar na arca? No meio do caos, Noé construiu um pequeno mundo bem orga- nizado. Face ao desencadeamento dos dados, protegeu uma seleção. Quando tudo vai por água abaixo, ele está preocupado em transmitir. Apesar do salve-se quem puder geral, recolhe pensando no futuro. “E Jeová fechou a porta por fora” (Gênesis 7, 16). A arca foi fe- chada, Ela simboliza a totalidade reconstituída. Quando o universo está desenfreado, o microcosmo organizado reflete a ordem de um macrocosmo que está por vir. Mas o múltiplo não se deixa esquecer. O dilúvio informacional] jamais cessará. À arca não repousará no topo 14 Pierre Févy do monte Ararat. O segundo dilúvio não terá fim. Não há nenhum fundo sólido sob o oceano das informações. Devemos aceitá-lo como nossa nova condição. Temos que ensinar nossos filhos a nadar, a flu- tuar, talvez a navegar. Quando Noé, ou seja, cada um de nós, olha através da escotilha de sua arca, vê outras arcas, a perder de vista, no oceano agitado da comunicação digital. E cada uma dessas arcas contém uma seleção di- ferente. Cada uma quer preservar a diversidade. Cada uma quer trans- mitir. Estas arcas estarão eternamente à deriva na superfície das águas. Umas das principais hipóteses deste livro é a de que a cibercultura expressa o surgimento de um novo universal, diferente das formas cul- turais que vieram antes dele no sentido de que ele se constrói sobre a indeterminação de um sentido global qualquer. Precisamos, de faro, colocá-la dentro da perspectiva das mutações anteriores da comunicação. Nas sociedades orais, as mensagens discursivas são sempre rece- bidas no mesmo contexto em que são produzidas. Mas, após o surgi- mento da escrita, os textos se separam do contexto vivo em que fo- ram produzidos. É possível ler uma mensagem escrita cinco séculos antes ou redigida a cinco mil quilômetros de distância — o que mui- tas vezes gera problemas de recepção e de interpretação. Para vencer essas dificuldades, algumas mensagens foram então concebidas para preservar o mesmo sentido, qualquer que seja o contexto (o lugar, a época) de recepção: são as mensagens “universais” (ciência, religiões do livro, direitos do homem etc.). Esta universalidade, adquirida gra- ças à escrita estática, só pode ser construída, portanto, ao custo de uma certa redução ou fixação do sentido: é um universal “totalizante”. À hipótese que levanto é a de que a cibercultura leva a co-presença das mensagens de volta a seu contexto como ocorria nas sociedades orais, mas em outra escala, em uma órbita completamente diferente. À nova universalidade não depende mais da auto-suficiência dos textos, de uma fixação e de uma independência das significações. Ela se constrói e se estende por meio da interconexão das rmensagens entre si, por meio de sua vinculação permanente com as comunidades virtuais em criação, que lhe dão sentidos variados em uma renovação permanente. A arca do primeiro dilúvio era única, estangue, fechada, totali- zante. As arcas do segundo dilúvio dançam entre si. Trocam sinais. Fecundam-se mutuamente. Abrigam pequenas totalidades, mas sem nenhuma pretensão ao universal. Apenas o dilúvio é universal. Mas ele é intotalizável. É preciso imaginar um Noé modesto. Cibercultura t$ “Eles foram extintos da Terra; ficou somente Noé e os que esta- vam com ele na barca” (Gênesis 7, 23). À operação de salvamento de Noé parece complementar, quase cúmplice de um extermínio. A tota- lidade com pretensões universais afoga tudo aquilo que não pode re- ter. É desta forma que as civilizações são fundadas, que o universal imperial se instaura. Na China, o imperador amarelo mandou destruir quase todos os textos anteriores a seu regime. Qual César, qual con- quistador bárbaro deu ordens para deixar queimar a biblioteca de Alexandria a fim de terminar com a desordem helenística? A Inquisição espanhola colocava fogo em autos-de-fé de onde esvaiam-se em fumaça o Corão, o Talmude e tantas outras páginas inspiradas ou meditadas. Horríveis fogueiras hitlerianas, fogos de livros nas praças européias, em que ardiam a inteligência e a cultura! Talvez a primeira de todas essas tentativas de aniquilação tenha sido a do império mais antigo, na Mesopotâmia, de onde nos vêm tanto a versão oral como a escrita do dilúvio, muito antes da Bíblia. Pois foi Sargão de Agadé, rei dos quatro países, primeiro imperador da história, que mandou jogar no Eufrates milhares de tábulas de argila, nas quais estavam gravadas lendas de tempos imemoriais, preceitos de sabedoria, manuais de me- dicina ou de magia, secretados por várias gerações de escribas. Os sig- nos permanecem legíveis por alguns instantes sob a água corrente, depois se apagam. Levadas pelos turbilhões, potidas pela correnteza, as tábulas amolecem aos poucos, voltam a ser seixos de argila lisa que em pouco tempo se fundem com o lodo do rio e vão se acrescentar ao lodo das inundações. Muitas vozes foram caladas para sempre. Não suscitarão mais nenhum eco, nenhuma resposta. Mas o novo dilúvio não apaga as marcas do espírito. Carrega-as todas juntas. Fluida, virtual, ao mesmo tempo reunida e dispersa, essa biblioteca de Babel não pode ser queimada. As inúmeras vozes que ressoam no ciberespaço continuarão a se fazer ouvir e a gerar respos- tas, As águas deste dilúvio não apagarão os signos gravados: são inun- dações de signos. Sim, a tecnociência produziu tanto o fogo nuclear como as re- des interativas. Mas o telefone e a Internet “apenas” comunicam. Tanto uma como os outros construíram, pela primeira vez neste século de ferro e loucura, a unidade concreta do gênero bumano. Ameaça de morte enquanto espécie em relação à bomba atômica, diálogo plane- tário em relação às telecomunicações. Nem a salvação nem a perdição residem na técnica. Sempre am- 16 Pierre Lévy Primeira Parte Definições I AS TECNOLOGIAS TI UM IMPACTO? A METÁFORA DO IMPACTO É INADEQUADA Nos textos que anunciam colóquios, nos resumos dos estudos oficiais ou nos artigos da imprensa sobre o desenvolvimento da mul- timídia, fala-se muitas vezes no “impacto” das novas tecnologias da informação sobre a sociedade ou a cultura. À tecnologia seria algo comparável a um projétil (pedra, obus, mís: dade a um alvo vivo... Esta metáfora bélica é criticável em vários sen- tidos. A questão não é tanto avaliar a pertinência estilística de uma figura de retórica, mas sim esclarecer o esquema de leitura dos fenô- menos — a meu ver, inadequado — que a metáfora do impacto! nos revela. As técnicas viriam de outro planeta, do mundo das máquinas, frio, sem emoção, estranho a toda significação e qualquer valor humano, como uma certa tradição de pensamento tende a sugerir?? Parece-me. pelo contrário, que não somente as técnicas são imaginadas, fabrica- das € reinterpretadas durante seu uso pelos homens, como também é o próprio uso intensivo de ferramentas que constitui a humanidade enquanto tal (junto com a linguagem c as instituições sociais comple- xas). É o mesmo homem que fala, enterra seus mortos e talha o sílex. Propagando-se até nós, o fogo de Prometeu cozinha os alimentos, endurece a argila, funde os metais, alimenta a máquina a vapor, corre nos cabos de alta-tensão, queima nas centrais nucleares, explode nas armas e engenhos de destruição. Com a arquitetura que o abriga, reúne e inscreve sobre a Terra; com a roda c a navegação que abriram seus horizontes; com a escrita, o telefone e o cinema que o infiltram de signos; com o texto e q têxtil que, entretecendo a variedade das maté- il2) e a cultura ou a socie- ! Ver Mark Johnson, Gerge Lakoff, Les métapbores dans la vie quotidienne, Paris, Minuit, 1985. 2 É, por exemplo, a tese tque exponho de forma caricatural aqui) de Gilbert Hotrois em Le signe et lu technique. Paris, Aubice-Montaigne, 1984. Cibercultura MH rias, das cores e dos sentidos, desenrolam ao infinito as superfícies onduladas, luxuosamente redobradas, de suas intrigas, seus tecidos e seus véus, o mundo humano é, ao mesmo tempo, técnico. Seria a tecnologia um ator autônomo, separado da sociedade e da cultura, que seriam apenas entidades passivas percutidas por um agente exterior? Defendo, ao contrário, que a técnica é um ângulo de análise dos sistemas sócio-técnicos globais, um ponto de vista que enfatiza a parte material e artificial dos fenômenos humanos, e não uma entidade real, que existiria independentemente do resto, que te- ria efeitos distintos e agiria por vontade própria. As atividades huma- nas abrangem, de maneira indissolúvel, interações entre: — pessoas vivas e pensantes, — entidades materiais naturais e artificiais, — idéias e representações. É impossível separar o humano de seu ambiente material, a: como dos signos e das imagens por meio dos quais ele atribui sentido à vida e ao mundo. Da mesma forma, não podemos separar o mundo materia! — e menos ainda sua parte artificial — das idéias por meio das quais os objetos técnicos são concebidos e utilizados, nem dos humanos que os inventam, produzem e utilizam, Acrescentemos, en- fim, que as imagens, as palavras, as construções de linguagem entra- nham-se nas almas humanas, fornecem meios e razões de viver aos homens e suas instituições, são recicladas por grupos organizados e instrumentalizados, como também por circuitos de comunicação e me- mórias artificiais), Mesmo supondo que realmente existam três entidades — técni- ca, cultura e sociedade —, em vez de enfatizar o impacto das tecnolo- gias, poderíamos igualmente pensar que as tecnologias são produtos de uma sociedade e de uma cultura. Mas a distinção traçada entre cultura (a dinâmica das representações), sociedade (as pessoas, seus laços, suas trocas, suas relações de força) e técnica (artefatos eficazes) só pode ser conceitual. Não há nenhum ator, nenhuma “causa” realmente indepen- dente que corresponda a ela. Encaramos as tendências intelectuais como sim * Como é possível que formas institucionais e técnicas materiais transmitam idéias... é vice-versa? Esta é uma das principais linhas de pesquisa do empreendi- mento midialógico iniciado por Régis Debray. Ver, por exemplo, seu Cours de médiologie gênérale, Paris, Gallimard, 1991, Transmettre, Paris, Odile Jacob, 1997, ca bela revista Les Cabiers de Médiologie. 22 Pierre Lévy desenvolver agentes de software inteligentes, ou knotebots. Todos esses são fenômenos que transformam as significações culturais e sociais das cibertecnologias no fim dos anos 90. Dados a amplitude e o ritmo das transformações ocorridas, ain- da nos é impossível prever as mutações que afetarão o universo digi- tal após o ano 2000. Quando as capacidades de memória e de trans- missão aumentam, quando são inventadas novas interfaces com o cor- po e o sistema cognitivo humano (a “realidade virtual”, por exemplo), quando se traduz o conteúdo das antigas mídias para o ciberespaço (o telefone, a televisão, os jornais, os livros etc.), quando o digital co- munica e coloca em um ciclo de retroalimentação processos físicos, econômicos ou industriais anteriormente estanques, suas implicações culturais e sociais devem ser reavaliadas sempre. A TECNOLOGIA É DETERMINANTE OU CONDICIONANTE? As técnicas determinam a sociedade ou a cultura? Se aceitarmos a ficção de uma relação, ela é muito mais complexa do que uma rela- ção de determinação. A emergência do ciberespaço acompanha, tra- duz e favorece uma evolução geral da civilização. Uma técnica é pro- duzida dentro de uma cultura, e uma sociedade encontra-se condicio- nada por suas técnicas. E digo condicionada, não determinada, Essa diferença é fundamental. A invenção do estribo permitiu o desenvol- vimento de uma nova forma de cavalaria pesada, a partir da qual fo- ram construídos o imaginário da cavalaria e as estruturas políticas e sociais do feudalismo. No entanto, o estribo, enquanto dispositivo material, não é a “causa” do feudalismo europeu. Não há uma “can- sa” identificável para um estado de fato social ou cultural, mas sim um conjunto infinitamente complexo e parcialmente indeterminado de processos em interação que se auto-sustentam ou se inibem. Podemos dizer em contrapartida que, sem o estribo, é difícil conceber como cavaleiros com armaduras ficariam sobre seus cavalos de batalha e atacariam com a lança em riste... O estribo condiciona efetivamente toda a cavalaria e, indiretamente, todo o feudalismo, mas não os de- termina. Dizer que a técnica condiciona significa dizer que abre algu- mas possibilidades, que algumas opções culturais ou sociais não po- deriam ser pensadas a sério sem sua presença. Mas muitas possibili- dades são abertas, e nem todas serão aproveitadas. As mesmas técni- cas podem integrar-se a conjuntos culturais bastante diferentes. À agri- cultura irrigada em grande escala talvez tenha favorecido o “despo- Cibercultura 25 tismo oriental” na Mesopotâmia, no Egito e na China mas, por um tado, essas são civilizações bastante diferentes e, por outro, a agricul- tura irrigada por vezes encontrou um lugar em formas sócio-políticas cooperativas (no Magreb medieval, por exemplo). Confiscada pelo Estado na China, atividade industrial que escapou aos poderes políti- cos na Europa, a impressão não teve as mesmas conseguências no Oriente e no Ocidente. À prensa de Gutenberg não determinou a cri- se da Reforma, nem o desenvolvimento da moderna ciência européia, tampouco o crescimento dos ideais iluministas e a força crescente da opinião pública no século XVIII — apenas condicionou-as. Conten- tou-se em fornecer uma parte indispensável do ambiente global no qual essas formas culturais surgiram. Se, para uma filosofia mecanicista in- transigente, um efeito é determinado por suas causas e poderia ser de- duzido a partir delas, o simples bom senso sugere que os fenômenos culturais e sociais não obedecem a esse esquema. A multiplicidade dos fatores e dos agentes proíbe qualquer cálculo de efeitos deterministas. Além disso, todos os fatores “objetivos” nunca são nada além de con- dições a serem interpretadas, vindas de pessoas e de coletivos capazes de uma invenção radical. Uma técnica não é nem boa, nem má (isto depende dos contex- tos, dos usos e dos pontos de vista), tampouco neutra (já que é condi- cionante ou restritiva, já que de um lado abre e de outro fecha o es- pectro de possibilidades). Não se trata de avaliar seus “impactos”, mas de situar as irreversibilidades às quais um de seus usos nos levaria, de formular os projetos que explorariam as virtualidades que ela trans- porta e de decidir o que fazer dela. Contudo, acreditar em uma disponibilidade total das técnicas e de seu potencial para indivíduos ou coletivos supostamente livres, es- clarecidos e racionais seria nutrir-se de ilusões. Muitas vezes, enquanto discutimos sobre os possíveis usos de uma dada tecnologia, algumas formas de usar já se impuseram. Antes de nossa conscientização, a di- nâmica coletiva escavou seus atratores. Quando finalmente prestamos atenção, é demasiado tarde... Enquanto ainda questionamos, outras tecnologias emergem na fronteira nebulosa onde são inventadas as idéias, as coisas e as práticas. Elas ainda estão invisíveis, talvez pres- tes a desaparecer, talvez fadadas ao sucesso. Nestas zonas de indeter- minação onde o futuro é decidido, grupos de criadores marginais, apai- xonados, empreendedores audaciosos tentam, com todas as suas for- gas, direcionar o devir. Nenhum dos principais atores institucionais 26 Pierre Lévy — Estado ou empresas — planejou deliberadamente, nenhum grande órgão de mídia previu, tampouco anunciou, o desenvolvimento da in- formática pessoal, o das interfaces gráficas interativas para todos, o dos BBS* ou dos programas que sustentam as comunidades virtuais”, dos hipertextos!º ou da World Wide Web!!, ou ainda dos programas de criptografia pessoal inviolável!2, Essas tecnologias, todas impreg- nadas de seus primeiros usos e dos projetos de seus criadores, nasci- das no espírito de visionários, transmitidas pela efervescência de mo- vimentos sociais e práticas de base, vieram de lugares inesperados para qualquer “tomador de decisões”. A ACELERAÇÃO DAS ALTERAÇÕES TÉCNICAS E A INTELIGÊNCIA COLETIVA Se nos interessarmos sobretudo por seu significado para os ho- mens, parece que, como sugeri anteriormente, o digital, fluido, em constante mutação, seja desprovido de qualquer essência estável. Mas, justamente, a velocidade de transformação é em si mesma uma cons- tante — paradoxal — da cibercultura. Ela explica parcialmente a sen- sação de impacto, de exterioridade, de estranheza que nos toma sem- pre que tentamos apreender o movimento contemporâneo das técni- cas. Para q indivíduo cujos métodos de trabalho foram subitamente alterados, para determinada profissão tocada bruscamente por uma revolução tecnológica que torna obsoletos seus conhecimentos e savoir- * BS (Bulletin Board System) é um sistema de comunicações do tipo comu- aitário, bascado em computadores conectados através da rede telefônica. ? Comunidade virtual é um grupo de pessoas se correspondendo mutuamente por meio de computadores interconectados. 19 Hipertexto é um texto em formato digital, reconfigurável e fluido. Ele é composto por blucos elementares ligados por links que podem ser explorados em tempo real na tela. A noção de hiperdocumento generaliza, para todas as catego- tias de signos (imagens, animações, sons etc.), o princípio da mensagem em rede móvel que caracteriza o hipertexto. UA World Wide Web é uma função da Internet que junta, em um único e imenso hipertexto ou hiperdocumento (compreendendo imagens e sons), todos os documentos € hipertextos que a alimentam. 12 Para uma explicação mais detalhada sobre as questões relacionadas à criptografia, consultar, no capítulo XIV, sobre o conflito de interesses e as inter- pretações, a seção sobre o ponto de vista dos Estados. Cibercultura 27 — de dominação (reforço dos centros de decisão e de controle, domínio quase monopolista de algumas potências econômicas sobre funções importantes da rede etc.), — de exploração tem alguns casos de teletrabalho vigiado ou de deslocalização de atividades no terceiro mundo), — e mesmo de bobagem coletiva (rumores, conformismo em rede ou em comunidades virtuais, acúmulo de dados sem qualquer infor- mação, “televisão interativa”). Além disso, nos casos em que processos de inteligência coletiva desenvolvem-se de forma eficaz graças ao ciberespaço, um de seus principais efeitos é o de acelerar cada vez mais o ritmo da alteração tecno-social, o que torna ainda mais necessária a participação ativa na cibercultura, se não quisermos ficar para trás, e tende a excluir de maneira mais radical ainda aqueles que não entraram no ciclo positi- vo da alteração, de sua compreensão e apropriação. Devido a seu aspecto participativo, socializante, descomparti- mentalizante, emancipador, a inteligência coletiva proposta pela ci- bercuitura constitui um dos melhores remédios para o ritmo deses- tabilizante, por vezes excludente, da mutação técnica. Mas, neste mes- mo movimento, a inteligência coletiva trabalha ativamente para a ace- leração dessa mutação. Em grego arcaico, a palavra “pharmakon” (gue originou “pharmacie”, em francês) significa ao mesmo tempo veneno e remédio. Novo pharmakon, a inteligência coletiva que favorece a cibercultura é ao mesmo tempo um veneno para aqueles que dela não participam (e ninguém pode participar completamente dela, de tão vasta e multiforme que é) e um remédio para aqueles que mergulham em seus turbilhões e conseguem controlar a própria deriva no meio de suas correntes. 30 Pierre Lévy D. A INFRA-ESTRUTURA TÉCNICA DO VIRTUAL A EMERGÊNCIA DO CIBERESPAÇO Os primeiros computadores (calculadoras programáveis capazes de armazenar os programas) surgiram na Inglaterra e nos Estados Unidos em 1945. Por muito tempo reservados aos militares para cál- culos científicos, seu uso civil disseminou-se durante os anos 60. Já nessa época era previsível que o desempenho do hardware aumenta- ria constantemente. Mas que haveria um movimento gera! de virtua- lização da informação e da comunicação, afetando profundamente os dados elementares da vida social, ninguém, com a exceção de alguns visionários, poderia prever naquele momento. Os computadores ain- da eram grandes máquinas de calcular, frágeis, isoladas em salas re- frigeradas, que cientistas em uniformes brancos alimentavam com car- tões perfurados e que de tempos em tempos cuspiam listagens ilegí- veis. À informática servia aos cálculos científicos, às estatísticas dos Estados e das grandes empresas ou a tarefas pesadas de gerenciamento (folhas de pagamento etc.). A virada fundamental data, talvez, dos anos 70. O desenvolvi- mento e a comercialização do microprocessador (unidade de cálculo aritmético e lógico localizada em um pequeno chip eletrônico) dispa- raram diversos processos econômicos e sociais de grande amplitude. Eles abriram uma nova fase na automação da produção industrial: robótica, linhas de produção flexíveis, máquinas industriais com con- troles digitais etc. Presenciaram também o princípio da automação de alguns setores do terciário (bancos, seguradoras). Desde então, a busca sistemática de ganhos de produtividade por meio de várias formas de uso de aparelhos eletrônicos, computadores e redes de comunicação de dados aos poucos foi tomando conta do conjunto das atividades econômicas. Esta tendência continua em nossos dias. Por outro lado, um verdadeiro movimento social nascido na Cali- fórnia na efervescência da “contracultura” apossou-se das novas pos- sibilidades técnicas e inventou o computador pessoal. Desde então, o computador iria escapar progressivamente dos serviços de processa- Cibercultura 31 mento de dados das grandes empresas e dos programadores profissio- nais para tornar-se um instrumento de criação (de textos, de imagens. de músicas), de organização (bancos de dados, planilhas), de simula- ção (planilhas, ferramentas de apoio à decisão, programas para pes- quisa) e de diversão jogos) nas mãos de uma proporção crescente da população dos países desenvolvidos. Os anos 80 viram o prenúncio do horizonte contemporâneo da multimídia. A informática perdeu, pouco a pouco, seu starus de téc- nica e de setor industrial particular para começar a fundir-se com as telecomunicações, a editoração, o cinema e a televisão. A digitalização penetrou primeiro na produção e gravação de músicas, mas os mi- croprocessadores e as memórias digitais tendiam a tornar-se a infra- estrutura de produção de todo o domínio da comunicação. Novas formas de mensagens “interativas” apareceram: este decênio viu a invasão dos videogames, o triunfo da informática “amigável” (inter- faces gráficas e interações sensório-motoras) e o surgimento dos hi- perdocumentos (hipertextos, CD-ROM). No final dos anos 80 e início dos anos 90, um novo movimento sócio-cultural originado pelos jovens profissionais das grandes metró- poles e dos campus americanos tomou rapidamente uma dimensão mundial. Sem que nenhuma instância dirigisse esse processo, as dife- rentes redes de computadores que se formaram desde o final dos anos 70 se juntaram umas às outras enquanto o número de pessoas e de computadores conectados à inter-rede começou a crescer de forma exponencial. Como no caso da invenção do computador pessoal, uma corrente cultural espontânea e imprevisível impôs um novo curso ao desenvolvimento tecno-econômico. As tecnologias digitais surgiram, então, como a infra-estrutura do ciberespaço, novo espaço de comu- nicação, de sociabilidade, de organização e de transação, mas também novo mercado da informação e do conhecimento. Neste estudo, não nos interessa a técnica em si. Contudo, é ne- cessário expor as grandes tendências da evolução técnica contempo- rânea para abordar as mutações sociais e culturais que as acompanham. A esse respeito, o primeiro dado a levar em conta é o aumento expo- nencial das performances dos equipamentos (velocidade de cálculo, ca- pacidade de memória, taxas de transmissão) combinado com uma baixa contínua nos preços. Em paralelo, no domínio do software têm havido melhorias conceituais e teóricas que exploram o aumento de potência do hardware. Os produtores de programas têm se dedicado 32 Pierre Lévy os suportes (discos, disquetes etc.) por estrada, trem, barco ou avião. Mas a conexão direta, ou seja, em rede ou on-line (“em linha”) é evi- dentemente mais rápida. À informação pode usar a rede telefônica clássica, contanto que seja modulada (codificada analogicamente de forma adequada) ao entrar na rede telefônica e desmodulada (redi- gitalizada) quando chegar a um computador ou outro equipamento digital na outra ponta do cabo. O aparelho que permite a modulação e desmodulação da informação digital, e que portanto permite a co- municação de dois computadores via telefone, chama-se “modem”. Volumosos, caros e lentos nos anos 70, os modems passaram a ter, na metade dos anos 90, uma capacidade de transmissão superior à da linha telefônica de um usuário médio. De uso comum, os modems são hoje dispositivos miniaturizados e muitas vezes encontram-se integra- dos aos computadores na forma de placa ou circuito impresso. As informações podem viajar diretamente em sua forma digital, através de cabos coaxiais de cobre, por fibras óticas ou por via hertziana (ondas eletromagnéticas) e portanto, como ocorre quando usam a rede telefônica, passar por satélites de telecomunicação. Os progressos da função de transmissão (taxa de transferência, confiabilidade) dependem de diversos fatores. O primeiro destes é a capacidade de transmissão bruta. Neste campo, esperam-se melhorias sensacionais nas fibras óticas. Estão sendo feitas pesquisas atualmente, em vários laboratórios, sobre uma “fibra negra”, canal ótico do qual um único fio, tão fino quanto um fio de cabelo, poderia conter todo o fluxo de mensagens telefônicas dos Estados Unidos no Dia das Mães tdara em que há o maior tráfego na rede). Um equipamento mínimo com esta fibra negra teria mil vezes a capacidade de transmissão her- tziana em todo o espectro de frequências. O segundo fator de melhoria reside nas capacidades de compres- são e de descompressão das mensagens. De fato, são os sons e as ima- gens em movimento que mais consomem capacidade de armazena- mento e de transmissão. Alguns programas ou circuitos especializados em compressão podem analisar as imagens ou os sons para produzir simplificações ou descrições sintéticas dos mesmos, que chegam a ser milhares de vezes menos volumosas que sua codificação digital inte- gral. Na outra ponta do canal de transmissão, um módulo de des- compressão reconstrói a imagem ou o som a partir da descrição rece- bida, minimizando a perda de informação. Ao comprimir e descom- primir as mensagens, transfere-se uma parte das dificuldades de trans- Cibercultura 3s missão (e de gravação) para o tratamento que está se tornando, como acabo de dizer, cada vez mais barato e mais rápido. O terceiro fator de melhoria na transmissão reside nos avanços em matéria de arquitetura global de sistemas de comunicação. Neste campo, o principal progresso é sem dúvida a generalização da comu- tação por pacotes. Esta arquitetura descentralizada, na qual cada nó da rede é “inteligente”, foi concebida no final dos anos 50 em respos- ta a cenários de guerra nuclear, mas só começou a ser experimentada em escala natural no final dos anos 60, nos Estados Unidos. Neste sis- tema, as mensagens são recortadas em pequenas unidades do mesmo tamanho, os pacotes, cada um dos quais munidos de seu endereço de partida, seu endereço de destino e sua posição na mensagem comple- ta, da qual representam apenas uma parte. Computadores roteadores, distribuídos por toda a rede, sabem ler essas informações. À rede pode ser materialmente heterogênea (cabos, via hertziana, satélites etc.), basta que os roteadores saibam ler os endereços dos pacotes e que falem uma “linguagem” em comum. Se, em determinado ponto da transmissão, algumas informações desaparecerem, os roteadores podem pedir que o remetente as envie novamente. Os roteadores mantêm-se mutuamente informados, em intervalos regulares, sobre o estado da rede, Os pacotes podem, então, tomar caminhos diferentes de acordo com problemas de destruição, pane ou engarrafamento, mas serão finalmente reagru- pados antes de chegarem a seu destinatário. Esse sistema é particular- mente resistente a incidentes, porque é decentralizado e sua inteligên- cia é “distribuída”. Em 1997, está funcionando apenas em algumas redes especializadas (entre as quais aquela que suporta a espinha dor- sal da Internet), mas o padrão de comunicação ATM (Asynchronous Transfer Mode), que funciona de acordo com a comutação por paco- tes, foi adotado pela União internacional das telecomunicações. No futuro, deve ser aplicado ao conjunto das redes de telecomunicação e prevê uma comunicação digital multimídia de alta capacidade. Alguns números darão uma idéia dos progressos feitos no domí- nio das taxas de transmissão de informações. Nos anos 70, a rede Arpanet (ancestral da Internet), nos Estados Unidos, possuía nós que suportavam 56 mil bits por segundo. Nos anos 80, as linhas da rede que conectava os cientistas americanos podiam transportar 1,5 milhões de bits por segundo. Em 1992, as linhas da mesma rede podiam trans- mitir 45 milhões de bits por segundo (uma enciclopédia por minuto). Os projetos e pesquisas em desenvolvimento prevêem a construção de 36 Pierre Lévy linhas com a capacidade de muitas centenas de milhares de bits por segundo (uma grande biblioteca por minuto). AS INTERFACES Usamos aqui o termo “interfaces” para todos os aparatos mate- riais que permitem a interação entre o universo da informação digital e o mundo ordinário. Os dispositivos de entrada capturam e digitalizam a informação para possibilitar os processamentos computacionais. Até os anos 70, boa parte dos computadores eram alimentados com dados por meio de cartões perfurados. Desde então, o espectro de ações corporais ou de qualidades físicas que podem ser diretamente captadas por dispo- sitivos computacionais aumentou: teclados que permitem a entrada de textos e o fornecimento de instruções aos computadores, o mouse por meio do qual é possível manipular “com a mão” as informações na tela, superfícies sensíveis à pressão dos dedos (tela sensível ao toque), digitalizadores automáticos de som (samplers), módulos de software capazes de interpretar a palavra falada, digitalizadores (ou scanners) de imagens e de textos, leitores óticos (de código de barras ou outras informações), sensores automáticos de movimentos do corpo (data- gloves ou datasuits), dos olhos, das ondas cerebrais, de influxos ner- vosos (usados em algumas próteses), sensores de todos os tipos de grandezas físicas: calor, umidade, luz, peso, propriedades químicas etc. Após serem armazenados, tratados e transmitidos sob a forma de números, os modelos abstratos são tornados visíveis, as descrições de imagens tornam-se de novo formas e cores, os sons ecoam no ar, Os textos são impressos sobre papel ou exibidos na tela, as ordens dadas a autômatos são efetuadas por acionadores etc. A qualidade dos su- portes de exibição ou de saída da informação é evidentemente deter- minante para os usuários dos sistemas de computadores e condiciona em grande parte seu sucesso prático e comercial. Até os anos 60, a maior parte dos computadores simplesmente não tinha monitores. As Primeiras telas exibiam apenas caracteres (letras e números). Hoje já dispomos de telas planas a cores em cristal líquido, e estão sendo fei- tos estudos para a comercialização de sistemas de exibição estereos- cópica de imagens A evolução das interfaces de saída deu-se no sentido de uma me- lhoria da definição e de uma diversificação dos modos de comunica- ção da informação. No domínio visual, além das imagens na tela, a Mibercultura 37 40 quáticas brilha sob seus olhos. Esse mundo é doce, orgânico, dominado por uma vegetação onipresente. Ao inclinar-se para frente, você vai em direção a uma grande árvore que parece constituir o eixo da clareira sagrada. Surpresa: ao entrar em contato com a casca da árvore, penetra no alburno €, como se fosse uma molécula dotada de sensações, toma os canais que carregam a seiva. Concentrando-se para ins- pirar profundamente, sobe pelo interior da árvore até chegar à folhagem. Cercado por cápsulas de clorofila de verde ten- ro, chega agora a uma folha onde assiste à complicada dança da fotossíntese. Saindo da folha, voa novamente sobre a clareira. Desce rumo ao pântano com profundas expirações. No caminho, cruza novamente uma revoada de vaga-lumes (ou seriam espíritos?) da qual emanam estranhos sons de sininhos distantes. Virando a cabeça, é possível vê-los afas- tarem-se rumo à floresta enquanto chegam, atenuados pela distância, os últimos ecos das sinetas celestiais. Agora você se encontra bem próximo à superfície do pântano, onde os reflexos e jogos de luz fazem com que permaneça algum tempo. Depois cruza a superfície da água. Um peixe com nadadeiras ondulantes o recebe no mundo aquático... Após visitar o pântano, atravessa o mundo da floresta, o mundo mineral, e depois um espaço estranho, listrado com tinhas de escrita, que deve ser percorrido através de sua res- piração e dos movimentos do peito para decifrar frases de filósofos: englobando a natureza, este é o mundo do discur- so humano. Por fim, chega ao mundo da informática, povoa- do apenas por linhas de código. Pensa ter tempo de voltar para estes diferentes mundos, mas já está tomado por um mo- vimento ascendente que o leva de forma calma, mas firme, a deixar o planeta Osmose. A vida neste universo possui ape- nas um tempo. Enquanto o globo no qual você existiu e sen- tin, por um curto instante, afasta-se agora no fundo do es- paço sideral, você lamenta não ter usado satisfatoriamente o período de imersão. Onde você irá reencarnar agora? Os princípios que nortearam a concepção de Osmose são opostos aus que governam os videogames. Não é posst- vel agir com as mãos. A postura de apreender, manipular ou combater encontra-se necessariamente conirariada. Ao con- Pierre Lévy trário, para evoluir neste mundo vegetal e meditativo, você é levado a concentrar-se na respiração e nas sensações cines- tésicas. É preciso estar em osmose com esta realidade virtual para conhecê-la. Movimentos bruscos ou rápidos não são efi- cazes. Por outro lado, comportamentos suaves e a atitude contemplativa são “recompensados”. Em vez de cores fortes, os mundos da árvore, do pântano, da clareira e da floresta oferecem à vista um camafeu sutil de verdes e marrons que evocam mais as tinturas vegetais do que o cintilamento tec- nológico das imagens geradas por computador. Osmose mar- caa saída das artes virtuais de sua matriz original de simula- ção “realista” e geométrica. Este obra apresenta um desmen- tido marcante para aqueles que querem ver no virtual ape- nas a busca do “projeto ocidental elou machista de domínio da natureza e manipulação do mundo”. Aqui, o virtual foi explicitamente concebido para incitar ao retiro, à autocons- ciência, ao respeito à natureza, a uma forma “osmótica” de conhecimento e de relacionamento com o mundo. À PROGRAMAÇÃO O ciberespaço não compreende apenas materiais, informações é seres humanos, é também constituído e povoado por seres estranhos, meio textos meio máquinas, meio atores, meio cenários: os programas. Um programa, ou software, é uma lista bastante organizada de instru- ções codificadas, destinadas a fazer com que um ou mais processadores executem uma tarefa. Através dos circuitos que comandam, os pro- gramas interpretam dados, agem sobre informações, transformam ou- tros programas, fazem funcionar computadores e redes, acionam má- quinas físicas, viajam, reproduzem-se etc. Os programas são escritos com o auxílio de linguagens de pro- gramação, códigos especializados para escrever instruções para pro- cessadores de computadores. Há um grande número de linguagens de programação com maior ou menor grau de especialização em deter- minadas tarefas. Desde o início da informática, engenheiros, matemá- ticos e lingúistas trabalham para tornar as linguagens de programa- ção o mais próximas possível da linguagem natural. Podemos distin- Buir entre as linguagens de programação herméricas e muito próximas da estrutura material do computador (linguagens de máquina, assem- blers) e as linguagens de programação “avançadas”, menos dependen- Cibercultura 41 tes da estrutura do hardware e mais próximas do inglês, tais como Fortran, Lisp, Pascal, Prolog, C etc. Hoje há algumas linguagens de “quarta geração”, que permitem a criação de programas por meio do desenho de esquemas e manipulação de ícones na tela. São criados am- bientes de programação que fornecem “blocos” básicos de software prontos para montagem. O programador passa, portanto, menos tem- po codificando e dedica a maior parte de seu esforço à concepção da arquitetura do software. Há “linguagens de autoria” que permitem que pessoas não-especializadas criem por conta própria alguns programas simples, bases de dados multimídia ou programas pedagógicos. Os PROGRAMAS Os programas aplicativos permitem ao computador prestar ser- viços específicos a seus usuários. Vamos mostrar alguns exemplos clás- sicos, Alguns programas calculam automaticamente o pagamento dos empregados de uma empresa, outros emitem faturas para clientes ou permitem o gerenciamento de estoques, enquanto outros ainda são capazes de comandar máquinas em tempo real de acordo com infor- mações fornecidas por sensores. Há sistemas especializados que per- mitem detectar a origem de panes ou dar conselhos financeiros. Como o próprio nome já diz, um editor de textos permite a redação, modifi- cação e organização de textos. Uma planilha mostra uma tabela com números, mantém a contabilidade, ajuda a tomar decisões de ordem financeira ou monetária. Um gerenciador de bancos de dados permi- te a criação de um ou mais bancos de dados, a localização rápida da informação pertinente segundo diversas chaves de pesquisa, bem como a apresentação da informação de vários ângulos de acordo com as necessidades. Um programa gráfico possibilita que gráficos impecá- veis sejam produzidos de forma simples. Um programa de comunica- ção permite o envio de mensagens e o acesso a informações armaze- nadas em outros computadores etc. Os programas aplicativos estão cada vez mais abertos à personalização evolutiva das funções, sem que seus usuários sejam obrigados a aprender a programar. Os sistemas operacionais são programas que gerenciam os recur- sos dos computadores (memória, entrada e saída etc.) e organizam a mediação entre o hardware é o software aplicativo. O software apli- cativo não se encontra, portanto, em contato direto com o hardware. É por isso que um mesmo aplicativo pode funcionar em diferentes ti- pos de hardware, desde que tenham o mesmo sistema operacional. 42 Pierre Lévy uI O DIGITAL OU A VIRTUALIZAÇÃO DA INFORMAÇÃO O Bezerro de Ouro Não muito longe da basílica onde se encontram os mo- numentos funerários dos antigos reis da França, em Saint- Denis, ocorre a cada dois anos uma manifestação consagra- da às artes digitais: Artifices. Em Novembro de 1996, o principal artista convida- do era Jeffrey Shaw, pioneiro das artes do virtual e diretor, na Alemanha, de um importante instituto destinado à cria- ção nas “novas mídias”. Ào entrar na exposição, a primeira coisa que você veria seria a instalação “Bezerro de Ouro”. No meio da primeira sala, um pedestal claramente feito para receber uma está- tua não sustenta nada além do vazio. À estátua está ausen- te. Um tela plana se encontra sobre uma mesa ao lado do pedestal. Ao pegá-la, você descobre que esta tela de cristal líquido comporta-se como uma “janela” para a sala: ao direcioná-la para as paredes ou teto, você vê uma imagem digital das paredes ou do teto. Au apontá-la para a porta de entrada, aparece um modelo digital da porta. E quando atela é virada na direção do pedestal, você é surpreendido por uma maravilhosa estátua, brilhante, magnificamente esculpida, do bezerro de ouro, o qual só “existe” virtual. mente, Ao andar em volta do pedestal, mantendo a tela direcionada para o vazio acima dele, é possível admirar todos os ângulos do bezerro de ouro. Aproximando-se, ele aumenta; afastando-se, diminui. Se você levar a tela bem para cima do pedestal, entrará dentro do bezerro de ouro e descobrirá seu segredo: o interior é vazio. Só existe en- quanto aparência, sobre a face externa, sem reverso, sem interioridade. Qualo propósito desta instalação? Em primeiro lugar, é crítica: O virtual é o novo bezerro de ouro, o novo ídolo Cibercultura 45 de nossos tempos. Mas também é clássica, pois a obra nos traz a percepção concreta da natureza de todos os ídolos: uma entidade que não está realmente presente, uma aparên- cia sem consistência, sem interioridade. Aqui, O que se busca não é tanto a ausência de plenitude material, e sim o vazio de presença e de interioridade viva, subjetiva. O ídolo não tem existência por si mesmo, somente a que lhe é atribuída por seus adoradores. A relação com o ídolo é gerada pelo próprio dispositivo da instalação, uma vez que o bezerro de ouro só aparece graças à atividade do visitante. Em um plano no qual os problemas estéticos juntam- se às interrogações espirituais, a instalação de Jeffrey Shaw questiona a noção de representação. Na verdade, o bezer- ro de ouro obviamente remete ao Segundo Mandamento, que proíbe não só a idolatria mas também a fabricação de imagens e estátuas “que tenham a forma daquilo que se encontra no céu, na terra ou nas águas”. Podemos dizer que Jeffrey Sbaw esculpin uma estátua ou desenhou uma ima- gem? Sen bezerro de ouro é uma representação? Mas não há nada sobre o pedestal! A vida e a interioridade sensível daquilo que voa nos ares ou corre pelo solo não foram cap- tadas por uma forma morta. Não é um bezerro, exaltado por uma matéria tida como preciosa, que a instalação co- loca em cena, mas sim o próprio processo da representação. No lugar onde, em sentido estrito, há apenas o nada, a ati- vidade mental e sensório-motora do visitante faz surgir uma imagem que, quando suficientemente explorada, acaba por revelar sua nulidade. Este capítulo é dedicado às novas espécies de mensagens que proliferam nos computadores e nas redes de computadores, tais como hipertextos, hiperdocumentos, simulações interativas e mundos vir- tuais. Como vou tentar mostrar, a virtualidade, compreendida de forma muito geral, constitui o traço distintivo da nova face da informação. Uma vez que a digitalização é o fundamento técnico da virtualidade, uma explicação de seus princípios e funções virá após a apresentação da noção de virtual que inicia este capítulo. 46 Pierre Lévy SOBRE O VIRTUAL EM GERAL À universalização da cibercultura propaga a co-presença e a in- teração de quaisquer pontos do espaço físico, social ou informacional. Neste sentido, ela é complementar a uma segunda tendência funda- mental, a virtualização!. A palavra “virtual” pode ser entendida em ao menos três senti- dos: o primeiro, técnico, ligado à informática, um segundo corrente e um terceiro filosófico? O fascínio suscitado pela “realidade virtual” decorre em boa parte da confusão entre esses três sentidos. Na acepção filosófica, é virtual aquilo que existe apenas em potência e não em ato, o campo de forças e de problemas que tende a resolver-se em uma atua- lização. O virtual encontra-se antes da concretização efetiva ou for- mal (a árvore está virtualmente presente no grão). No sentido filosófico, o virtual é obviamente uma dimensão muito importante da realidade. Mas no uso corrente, a palavra virtual é muitas vezes empregada para significar a irrealidade — enquanto a “realidade” pressupõe uma efe- tivação material, uma presença tangível. A expressão “realidade vir- tual” soa então como um oxímoro, um passe de mágica misterioso. Em geral acredita-se que uma coisa deva ser ou real ou virtual, que ela não pode, portanto, possuir as duas qualidades ao mesmo tempo. Contudo, a rigor, em filosofia o virtual não se vpõe ao reaí mas sim ao atual: virtualidade e atualidade são apenas dois modos diferentes da realidade. Se a produção da árvore está na essência do grão, então a virtualidade da árvore é bastante real (sem que seja, ainda, atual). É virtual roda entidade “desterritorializada”, capaz de gerar diver- sas manifestações concretas em diferentes momentos e locais determina- dos, sem contudo estar ela mesma presa a um lugar ou tempo em parti- cular. Para usar um exemplo fora da esfera técnica, uma palavra é uma entidade virtual. O vocábulo “árvore” está sempre sendo pronuncia- do em um local ou outro, em determinado dia numa certa hora, Cha- maremos a enunciação deste elemento lexical de “atualização”. Mas ! Neste ponto, gostaria de remeter o leitor a minha obra O que é o virtual, São Paulo, Editora 34, 1997, que aborda a questão de um ponto de vista filosófi- co e antropológico. 2 Ainda há outros sentidos para esta palavra em ótica, mecânica etc. Assinalo, além de meu livro O gue é o virtual, op. cit., as fascinantes análises de René Berger em L'origine dy futur, Paris, Le Rocher, 1996, sobretudo no capítulo “Le virruel jubilatoire”, além da obra de Jean-Cler Martin, L image virtuelle, Paris, Kimé, 1996. Cibercultura 47 as características virtualizante e desterritorializante do ciberespaço fazem dele o vetor de um universo aberto. Simetricamente, a extensão de um novo espaço universal dilara o campo de ação dos processos de virtualização. O DIGITAL Digitalizar uma informação consiste em traduzi-la em números. Quase todas as informações podem ser codificadas desta forma. Por exemplo, se fizermos com que um número corresponda a cada letra do alfabeto, qualquer texto pode ser transformado em uma série de números. Uma imagem pode ser transformada em pontos ou pixels (piciure elements). Cada um destes pontos pode ser descrito por dois números que especificam suas coordenadas sobre o plano e por outros três nú- meros que analisam a intensidade de cada um dos componentes de sua cor (vermelho, azul e verde por síntese aditiva). Qualquer imagem ou segiiência de imagens é portanto traduzível em uma série de números. Um som também pode ser digitalizado se for feita uma amos- tragem, ou seja, se forem tiradas medidas em intervalos regulares (mais de 60 mil vezes por segundo, a fim de capturar as altas frequências). Cada amostra pode ser codificada por um número que descreve o si- nal sonoro no momento da medida. Qualquer segiiência sonora ou musical pode ser, portanto, representável por uma tista de números. As imagens e os sons também podem ser digitalizados, não apenas ponto a ponto ou amostra por amostra mas também, de forma mais eco- nômica, a partir de-descrições das estruturas globais das mensagens ico- nográficas ou sonoras. Para tanto, usamos sobretudo funções senvidais para o som e funções que geram figuras geométricas para as imagens. Em geral, não importa qual é o tipo de informação ou de mensa- gem: se pode ser explicitada ou medida, pode ser traduzida digitalmente?. 3 Por exemplo, uma imagem será decomposta em pixels. Cada pixcl de uma imagem a cores é representado em um computador por cinco números: dois nú- meros para as coordenadas do ponto é três números para a intensidade de cada uma das três componentes elementares da cor, Essa codificação pode gerar per- das de informação. Quando mais fino for a “grau de resolução” da codificação, menos perdas haverá. Por exemplo, uma imagem pode ser codificada em 2.56 pixels 1256 x 5 números), ou em 1024 pixels (1024 x $ números). A perda de informa- ção será menor no segundo caso. A partir de um certo grau de resolução, contu- do, a perda de informação não é mais perceptível por seres humanos. so Pierre Léwy Ora, todos os números podem ser expressos em linguagem binária, sob forma de 0 e 1. Portanto, no limite, todas as informações podem ser representadas por esse sistema, Há três motivos pelos quais essa bi- narização interessa. Por um lado, há dispositivos técnicos bastante diversos que po- dem gravar e transmitir números codificados em linguagem binária. De fato, os números binários podem ser representados por uma gran- de variedade de dispositivos de dois estados (aberto ou fechado, pla- no ou furado, negativo ou positivo etc.). É assim que os dígitos cir- culam nos fios elétricos, informam circuitos eletrônicos, polarizam fitas magnéticas, se traduzem em lampejos nas fibras óticas, micros- sulcos nos discos óticos, se encarnam em estruturas de moléculas bio- lógicas etc. A seguir, as informações codificadas digitalmente podem ser transmitidas e copiadas quase indefinidamente sem perda de informa- ção, já que a mensagem original pode ser quase sempre reconstituída integralmente apesar das degradações causadas pela transmissão (te- lefônica, hertziana) ou cópia, O que não é, evidentemente, o caso dos sons e imagens gravados de forma analógica, os quais se degradam irremediavelmente a cada nova cópia ou transmissão. À codificação analógica de uma informação estabelece uma relação proporcional entre um certo parâmetro da informação a ser traduzida e um certo parâmetro da informação traduzida. Por exemplo, o votume de um som será codificado pela intensidade de um sinal elétrico (ou a cria- ção de um sulco em um disco de vinil): quanto maior o volume, mais intenso o sinal elétrico (ou mais fundo o sulco). A informação ana- lógica é, portanto, representada por uma segiiência contínua de va- tores. Por outro lado, a informação digital usa apenas dois valores, nitidamente diferenciados, o que torna a reconstituição da informa- ção danificada incomparavelmente mais simples, graças a diversos processos de controle da integridade das mensagens. s importante, os números codificados em bi- nário podem ser objeto de cálculos aritméticos e lógicos executados por circuitos eletrônicos especializados. Mesmo se falamos muitas vezes de “imaterial” ou de “virtual” em relação ao digital, é preciso insistir no fato de que os processamentos em questão são sempre operações físicas elementares sobre os representantes físicos dos O e 1: apagamen- to, substituição, separação, ordenação, desvio para determinado en- dereço de gravação ou canal de transmissão. Por último, o mai Cibercultura s1 Após terem sido tratadas, as informações codificadas em biná- rio vão ser traduzidas (automaticamente) no sentido inverso, e irão manifestar-se como textos legíveis, imagens visíveis, sons audíveis, sensações tácteis ou proprioceptivas, ou ainda em ações de um robô ou outro mecanismo. Mas por que há uma quantidade crescente de informações sen- do digitalizadas e, cada vez mais, sendo diretamente produzidas nes- ta forma com os instrumentos adequados? À principal razão é que a digitalização permite um tipo de tratamento de informações eficaz e complexo, impossível de ser executado por outras vias. PROCESSAMENTO AUTOMÁTICO, RÁPIDO, PRECISO, EM GRANDE ESCALA A informação digitalizada pode ser processada automaticamen- te, com um grau de precisão quase absoluto, muito rapidamente e em grande escala quantitativa. Nenhum outro processo a não ser o pro- cessamento digital reúne, ao mesmo tempo, essas quatro qualidades. A digitalização permite o controle das informações e das mensagens “bit a bit”, número binário a número binário, e isso na velocidade de cálculo dos computadores. Comecemos com um exemplo simples, um romance de trezen- tas páginas digitalizado. Por meio de um programa de processamento de textos, posso ordenar a meu computador que substitua codas as ocorrências de “Durand” por “Dupont”. O computador executará a ordem em poucos segundos. Em meu disco rígido, a memória magné- tica permanente do computador onde as informações estão codifica- das em binário, todos os nomes foram alterados quase instantanea- mente. Se o texto tivesse sido impresso, a mesma operação levaria, necessariamente, muito mais tempo. Posso também inverter a ordem de dois capítulos e alterar a numeração das páginas em poucos segun- dos. Posso mudar a fonte dos caracteres, enquanto essa mesma ope- ração com caracteres de chumbo exigiria uma nova composição do tex- to, e assim por diante. Tomemos agora os sons. Uma vez que um trecho tocado ao vio- lino, por exemplo, tenha sido digitalizado, programas específicos de processamento de áudio permitem que o andamento seja retardado ou acelerado sem modificar as frequências dos sons (graves e agudos). Também é possível isolar o timbre do instrumento e usá-lo para tocar outra melodia. Podemos, tocando o mesmo trecho, calcular (e repro- s2 Pierre Lévy nenhum estatuto ontológico ou propriedade estética fundamentalmente diferente de qualquer outro tipo de imagem. Contudo, se considerar- mos não mais uma única imagem (ou um único filme), mas o conjunto de todas as imagens (ou de todos os filmes), diferentes umas das outras, que poderiam ter sido produzidas automaticamente por um compu- tador a partir do mesmo engrama numérico, penetramos em um novo universo de geração dos signos. À partir de um estoque de dados ini- ciais, de uma coleção de descrições ou modelos, um programa pode calcular um número indefinido de diferentes manifestações visíveis, audíveis ou tangíveis, de acordo com a situação presente ou das ne- cessidades dos usuários. O computador, então, não é apenas uma fer- ramenta a mais para a produção de textos, sons e imagens, é antes de mais nada um operador de virtualização da informação. HiPERDOCUMENTOS Um CD-ROM (Compact-Dise Read Only Memory) ou um CD- T(Compact-Disc Interactive) são suportes de informação digital com leitura a laser. Contêm sons, textos € imagens (fixas ou em movimento) que são exibidos em telas de computador no caso dos CD-ROMs, ou em televisões no caso dos CD-I (com a utilização de equipamento espe- cial). Quem consulta um CD-ROM “navega” pelas informações, passa de uma página-tela ou de uma sequência animada para outra indicando com um simples gesto os temas de interesse ou as linhas de leitura que deseja seguir. Esta navegação é feita por meio de “cliques” executa- dos com o mouse sobre ícones na tela, apertando uma tecla do tecla- do, manipulando um controle remoto ou acionando joysticks quan- do se trata de jogos. Enciclopédias, títulos com temas artísticos, mu- sicais ou lúdicos, os CD-ROMs são as formas de hiperdocumento mais conhecidas do público no final dos anos 90. Os CD-ROMs (capazes de conter o texto de uma enciclopédia de trinta volumes) serão em breve substituídos pelos DVD (Digital Video Disc)ó cuja memória, seis vez: superior, poderá comportar um filme de vídeo em “tela cheia”. Se tomarmos a palavra “texto” em seu sentido mais amplo (que não exclui nem sons nem imagens), os hiperdocumentos também po- dem ser chamados de hipertexros. À abordagem mais simples do hiper- $ Não existe, na verdade, um consenso sobre o significado da sigla DVD que tanto pode ser Digital Versatile Disc. mais comum, e Digital Video Disc, confor- me diz o autor. (N. do To Cibercultura texto é descrevê-lo, em oposição a um texto linear, como um texto estruturado em rede. O hipertexto é cons ruído por nós (os elemen- tos de informação, parágrafos, páginas, imagens, sequências musicais etc.) e de links entre esses nós, referências, notas, ponteiros, “botões” indicando a passagem de um nó a outro. Um romance é percorrido, em princípio, da primeira à última li- nha, um filme da primeira à última imagem. Mas como ler uma enci- clopédia? Pode-se começar consultando o sumário ou o índice remissi vo, que nos remete a um ou mais artigos. No final de um artigo, são mencionados outras artigos correlacionados etc. Cada qual entra nesta “navegação” de acordo com os assuntos de seu interesse, e caminha de forma original na soma das informações, usando as ferramentas de orientação que são os dicionários, léxicos, sumário, índice remissivo, atlas, tabela de números e índice de tópicos que são, em si mesmos, pequenos hipertextos. Mantendo ainda a definição de “texto em rede” on de rede de documentação, uma biblioteca pode ser considerada como um hipertexto. Nesse caso, a ligação entre os volumes é mantida pelas remissões, as notas de pé de página, as citações e as bibliografias. Fichários e catálogos constituem os instrumentos de navegação global na biblioteca. Entretanto, o suporte digital traz uma diferença considerável em relação aos hipertexros que antecedem a informática: a pesquisa nos sumários, o uso dos instrumentos de orientação, a passagem de um nó a outro são feitos, no computador, com grande rapidez, da ordem de alguns segundos. Por outro lado, a digitalização permite a associação na mesma mídia e a mixagem precisa de sons, imagens e textos. De acordo com esta primeira abordagem, o hipertexto digital seria definido como informação multimodal disposta em uma rede de navegação rápida e “intuitiva”, Em relação às técnicas anteriores de ajuda à leitura, a digitalização introduz uma pequena revolução copernicana: não é mais o navegador que segue os instrumentos de leitura e se desloca fisicamente no hipertexto, virando as páginas, deslocando volumes pe- sados, percorrendo a biblioteca. Agora é um texto móvel, caleidos- cópico, que apresenta suas facetas, gira, dobra-se e desdobra-se à von- tade frente ao leitor. Está sendo inventada hoje uma nova arte da edição e da documen- tação, que tenta explorar ao máximo essa nova velocidade de nave- gação entre as massas de informação que são condensadas em volu- mes cada vez menores. i- 56 Pierre Lévy De acordo com uma segunda abordagem, complementar, a ten- dência contemporânea à hipertextualização dos documentos pode ser definida como uma tendência à indeterminação, à mistura das funções de leitura e de escrita. Pensemos inicialmente a coisa do ponto de vista do leitor. Se definirmos um hipertexto como um espaço de percurso para leituras possíveis, um texto aparece como uma leitura particular de um hipertexto. O navegador participa, portanto, da redação do texto que lê. Tudo se dá como se o autor de um hipertexto constituíss matriz de textos potenciais, o papel dos navegantes sendo o de realizar alguns desses textos colocando em jogo, cada qual à sua maneira, a combinatória entre os nós. O hipertexto opera a virtualização do texto. O navegador pode tornar-se autor de maneira mais profunda do que ao percorrer uma rede preestabelecida: ao participar da estru- turação de um texto. Não apenas irá escolher quais links preexistentes serão usados, mas irá criar novos links, que terão um sentido para ele e que não terão sido pensados pelo criador do hiperdocumento. Há sistemas igualmente capazes de gravar Os percursos e reforçar (tornar mais visíveis, por exemplo) ou enfraquecer os links de acordo com a forma pela qual são percorridos pela comunidade de navegadores. Finalmente, os leitores podem não apenas modificar os links, mas também acrescentar ou modificar nós (textos, imagens erc.), conectar um hiperdocumento a outro e dessa forma transformar em um único documento dois hipertextos que antes eram separados ou, de acordo com o ponto de vista, traçar links hipertextuais entre um grande núme- ro de documentos. Atente-se para o fato de que essa prática encontra- se hoje em pleno desenvolvimento na Internet, sobretudo na Web*, Nestas duas últimas modalidades de navegação, os documentos não se encontram mais fixados em um CD-ROM, mas são acessíveis on- line para uma comunidade de pessoas. Quando o sistema de visuali- zação em tempo real da estrutura do hipertexto (ou sua cartografia dinâmica) é bem concebido, ou quando a navegação pode ser efetua- da de forma natural e intuitiva, os hiperdocumentos abertos acessíveis por meio de uma rede de computadores são poderosos instrumentos de escrita-leitura coletiva. uma $ Em sentido estrito, essa “prática” só é possível na Web, uma vez que a Internet, em si, é apenas o suporte físico para a informação. Quase todos os ou- tros serviços hoje utilizados na Internet e que não fazem parte da Web (ou seja. não usam HTML, como é o caso de FTP ou do mIRC) não permitem a estruturação de hipertextos de forma alguma. (N. do T.) Cibercultura 57 60 Em quase toda a parte, as ilustrações desdobram o te- ma da interatividade. Em um exemplo, um quadro se trans- forma em função do deslocamento do olhar do observador (a imagem da face do espectador é captada por uma câme- ra oculta e analisada por um programa), Em outro, explo- ra-se um ambiente segurando na mão uma grande bola se- melhante ao globo ocular. O dispositivo “enxerga” como se tivéssemos um olho na extremidade da mão. Em um ter- ceiro exemplo, atua-se sobre os movimentos de um enxame de borboletas em computação gráfica, deslocando o facho de uma lanterna sobre a superfície de projeção da imagem. Seguindo os links bipertextuais, você chega ao texto de David Le Breton, que acredita que as tecnologias virtuais fazem com que o corpo desapareça, ou então o reificam, e que são apenas a continuação do velho projeto ocidental, machista e judaico-cristão de dominação da natureza. Clara- mente, David Le Breton não explorou Osmose. Na parte inferior da tela, as faces de alguns conferencistas são exibidas por alguns segundos, substituídas em seguida por outras faces de conferencistas. Ao clicar sobre a face de Derrick de Kerckove, com curiosidade, sua voz gravada explica que as tecnologias do virtual e da telepresença estendem e exaltam o sentido do toque. Algo que contradiz o que você acabara de ler. O CD-ROM foi organizado de forma a simular uma espécie de conversa fictícia entre os conferencistas, cada um citando exemplos que apóiam suas teses, enquanto o nave- gador permanece mestre do ritmo e dos rumos dessa con- versa virtual, mestre do degelo desse discurso plural grava- do em disco. Para que os exploradores não andem em cír- cultos, os links já seguidos não são exibidos novamente na mesma sessão de consulta. A imagem de um homem se transforma progressiva e imperceptivelmente na imagem de um macaco: morphing. O digital é o meio das metamorfoses. Voxelmann, o atlas anatômico virtual, permite a ob- tenção de todos os cortes imagináveis sobre o modelo digi- tal de um corpo. Incrível a complexidade dos seios. Five Into One, a cidade virtual de Matt Mulican, co- loca no espaço tridimensional um conceito filosófico, uma Pierre Lévy cosmologia abstrata. A imagem virtual anuncia uma pas- sagem para o sensível do mundo das idéiaslO? O bordo japonês modelado pelo Centro internacional de pesquisas sobre agricultura e desenvolvimento (Cirad) surge primeiro em seu aspecto invernal, com o vento sopran- do na trilha sonora. Depois os brotos nascem, os galhos são cobertos por um verde tenro, os pássaros gorjeiam. A fo- lhagem se torna mais abundante, mais densa, seu verde es- curece, enquanto ressoa o coaxar dos sapos, característico das noites de verão. Finalmente as folhas ficam amarelas, vermelhas, caem, e chega de novo o inverno. Poesia simples das estações, atraente contração do tempo evocada pela computação gráfica. O autor ou, na maioria dos casos, a equipe de criação usam além disso máquinas, programas e características de interfaces preexistentes na constituição de seu hiperdocumento. Este resulta de uma navega- ção particular entre informações, materiais, programas disponíveis. O hiperdocumento editorado, portanto, é em si mesmo um percurso em meio a um hiperdocumento mais vasto e mais vago. A escrita c a leitura trocam seus papéis. Aquele que participa da estruturação de um hipertexto, do traçado pontilhado das possíveis dobras do sentido, já é um feitor. Simetricamente, aquele que atualiza um perenrso, ou manifesta determinado aspecto da reserva documental, contribui para a redação, finaliza temporariamente uma escrita inter- minável. Os cortes e remissões, os caminhos de sentidos originais que o leitor inventa podem ser incorporados à própria estrurura dos corpus. Com o hipertexto, toda leitura é uma escrita potencial. MULTIMÍDIA OU UNIMÍDIA? A palavra “multimídia” gera tanta confusão que é necessário, antes de falarmos desse assunto, definir algumas palavras-chave do universo da informação e da comunicação. A mídia é o suporte ou veículo da mensagem. O impresso, o rá- dio, a televisão, o cinema ou a Internet, por exemplo, são mídias. 19 Que a imagem virtual seja a passagem para o sensível do mundo das idéias postulado pela filosofia, esta é uma das teses do interessante livro de Jean-Cler Martin, op. cit. Cibercultura 6 A recepção de uma mensagem pode colocar em jogo diversas modalidades perceptivas. O impresso coloca em jogo sobretudo a vi- são, em segundo lugar o tato. Desde que o cinema é falado, ele envol- ve dois sentidos: visão e audição. As realidades virtuais podem colo- car em jogo a visão, a audição, o tato e a cinestesia (sentido interno dos movimentos do corpo). Uma mesma modalidade perceptiva pode permitir a recepção de diversos tipos de representações. Por exemplo, o impresso (que mobi- liza apenas a visão) carrega texto e imagem. O disco de áudio (que utiliza apenas a audição) permite a transmissão da palavra e da música. A codificação, analógica ou numérica, refere-se ao sistema fun- damental de gravação e transmissão das informações. O disco de vi- nil codifica o som da forma analógica, ao passo que o CD de áudio codifica-o digitalmente. O rádio, a televisão, o cinema e a fotografia podem ser analógicos ou digitais. O dispositivo informacional qualifica a estrutura da mensagem ou o modo de relação dos elementos de informação. A mensagem pode ser linear (como ocorre com a música normal, o romance ou o cine- ma) ou em rede, Os hiperdocumentos codificados digitalmente não foram os criadores da estrutura em rede já que, como vimos, um dicio- nário (no qual cada palavra nos remete implicitamente a outras pata- vras e que em geral não lemos do início ao fim), uma enciclopédia (com seu índice, tesauro e remissões múltiplas), uma biblioteca (com seus fichários e referências cruzadas de um livro para outro) já possuem uma estrutura reticulada. O ciberespaço fez com que surgissem dois dispo- sitivos informacionais que são originais em relação às mídias prece- dentes: o mundo virtual e a informação em fluxo. O mundo virtual dispõe as informações em um espaço contínuo — e não em uma rede — e o faz em função da posição do explorador ou de seu representan- te dentro deste mundo (princípio de imersão). Neste sentido, um vi- deogame já é um mundo virtual. A informação em fluxo designa da- dos em estado contínuo de modificação, dispersos entre memórias e canais interconectados que podem ser percorridos, filtrados e apresen- tados ao cibernauta de acordo com suas instruções, graças a progra- sistemas de cartografia dinâmica de dados ou outras ferramen- tas de auxílio à navegação. Note-se que o mundo virtual e a informa- ção em fluxo tendem a reproduzir em grande escala, e graças a supor- tes tecnicamente avançados, uma relação “não-midiatizada” com a in- formação. A noção de dispositivo informacional é, em princípio, in- mi 62 Pierre Lévy sentido deve ser “multimodal”, o termo não descreve suficientemente bem a especificidade deste novo suporte, já que uma enciclopédia, ou alguns livros manipuláveis para crianças, ou brochuras ilustradas acom- panhadas por fitas cassete (tais como os métodos de ensino de línguas) já são multimodais (texto, imagem, som, tato), ou mesmo multimídia. Sendo rigoroso, seria preciso definir os CD-ROMs e CD-] como do- cumentos multimodais interativos de suporte digital ou, de forma breve, como hiperdocumentos. Em segundo lugar, a palavra “multimídia” remete ao movimen- to geral de digitalização que diz respeito, de forma mais imediata ou mais distante, às diferentes mídias que são a informática (por defini- ção), o telefone (em andamento), os discos musicais (já feito), a edi- ção (parcialmente realizado com os CD-ROMs e CD interativos), o rádio, a fotografia (em andamento), o cinema e a televisão. Se a digi- talização encontra-se em marcha acelerada, a integração de todas as mídias continua sendo, em contrapartida, uma tendência a longo prazo. É possível, por exemplo, que a televisão, mesmo digital e mais “in- terativa” que atualmente, ainda continue por bastante tempo como uma mídia relativamente distinta. O termo “multimídia” é corretamente empregado quando, por exemplo, o lançamento de um filme dá lugar, simultaneamente, ao lançamento de um videogame, exibição de uma série de televisão, ca- misetas, brinquedos etc. Neste caso, estamos de fato frente a uma “estratégia multimídia”. Mas se desejamos designar de maneira clara a confluência de mídias separadas em direção à mesma rede digital integrada, deveríamos usar de preferência a palavra “unimídia”. O termo multimídia pode induzir ao erro, já que parece indicar uma variedade de suportes ou canais, ao passo que a tendência de fundo vai, ao contrário, rumo à interconexão e à integração. Em resumo, quando ouvimos ou lemos o termo “multimídia”, em um contexto no qual ele não parece designar um tipo particular de suporte (ver a discussão sobre os CD-ROMs) ou de processamento, é necessário ser caridoso e atribuir ao enunciador a intenção de designar um horizonte de unimídia multimodal, ou seja, a constituição progres- siva de uma estrutura de comunicação integrada, digital e interativa. Entim, a palavra “multimídia”, quando empregada para desig- nar a emergência de uma nova mídia, parece-me particularmente ina- dequada, já que chama atenção sobre as formas de representação (tex- tos, imagens, sons etc.) ou de suportes, enquanto a novidade princi- Cibercultura 65 pal se encontra nos dispositivos informacionais (em rede, em fluxo, em mundos virtuais) e no dispositivo de comunicação interativo e cominitários ou, em outras palavras, em um modo de relação entre as pessoas, em uma certa qualidade de laço social. SIMULAÇÕES Antes do primeiro vôo de um avião, é recomendável testar, de alguma forma, o modo pelo qual suas asas irão reagir aos ventos, à pressão do ar € às turbulências atmosféricas. Por razões evidentes de custo, na verdade seria preferível ter uma idéia da resistências das asas antes de construir um protótipo. Para tanto, é possível construir um modelo em escala do avião e submetê-lo a ventos violentos em um túnel de vento. Durante muito tempo, este foi o procedimento adotado. Com o aumento da potência de cálculo dos computadores e a redução de seu custo, tornou-se agora mais rápido e mais barato fornecer ao com- putador uma descrição do avião, uma descrição do vento e fazer com que ele calcule, a partir desses dados, uma descrição do efeito do ven- to sobre as superfícies de sustentação. Dizemos então que o computa- dor simulou a resistência do ar para o avião. Para que a resposta do computador seja correta, é preciso que as descrições fornecidas, tan- to as do avião como as do vento, sejam rigorosas, precisas e coeren- tes. Chamamos de modelos essas descrições rigorosas dos objetos ou fenômenos a serem simulados. O resultado da simulação pode ser retornado como uma série de números indicando, por exemplo, a pressão máxima por centímetro quadrado das asas. Mas o mesmo resultado pode ser mostrado atra- vés de imagens representando a superfície do avião, onde cada qua- drado desta recebe uma cor em função da maior pressão a que foi submetido. Em vez de uma imagem fixa, o sistema de simulação pode exibir uma representação em três dimensões, que o engenheiro pode girar à vontade na tela, a fim de observar a superfície do avião sob to- dos os pontos de vista possíveis. O sistema também pode apresentar uma representação dinâmica, como um desenho animado, visualizando os fenômenos de turbilhonamento, a pressão exercida, a temperatura e outras variáveis importantes (a critério do usuário) à medida que o vento se torna cada vez mais forte, Finalmente, o sistema de simula- ção permite ao engenheiro modificar facilmente certos parâmetros da descrição do vento, ou a forma e as dimensões do avião, e também visualizar imediatamente o efeito dessas modificações. Passamos sem 66 Pierre Lévy sentir da noção simples de simulação numérica à noção de simulação gráfica interativa. O fenômeno simulado é visualizado, podemos atuar em tempo real sobre as variáveis do modelo e observar imediatamente na tela as transformações resultantes. Podemos simular de forma gráfica e interativa fenômenos muito complexos ou abstratos, para os quais não existe nenhuma “imagem” natural; dinâmica demográfica, evo- lução de espécies biológicas, ecossistemas, guerras, crises econômicas, crescimento de uma empresa, orçamentos etc, Neste caso, a modela- gem traduz de forma visual e dinâmica aspectos em geral não-visíveis da realidade e pertence, portanto, a um tipo particular de encenação. Tais simulações podem servir para testar fenômenos ou situações em todas suas variações imagináveis, para pensar no conjunto de con- segiiências « de implicações de uma hipótese, para conhecer melhor objetos ou sistemas complexos ou ainda para explorar universos fic- tícios de forma lúdica. Repetimos que todas as simulações baseiam-se em descrições ou modelos numéricos dos fenômenos simulados e que elas valem tanto quanto as descrições. Lugares A segunda instalação de Jeffrey Shaw em Artífices, em 1996, chama-se “Places” em inglês ou “Lugares” em por- tuguês. No centro de uma grande sala em formato cilíndri- co encontra-se uma torre sobre a qual o visitante pode gi- rar uma espécie de canhão que projeta sobre a parede cir- cular, usada como tela, uma imagem de 120 graus. Após familiarizar-se com o manuseio do equipamento (virar à es- querda ou direita, avançar ou recuar na imagem), o visitante começa a explorar o universo que lhe é mostrado. Trata-se de um complexo de doze cilindros achatados, comparáveis em sua forma à sala onde se encontra a instalação. Quan- do o visitante consegue penetrar (virtualmente) em um dos cilindros, um controle especial permite que ele se coloque automaticamente no centro e efetue uma panorâmica. Exe- cutando uma rotação completa, o canhão de imagens pro- jeta na parede da sala o panorama “contido” no cilindro. Descobre-se, por exemplo, uma paisagem industrial com grandes reservatórios de gás, gasolina e petróleo ou, em outro cilindro, uma visão magnífica de cumes cobertos com neve e florestas alpinas. Note-se que o visitante, em cima Cibercultura 67 pestivos dos seres vivos perturbando a ordem simbólica e que evocam esta frase do Talmude: “Deus é à sombra do homem. ESCALA DOS MUNDOS VIRTUAIS Alguns sistemas de informação são concebidos: — para sirular uma interação entre uma situação dada e uma pessoa, — para permitir que o explorador humano tenha um controle rígido e em tempo real sobre seu representante no modelo da situa- ção simulada. Esses sistemas dão ao explorador do modelo a sensação subjetiva (embora a ilusão completa seja muito rara) de estar em interação pes- soal e imediata com a situação simulada. No exemplo da simulação da resistência das asas à pressão do vento, embora o explorador pudesse alterar o ângulo de visão, a vi- sualização das variáveis pertinentes, a velocidade do vento ou a for- ma do avião, ele mesmo não estava representado no modelo, c agia do exterior. Vamos continuar na aviação e pensar agora em um simu- lador de vôo. Em um sistema desse tipo, o aprendiz de piloto se em- contra em uma cabine de pilotagem que se parece com as cabines reais. Consulta mostradores e telas idênticos aos que estão presentes nas cabines de verdade. Segura o manche e controles parecidos com os de um avião que voe. Mas em vez de comandar o vôo de um avião, seus atos alimentam com dados um programa de simulação. Em função do fluxo de dados fornecido pelo aprendiz de piloto, bem como de mo- delos digitais muito precisos do avião e do lugar geográfico, o programa vai calcular a posição, a velocidade e a direção que um avião de ver- dade teria em resposta aos controles. Graças a esses cálculos efetuados em altíssima velocidade, o sistema de simulação projeta na tela a pai- sagem exterior que o piloto veria, exibe nos mostradores os números que ele leria erc. A realidade virtual A “realidade virtual”, no sentido mais forte do termo, especifica um tipo particular de simulação interativa, na qual o explorador tem a sensação física de estar imerso na situação definida por um banco de dados. O efeito de imersão sensorial é obrido, em geral, pelo uso de um capacete especial e de datagloves. O capacete possui duas telas 70 Pierre Lévy colocadas a poucos milímetros dos olhos do usuário e que lhe dão uma visão estercoscópica. Às imagens exibidas nas telas são calculadas em tempo real em função dos movimentos de cabeça do explorador, de forma que ele possa conhecer o modelo digital como se estivesse situado “dentro” ou “do outro lado da tela”. Fones estéreo completam a sensa- ção de imersão. Por exemplo, um som ouvido à esquerda ficará à direita após uma volta de 180 graus. As datagloves permitem a manipulação de objetos virtuais. Em outras palavras, o explorador vê e sente que a imagem de sua mão no mundo virtual (sua mão virtual) é comandada pelos movimentos efetivos de sua mão, e pode modificar o aspecto ou a posição de objetos virtuais. Movimentos simples da mão transformam o conteúdo da base de dados, e essa modificação é devolvida ao explo- rador imediatamente de forma sensível. O sistema calcula em tempo real as imagens e os sons resultantes da modificação executada na descrição digital da situação e remete essas imagens e sons às telas e fones do capacete do explorador. Diversos processos técnicos (mecâni- cos, magnéticos, óticos) são usados para captar os movimentos da cabe- ça e da mão do explorador. Um grande poder de processamento é ne- cessário para calcular imagens de alta resolução em tempo real, o que explica a característica esquemática que muitos dos “mundos virtuais” possuíam em 1996, Há várias pesquisas em andamento acelerado para melhorar o desempenho visual e sonoro dos sistemas de realidade virtual e dar aos exploradores sensações tácteis e proprioceptivas mais precisas. Ao manter uma interação sensório-motora com o conteúdo de uma memória de computador, o explorador consegue a ilusão de uma “realidade” na qual estaria mergulhado: aquela que é descrita pela me- mória digital. Na verdade, o explorador de uma realidade virtual não pode esquecer que o universo sensorial no qual está imerso é apenas virtual, já que as imagens é o som não terão, por muito tempo ainda, a definição que possuem no cinema, já que há sempre um pequeno atraso entre os movimentos é suas repercussões sensoriais, já que os equipamentos são relativamente pesados e, sobretudo, já que o explo- rador sabe que está interagindo com uma realidade virtual, Assim co- mo o cinema ou a televisão, a realidade virtual é da ordem da conven- ção, com seus códigos, seus rituais de entrada e saída. Não podemos confundir a realidade virtual com a realidade cotidiana, da mesma forma como não podemos confundir um filme ou um jogo com a “ver- dadeira realidade”. Cibercultura a A virtualidade no sentido do dispositivo informacional (sentido mais fraco que o anterior) Um mundo virtual pode simular fielmente o mundo real, mas de acordo com escalas imensas ou minúsculas. Pode permitir ao explo- rador que construa uma imagem virtual muito diferente de sua apa- rência física cotidiana. Pode simular ambientes físicos imaginários ou hipotéticos, submetidos a leis diferentes daquelas que governam o mundo comum. Pode, finalmente, simular espaços não-físicos, dotipo simbólico ou cartográfico, que permitam a comunicação por meio de um universo de signos compartilhados. Um mapa não é uma foto realista, mas uma semiotização, uma descrição úril de um território. Por analogia, um mundo virtual pode ser da família dos mapas e não da família das cópias ou das ilusões. Além disso, o território cartografado ou simulado pelo mundo virtual não é necessariamente o universo físico tridimensional, Pode dizer respeito a modelos abstratos de situação, a universos de relações, a complexos de significações, a conhecimentos, a jogos de hipóteses, até mesmo a combinações híbridas de todos estes “territórios”. Em um sentido mais fraco que o implicado numa ilusão senso- rial “realista”, a noção de mundo virtual não implica, necessariamen- te, a simulação de espaços físicos nem o uso de equipamentos pesa- dos e caros, tais como os capacetes para visão estereoscópica e as datagloves. As duas características distintivas do mundo virtual, em sentido mais amplo, são a imersão e a navegação por proximidade. Os indi- víduos ou grupos participantes são imersos em um mundo virtual, ou seja, eles possuem uma imagem de si mesmos e de sua situação. Cada ato do indivíduo ou do grupo modifica o mundo virtual e sua imagem no mundo virtual, Na navegação por proximidade, o mundo virtual orienta os atos do indivíduo ou do grupo. Além dos instrumentos de pesquisa e endereçamento clássicos (índices, links hipertextuais, pes- quisa por palavras-chave etc.), as demarcações, pesquisas e comuni- cações são feitas por proximidade em um espaço contínuo. Um mun- do virtual, mesmo não “realista”, é portanto fundamentalmente or- ganizado de acordo com uma modalidade “táctil” e proprioceptiva (real ou transposta). O explorador de um mundo virtual (não neces- sariamente “realista”) deve poder controlar seu acesso a um imenso banco de dados de acordo com princípios e reflexos mentais análo- gos aos que o fazem controlar o acesso a seu ambiente físico imediato. 72 Pierre Lévy de guerra, nave espacial, central nuclear, refinaria erc.) é impossível listar todas as situações de falha possíveis. O manual contenta-se em apresentar exemplos dos casos mais frequentes e cm indicar princípios de solução de problemas para os outros casos. Na prática, apenas téc- nicos experientes poderão executar os reparos. Por outro lado, na informática, um sistema especializado cm ajuda à solução de problemas da mesma instalação contém, explicitamente, apenas algumas centenas ou milhares de regras (que cabem em pou- cas páginas). Em cada situação particular, o usuário alimenta o siste- ma com “fatos” que descrevem o problema enfrentado. A partir da “base de regras” e dos “fatos”, o programa elabora um raciocínio adaptado e uma resposta precisa (ou um leque de respostas) para a situação do usuário, Desta forma, até mesmo os novatos poderão exe- cutar os reparos. Se fosse preciso imprimir (atualizar previamente) todas as situações, todos os raciocínios e todas as respostas, teríamos um documento de milhões ou bilhões de páginas, impossível de usar. É o caráter virtual do sistema especializado que o torna um instrumento mais avançado do que o simples manual cm papel. Suas respostas, em quantidades praticamente infinitas, preexistem apenas virtualmente, Elas são calculadas e atualizadas no contexto. Um mundo virtual, no sentido amplo, é um universo de possí- veis, calculáveis a partir de um modelo digital. Ao interagir com o mundo virtual, os usuários o exploram e o atualizam simultaneamen- te. Quando as interações podem enriquecer ou modificar o modelo, o mundo virtual torna-se um vetor de inteligência e criação coletivas. Computadores e redes de computadores surgem, então, como a infra-estrutura física do novo universo informacional da virtualidade. Quanto mais se disseminam, quanto maior sua potência de cálculo, capacidade de memória e de transmissão, mais os mundos virtuais irão multiplicar-se em quantidade e desenvolver-se em variedade. Cibercultura 75 IV, A INTERATIVIDADE Para Além das Páginas Ao mesmo tempo fino, delicado e bem-humorado, Beyond Pages de Masaki Fisjibata deve ser considerado unia das mais belas ilustrações das “artes da interatividade” emergentes. Entra-se em um lugar pequeno e fechado. Na frente há uma mesa real sobre a qual encontra-se projetada a ima- gem de um livro. No fundo do aposento há uma projeção da imagem de uma porta fechada, Sentando-se à mesa, pega- se uma espécie de caneta eletrônica, com a qual é possível “tocar” a imagem do livro. A imagem do livro fechado é então substituída pela de mm livro aberto. Como se o livro tivesse sido “aberto”. Que fique bem claro: não bá um ti- vro de papel de verdade para abrir, apenas uma sucessão de duas imagens controlada por um dispositivo interativo. O tivro de Beyond Pages de Masaki Fujibata não é uma imagem fixa clássica, e também não é uma imagem de ani- mação que passa imperturbavelmente, é um objeto estranho, meio signo (é uma imagem), meio coisa (é possivel atuar sobre ele, transformá-lo, explorá-lo dentro de certos limi- tes). Estamos acostumados a interagir com telas graças aos videogames, à Internet e aos CD-ROMs, mas nesse caso a imagem interativa do livro encontra-se sobre uma mesa de madeira e não em uma tela de vídeo. Ao abrir esse estra- nho livro, vemos escrita sobre a página direita a palavra “maçã” em inglês, no alfabeto romano, e em japonês, com caracteres kanji. Até aí, nada demais: signos de escrita so- bre uma página. Mas na página esquerda há a imagem de uma bela maçã vermelha em trompe ['oeil, unia maçã cuja sombra está nitidamente recortada sobre a página imacula- da. Mais ou menos como se a página da direita nos mios- trasse signos e a da esquerda uma coisa. A sensação de que Cibercultura 77 a maçã é realmente uma cuisa colocada sobre a página e não apenas uma imagem é reforçada pelo que se descobre pro- gressivamente “folbeando o livro”: a maçã encontra-se cor- tada na página seguinte, sendo progressivamente consumida à medida que a “leitura” continua, até que só é possível achar, entre as páginas, um caroço. À cada vez que as pági- nas são viradas, ouve-se claramente o som de uma mandi- bula que se fecha sobre um pedaço de maçã, mordendo-a. No entanto, em nenhum momento a ilusão é completa. Sa- be-se que tanto a maçã como o som são gravações. Éim possível comer a maçã. Comer a maça surge como uma me- táfora para “ler um livro”. Algo foi consumido, foi produ- zida uma irreversibilidade, ainda que nada tenha sido alte- rado: as páginas continuam no mesmo lugar, os signos tam- bém. Ao contrário das maçãs, o consumo ou O prazer que possamos ter com os signos não os destroem. Essa oscilação entre signo e coisa, signo que faz baru- Ibo, age, interage e parece esgotar-se como uma coisa, coisa impalpável e indestrutível como um signo, essa oscilação continua até que a “leitura do livro” tenha sido terminada. As pedrinhas que podem ser deslocadas com a caneta ran- gem sobre a imagem do papel. Acionar a imagem de uma maçaneta faz com que seja aberta a porta na parede do fun- do, de onde surge uma garota adorável, nua e sorridente, que aparecerá mais de uma vez. Ao contrário das folhas secas dos herbários, o ramo de folhas verdes que se agita entre as páginas de Beyond Pages ainda é agitado pelo vento e pleno de seiva. A flor ou a folha seca dos berbários está lá, morta, mas bem real, entre as páginas. Beyond Pages nos leva para um além da página onde as imagens “vivas” das coisas vivas parecem surgir de imagens de páginas. No final do livro, os signos aflorados resolvem falar. Os rabiscos transformam-se milagrosamente em escrita japonesa de caligrafia perfeita e claramente pronunciada pelo “livro”. Desta forma, esse livro “fala”. Possui uma voz que o permite ler a si mesmo, e convida-nos a contribuir para sua escrita. Um dos recursos de Beyond Pages é o anel de Moebius, passagem contínua e insensível de uma ordem de realidade Pierre Lévy comum a À e B. B faz o mesmo em relação a A. A informação trans- mitida a cada “golpe” de comunicação é muito mais limitada do que no jogo em realidade virtual, O equivalente do espaço de jogo, ou seja, o contexto ou a situação, compreendendo a posição respectiva e a identidade dos parceiros não é compartilhada por A e B sob forma de uma representação explícita, uma imagem completa c explorável. Isso se deve ao fato de que o contexto, aqui, é a priori ilimitado, en- quanto é circunscrito no jogo; mas também se deve à diferença entre os próprios dispositivos de comunicação. Com o telefone, a imagem reatualizada da situação deve ser constantemente reconstruída pelos parceiros, cada um por si e separadamente. O videofone não muda absolutamente nada, já que o contexto que importa, o universo de significações, a situação pragmática (os recursos, o campo de forças, de ameaças, de oportunidades, o conjunto de coisas que podem afe- tar Os projetos, a identidade ou a sobrevivência dos participantes) não será muito melhor compartilhada se acrescentarmos uma imagem da aparência corporal da pessoa c de seu ambiente físico imediato. Por outro lado, sistemas que permitam o acesso compartilhado e à dis- tância a documentos, fontes de informação ou espaços de trabalho nos aproximam progressivamente da comunicação por um mundo virtual, até aqueles que admitem uma ou mais imagens ativas das pessoas (agentes de software que filtram, infobots, perfis de busca personali- zados e outros). À comunicação por mundos virtuais é, portanto, em certo sentido, mais interativa que a comunicação telefônica, uma vez que implica, na mensagem, tanto a imagem da pessoa como a da situação, que são quase sempre aquilo que está em jogo na comunicação, Mas, em outro sentido, o telefone é mais interativo, porque nos coloca em contato com o corpo do interloentor. Não apenas uma imagem de seu corpo, mas sua voz, dimensão essencial de sua manifestação física. À voz de meu interlocutor está de fato presente quando a recebo pelo telefone. Não escuto uma imagem de sua voz, mas a voz em si. Por meio desse con- tato corporal, toda uma dimensão afetiva atravessa “interativamente” a comunicação telefônica. O telefone é a primeira mídia de telepresença. Hoje, numerosos projetos de pesquisa e de desenvolvimento tentam estender e generalizar a telepresença a outras dimensões corporais: tele- manipulação, imagens tridimensionais dos corpos, realidade virtual, ambientes de realidade ampliada para videoconferências sem impres- são de restrição etc. Cibercultura 8 Reteremos dessa breve reflexão que o grau de interatividade de uma mídia ou de um dispositivo de comunicação pode ser medido em eixos bem diferentes, dos quais destacamos: — as possibilidades de apropriação e de personalização da men- sagem recebida, seja qual for a natureza dessa mensagem, — a reciprocidade da comunicação (a saber, um dispositivo co- municacional “um-um” ou “todos-todos”), — a virtualidade, que enfatiza aqui o cálculo da mensagem em tempo real em função de um modelo e de dados de entrada (ver o ter- ceiro sentido no quadro sobre o virtual, página 74), — a implicação da imagem dos participantes nas mensagens (ver o quarto sentido no quadro sobre o virtual), — a telepresença. Como exemplo, o quadro que se segue cruza dois eixos entre todos os que poderíamos destacar na análise da interatividade. Mídias híbridas « mutantes proliferam sob o efeito da virtua- lização da informação, do progresso das interfaces, do aumento das potências de cálculo e das taxas de transmissão. Cada dispositivo de comunicação diz respeito a uma análise pormenorizada, que por sua vez remete à necessidade de uma teoria da comunicação renovada, ou ao menos a uma cartografia fina dos modos de comunicação. O esta- belecimento dessa carrografia torna-se ainda mais urgente, já que as questões políticas, culturais, estéricas, econômicas, sociais, educativa e até mesmo epistemológicas de nosso tempo são, cada vez mais, con- dicionadas a configurações de comunicação. À interatividade assina- la muito mais um problema, a necessidade de um novo trabalho de observação, de concepção e de avaliação dos modos de comunicação, do gue uma característica simples e unívoca atribuível a um sistema específico. 82 Pierre Lévy Quadro nº 3 Os diferentes tipos de interatividade RELAÇÃO com A MENSAGEM Disposritvo DE COMUNICAÇÃO Mensagem linear nán-alterável em tempo real Interrupção e reorientação do fluxo informacional em tempo real Implicação do participante na mensagem Difusão unilateral Imprensa Rádio Televisão Cinema - Bancos de dados multimodais = Hiperdocumentos fixos - Simulações sem imersão nem possibilidade de modificar o modelo - Videogames com um só participante - Simulações com imersão (simulador vôo) sem modificação possível do modelo Diálogo, reciprocidade Correspondência postal entre duas pessoas — Telefone — Videofone Diálogos através de mundos virtuais, cibersexo Diálogo entre vários participantes Cibercultura — Rede de correspondência = Sistema das publicações em uma comunidade de pesquisa = Correio eletrônico - Conferências eletrônicas — Teleconferência ou videoconferência com vários participantes — Hiperdocumentos abertos acessíveis on-line, frutos da escrita/leitura de uma comunidade — Simulações (com possibilidade de atuar sobre o modelo) como de suportes de debates de uma comunidade - RPG multiusuário no ciberespaço - Videogame em “realidade virtual” com vários participantes - Comunicação em mundos virtuais, negociação contínua dos participantes sobre suas imagens e a imagem de sua situação comum 83 algumas propagandas que não olho por um segundo sequer, já que vou escrever diretamente no espaço destinado a esse fim a seguinte chave de pesquisa: Olaf E Mansis. Isso sig- nifica que pesquiso todos os documentos que possuam ambas as cadeias de caracteres. Alguns segundos após ter iniciado a pesquisa, recebo a resposta: há catorze sites que respondem à minha pergunta. Clicando sobre cada um dos catorze itens da lista que se encontra agora em minha tela, posso acessar diretamente os sites correspondentes. Vou, portanto, olhar pacientemente todos os sites, um a um, Al- guns correspondem a atas de colóquios de medicina muito especializados, em sueco, em alemão e em inglês, nos quais apresentaram-se pessoas chamadas X Mansis e Olaf Y. Tra- ta-se certamente de uma pista falsa, já que o Olaf Mansis que procuramos é um pintor. Após examinar diversos sites sem qualquer pertinência, começamos a perder as esperan- ças, até que, finalmente, caímos no décimo segundo site da lista, pertencente a um marchand canadense, no qual des- cobrimos uma lista de obras vendidas em leilão na qual aparecia uma tela assinada por nosso pintor. Bastante ani- mados, usamos o endereço do marchand para enviar-lhe uma mensagem na qual explicamos nosso problema e pe- dimos que nos dê as coordenadas de Olaf Mansis, caso as tenha. Em um último site, de uma universidade holandesa, bá uma lista de estudantes com seus endereços eletrônicos, na qual diversos Olaf X encontram-se próximos a uma Mar- garet Mansis. Como Olaf Mansis veio da Holanda, é pos- sível que essa seja uma parente, ainda que distante, e que talvez possa nos dar algum indício. Mais uma vez, usamos o correio eletrônico para fazer a pergunta a essa estudante. Dois dias depois, recebemos uma resposta do mar- chand que lamenta não poder nos ajudar. Ele vendeu a obra, mas não conhece as coordenadas do pintor. Uma semana mais tarde, tivemos o prazer de receber uma mensagem ele- trônica de Margaret Mansis, que nos informa ser parente do pintor (uma sobrinha-neta, na verdade), e que aceita nos ajudar, contanto que lhe déssemos alguns detalhes sobre nossa identidade e sobre os motivos de nossa pesquisa. Após uma troca de mensagens, ficamos felizes ao receber as coor- Cibercultura 87 denadas completas de Olaf Mansis, que nossa correspon- dente bavia obtido em um jantar de família. Vemos por esse exemplo que, mesmo quando não é possivel obter a informação diretamente na Internet, pode-se ao menos contatar pes- soas ou instituiç es aptas a fornecê-la. Note-se ainda que essa pesqui- sa nos tomou inicialmente quinze minutos, sem que tivéssemos que sair de casa, custando quinze minutos de um telefonema local, enquanto seria obviamente muito mais dispendioso em termos de tempo, esfor- ço e dinheiro executar um processo que começaria, por exemplo, por uma consulta a todos os catálogos telefônicos do planeta... Note-se, enfim, que o objetivo da operação era o de reaproximar dois amigos que haviam se distanciado. O virtua! não “substitui” o “real”, ele mul- típlica as oportunidades para atualizá-lo. Pilhagem De tempos em tempos visito o site parisiense da Virgin para consultar as críticas (atualizadas todos os meses) dos últimos discos lançados. A música, os livros e os vídeos estão classificados por estilos, e consulto preferencialmente as pá- ginas correspondentes aus estilos “gaia” e “tecno”, Descubro na seleção “gaia” deste mês que Gavin Bryars acaba de lan- car um novo disco: Farewell to Philosophy. Ao lado da rese- nha de cada álbum encontra-se, geralmente, um ícone que per- mite a telerecepção de um trecho sonoro do disco, bem como um ou mais links com sites relacionados aos músicos. Sigo o link que leva ao site de Gavin Bryars, e após alguns segun- dos de espera, posso consultar sua biografia e consultar sua discografia completa. Descubro então que ele gravou muito mais discos do que eu pensava. Anoto os títulos que me pa- recem interessantes, depois retorno ao site da Virgin. É interessante notar que essa possibilidade de aprofun- damento de um tema que tenha sido apenas superficialmente tratado em um site através do link imediato com outro site mais especializado (que pode estar fisicamente situado em qualquer parte do mundo — no caso de Gavin Bryars, na Inglaterra) é uma das grandes originalidades e uma das mais impressionantes vantagens da Web. A partir da página de abertura do site da Virgin para 88 Pierre Lévy a qual voltei agora, sigo um link que leva a um debate so- bre uma notícia atual. Trata-se da condenação do grupo NTM por insulto à polícia. Para estimular a discussão, os editores do site colocaram à disposição dos internautas di- versas canções francesas de todas as épocas que falavam mal da polícia. Meio entretido, meio irritado, leio as contribui- ções do fórum sobre a condenação do NTM. O debate é bastante agitado e, apesar de algumas declarações extrema- das e ponco fundamentadas, encontro depoimentos e idéias muito bem expostas, tanto em um “campo” (a favor da condenação) como no outro. De volta à página de abertu- ra, sigo um link que leva a um museu dadaísta imaginário. Trata-se basicamente de links para sites relativos ao da- daísmo, ao surrealismo e ao letrismo, complementados por fotos de obras de Max Ernst, Marcel Duchamp, Man Ray etc. Encontram-se também notas sobre músicos inspirados pelo dadaísmo como, por exemplo, Frank Zappa, com links que levam a sites especializados na vida e obra dos misi- cos em questão. Entre os diversos pontos de partida para outros sites, destaco os seguintes no museu dadaísta imagi- nário: — o Web Museum (um dos mais antigos e notáveis “museus virtuais” de iniciativa privada, executado por fran- ceses), — o Surrealism Server, — o site From Dada to Wave — diversos sites sobre Alfred Jarry e Ubu, — o site do movimento artístico Fluxus, — um site dedicado à Internacional Situacionista etc. Decido seguir alguns desses links e surpreendo-me ao encontrar no site da Internacional Situacionista uma críti ca a um artigo de Bruno Latour publicado no jornal Libé- ration a respeito do suicídio de Guy Debord (o famoso autor da Sociedade do espetáculo e um dos principais fundado- res da 18), No site do Fluxus! encontro fotos de instalações e rela- tos de performances, cada uma mais estranha do que a ou- “hecpshewwr fluxas.org (N. do T.) Cibercultura 89 ços de discussão e de encontros, mercados, tudo isso interligado, vivo, fluido. Longe de se uniformizar, a Internet abriga a cada ano mais lín- guas, culturas e variedade. Cabe apenas a nós continuar a alimentar essa diversidade e exercer nossa curiosidade para não deixar dormir, enterradas no fundo do oceano informacional, as pérolas de saber e de prazer — diferentes para cada um de nós — que esse oceano contém. O QUE É O CIBERESPAÇO? A palavra “ciberespaço” foi inventada em 1984 por William Gib- son em seu romance de ficção científica Neuromante. No livro, esse termo designa o universo das redes digitais, descrito como campo de batalha entre as multinacionais, palco de conflitos mundiais, nova fronteira econômica e cultural. Em Neuromante, a exploração do ci- berespaço coloca em cena as fortalezas de informações secretas pro- tegidas pelos programas ICE, ilhas banhadas pelos oceanos de dados que se metamorfoseiam e são trocados em grande velocidade ao re- dor do planeta. Alguns heróis são capazes de entrar “fisicamente” nesse espaço de dados para lá viver todos os tipos de aventuras. O ciberespaço de Gibson torna sensível a geografia móvel da informação, normal- mente invisível. O termo foi imediatamente retomado pelos usuários e criadores de redes digitais. Existe hoje no mundo uma profusão de correntes literárias, musicais, artísticas e talvez até políticas que se di- zem parte da “cibercultura”. Eu defino o ciberespaço como o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores. Essa definição inclui o conjunto dos sistemas de comu- nicação eletrônicos (aí incluídos os conjuntos de redes hertzianas e telefônicas clássicas), na medida em que transmitem informações pro- venientes de fontes digitais ou destinadas à digiralização*, Insisto na codificação digital, pois ela condiciona o caráter plástico, fluido, cal- culável com precisão e tratável em tempo real, hipertextual, interativo 4 Nossa definição de ciberespaço aproxima-se, embora seja mais restritiva, daquela fornecida por Esther Dyson, George Gilder, Jay Keyworth e Alvin Toffler em sua Magna Carta for the Knowledge Age in New Perspective Quarterly, 1994, outono, pp. 26-37. Para estes autores, o ciberespaço é a “terra do saber” (“the land of knowledge”), a “nova fronteira” cuja exploração poderá ser, hoje, a tarefa mais importante da humanidade (“the exploration of that land can be the civilization's truest highest calling”) 92 Pierre Lévy e, resumindo, virtual da informação que é, parece-me, a marca distin- tiva do ciberespaço. Esse novo meio tem a vocação de colocar em sinergia e interfacear todos os dispositivos de criação de informação, de gravação, de comunicação e de simulação. A perspectiva da di- gitalização geral das informações provavelmente tornará o ciberespaço o principal canal de comunicação e suporte de memória da humani- dade a partir do início do próximo século. Iremos agora examinar os principais modos de comunicação e de interação possibilitados pelo ciberespaço. É claro que aquilo que podia ser feito pela televisão, rádio ou telefone clássicos também pode ser feito por rádios, televisões ou telefones digitais; não é preciso ex- por em detalhes aquilo que já é conhecido. Irei desenvolver, portan- to, em particular as inovações em relação às grandes técnicas de co- municação anteriores. ACESSO A DISTÂNCIA E TRANSFERÊNCIA DE ARQUIVOS Uma das principais funções do ciberespaço é o acesso a distân- cia aos diversos recursos de um computador. Por exemplo, contanto que eu tenha esse direito, posso, com a ajuda de um pequeno compu- tador pessoal, conectar-me a um enorme computador situado a mi- lhares de quilômetros e fazer com que ele execute, em alguns minutos ou algumas horas, cálculos (cálculos científicos, simulações, síntese de imagens etc.) que meu computador pessoal levaria dias ou meses para executar. Isso significa que o ciberespaço pode fornecer uma potên- cia de cálculo, em tempo real, mais ou menos como as grandes com- panhias de fornecimento de eletricidade distribuem energia. Do pon- to de vista estritamente técnico, não é mais necessário ter um grande computador no local, basta que a potência de cálculo esteja disponí- vel em algum lugar no ciberespaço. Com um terminal convenientemente preparado para esse fim (computador pessoal, televisão avançada, telefone celular especial, PDA etc.) também.me é possível acessar o conteúdo de bancos de dados ou, em geral, a memória de um computador distante. Contanto que eu disponha do software de interface necessário e de uma taxa de trans- missão adequada, tudo acontece como se eu estivesse consultando a memória de meu próprio computador. Se o custo da conexão for bai- xo, não é mais necessário, portanto, dispor da informação no local em que me encontro. Uma vez que uma informação pública se encontra no ciberespaço, cla está virtual e imediatamente à minha disposição, Cibercultura 93 independentemente das coordenadas espaciais de seu suporte físico. Posso não apenas ler um livro, navegar em um hipertexto, olhar uma série de imagens, ver um vídeo, interagir com uma simulação, ouvir uma música gravada em uma memória distante, mas também alimen- tar essa memória com textos, imagens etc. Torna-se possível, então, que comunidades dispersas possam comunicar-se por meio do com- partilbamento de uma telememória na qual cada membro lê e escre- ve, qualquer que seja sua posição geográfica. Uma outra função importante do ciberespaço é a transferência de dados ou upload. Transferir um arquivo consiste em copiar um pacote de informações de uma memória digital para outra, geralmen- te de uma memória distante para a de meu computador pessoal ou aquela do local onde trabalho fisicamente. Claro que a informação transferida do computador do CERN em Genebra para o PC de um estudante de física de Melbourne não desaparecerá do computador do CERN. Esse arquivo pode ser, por exemplo, a última versão atualiza- da de um banco de dados com os resultados das experiências mais recentes do laboratório de física de alta energia, ou um banco de fo- tos das colisões das partículas elementares em uma câmara de bolhas, ou o texto de um artigo científico, on um vídeo didático de apresen- tação das instalações, ou um modelo interativo que permita visualizar a teoria das hipercordas, ou um sistema especializado de ajuda ao diagnóstico de falhas no ciclotron etc. O estudante de Melbourne só poderá copiar todos esses arquivos caso eles tenham sido classifica- dos como de domínio público pelos administradores do computador do CERN, é portanto possam ser acessados por qualquer um. Caso contrário, será preciso saber a senha ou pagas a taxa exigida. Entre todos os arquivos que é possíve! copiar à distância, há ob- viamente os programas em si. Nesse caso, a transferência de arquivos permite a distribuição muito rápida, por intermédio do próprio canal do ciberespaço, de operadores (os programas) que melhoram seu fun- cionamento. Foi assim que grande parte dos programas que otimizam a comunicação entre computadores e a pesquisa de informações no ciberespaço disseminaram-se. O CORREIO ELETRÔNICO As funções de troca de mensagens encontram-se entre as mais importantes e mais usadas do ciberespaço. Cada pessoa ligada a uma rede de computadores pode ter uma caixa postal eletrônica identificada 94 Pierre Lévy texto (às vezes quatro ou cinco) no interior de uma mensa- gem, cada “dobra” tornando-se, de certa forma, o “enve- lope” da anterior. Os programas de correio eletrônico fa- cilitam essa prática pois reproduzem (com uma marca es- pecial no começo de cada linha) automaticamente na répli- ca a mensagem que está sendo respondida. Alguns assinantes da mailing list reclamam contra o abuso dessa prática que incha artificialmente as mensagens, como bolas de neve em uma ladeira, enchendo suas caixas postais. As missivas vêm de todas as partes do mundo, com uma nitida predominância da América do Norte e da Eu- ropa. Como muitas vezes ocorre nas conferências eletrôni- cas, mesmo se houver 250 assinantes (que, portanto, rece- bem as mensagens), apenas cerca de trinta pessoas partici- pam ativamente da conversa e alimentam regularmente a conferência. Ponco a pouco, os receptores da mailing list vão descobrindo o estilo desses animadores naturais, que pro- vavelmente reflete seu caráter. Alguns demonstram mm com- portamento espontâneo, emotivo, e redigem em um inglês descuidado, quase fonético. Outros respondem ponto a pon- to, de forma quase maníaca, aos enunciados de seus corres- pondentes ou compõem, usando uma linguagem clássica, verdadeiros mini-tratados com diversos capítulos e subca- pítulos. Quando as coisas esquentam, moderadores (que imagino serem “mais velhos”) aparecem e tentam acalmar os ânimos. Algumas vezes, quando ares de uma Paris poluída vem bater nas janelas de meu apartamento, quando mens olhos cansados se esforçam para ler os caracteres na tela, um cor- respondente se afasta do assunto da conferência para falar do tempo em Oslo, ou do retiro, sem computador nem aces- so à Net, que ele acaba de fazer nas montanhas do Colorado. Deitado nas encostas floridas, ele sentiu o frescor do vento dos cumes trazendo o aroma dos pinheiros e deixou-se le- var pela pura profundeza do azul celeste. A rotina da conferência é interrompida pela mensagem de um músico australiano, um certo Wesson (este não é seu verdadeiro nome), protestando violentamente contra as ex- periências atômicas francesas no Pacífico. Essa mensagem Cibercultura 97 98 gera diversas respostas nos dias seguintes. Algumas pessoas simpatizam com a causa de Wesson. Qutras lembram-no de que esse não é o objetivo desta mailing list e que há diversos outros fóruns na Internet onde ele poderia discutir o assunto com pessoas interessadas. Ao que outras pessoas respondem que os artistas não podem excluir a priori um assunto de discussão: os artistas sempre estiveram envolvidos nos as- suntos da cidade, que têm agora dimensões planetárias. À discussão fica mais acalorada. Alguns participantes amea- çam cancelar suas inscrições na conferência caso o fluxo de mensagens sobre experiências atômicas não diminua. Wes- son, cada vez mais animado, envia uma mensagem na qual confessa ter começado a aprender francês, mas agora arre- pende-se de ter se interessado pela língua. Desta vez, nin- guém fica de seu lado. Ele tem que enfrentar aquilo que os cibernautas chamam de flame, ou seja, um bombardeio de mensagens que chegam de todas as partes do mundo. Fram- ceses, belgas, suíços, canadenses do Quebec respondem a Wesson na língua de Moliêre. Uma alemã, um inglês e um dinamarquês também respondem em francês em solidarieda- de a uma língua minoritária insultada. Alguns professores americanos tentam acalmar Wesson ao mesmo tempo que o criticam por ter desrespeitado a ética da Net. Como tantos outros, apesar de ter me contentado antes em ler as mensa- gens, deixo agora meu distanciamento para dirigir-me a Wesson (em inglês). Explico-lhe que está misturando pelo menos duas coisas: uma lingua e um povo, um povo e um governo. Como alguém que se diz pacifista, ele deveria per- ceber que é esse tipo de confusão grosseira e de identificação de seres bumanos com categorias nacionais, étnicas, lingiiis- ticas ou religiosas que torna as guerras possíveis. Wesson faz, então, uma espécie de confissão pública. Lamenta sua mensagem a respeito da língua francesa e pede a todos que o perdoem. Quando redigiu aquela lamentável mensagem, estava sozinho em frente à tela. Estava quase pensando em voz alta, sem lembrar que havia pessoas do outro lado da rede. Indivíduos vivos, possuidores de senti- mentos, que poderiam ser magoados por palavras, assim como ele. E dentre esses indivíduos, justamente alguns da- Pierre Lévy queles que a televisão e os jornais que ele lia diariamente apontavam em massa para a vingança dos australianos. Wesson bavia sido excitado pelo falatório antifrancês das mídias que o cercavam, No entanto, a rede lhe bavia dado uma consciência planetária muito mais concreta do que a- quela que pensava ter. Aquela resultante do contato direto com pessoas que exprimem suas emoções e pensamentos, Além dessa mensagem para todos, surpreendi-me ao encon- trar uma mensagem pessoal de Wesson, que não podia ser lida pelos outros membros da mailing list. Disse que bavia ficado comovido com a sinceridade e clareza de minha res- posta e desejava conhecer-me. Trocamos então algumas mensagens pessoais que terminaram com uma promessa recíproca de nos encontrarmos durante o colóquio. O verão passou. Uma manhã de setembro, na sala de imprensa do sim- pósio internacional, um jovem barbudo e sorridente vem falar comigo. — Mister Lévy? — Yes. — Pm Paul Wesson... AS CONFERÊNCIAS ELETRÔNICAS Mais complexo que o simples correio eletrônico, um sistema de conferências eletrônicas é um dispositivo sofisticado que permite que grupos de pessoas discutam em conjunto sobre temas específicos. As mensagens são normalmente classificadas por assuntos e por sub-tó- picos. Alguns assuntos são fechados quando são abandonados e ou- tros são abertos quando os membros do grupo acham necessário, Em um sistema de conferências eletrônicas, as mensagens não são dirigi- das a pessoas, mas sim a temas ou sub-remas. O que não impede os indivíduos de responderem uns aos outros, já que as mensagens são assinadas. Além disso, indivíduos que tenham entrado em contato em uma conferência eletrônica podem em geral comunicar-se pelo correio eletrônico clássico, de pessoa a pessoa. Há sistemas especiais que permitem uma comunicação direta entre todas as pessoas que estejam conectadas a uma conferência eletrô- nica no mesmo momento, As mensagens trocadas nesse tipo de confe- rência eletrônica em geral não são gravadas. Os indivíduos que se Cibercultura 99 102 muito antes que a imprensa se apossasse do assunto, que o desenvolvimento da comunidade digital on-line geraria pro- fundas alterações econômicas, bem como uma redistribuição das carias entre os atores financeiros. Como será o comér- cio quando grande parte das transações econômicas for feita no ciberespaço? O que sobrará das moedas nacionais quan- do o “cybercash” tornar-se corriqueiro? Não será necessário que os banqueiros reinventem seu papel tradicional quan- do diversas formas de crédito e de trocas on-line — ainda em fase experimental na rede — estiverem estabelecidas? Como influir desde agora sobre as evoluções em andamen- to? Quem pode tomar uma ação destas, e como? Estas são as questões que Jean-Michel Billaud começou a levantar na comunidade francesa dos banqueiros e dos organismos de crédito, através da revista de difusão restrita U Atelier de la Compagnie Bancaire*. Juntando a experimentação à in- formação e à reflexão, esse visionário impulsionou o uso de um BBS no centro do departamento de vigília tecnológica de sua empresa, incitando os responsáveis por outros servi- ços a se conectar. Ele queria babituar os executivos do banco areceber informações direcionadas e filtradas por meios ele- trônicos, iniciá-los na cultura das trocas transversais e da reflexão coletiva em suporte digital. O “BBS do Atelier” foi depois aberto a pessoas não pertencentes à empresa, interes- sadas pelas questões abordadas e também capazes de ali- mentá-lo com suas informações e experiências. Obviamen- te, uma parte das informações e dos grupos de discussão per- maneceu reservada para os membros do banco. Mas a parte “pública” logo tomou uma dimensão impressionante. O BBS do Atelier, que acolhe centenas de pessoas, constitui hoje, em número, uma das mais importantes comunidades virtuais francesas, senão a mais importantes delas. Se você é, como eu, assinante do BBS do Atelier, há quatro serviços à sua disposição: correio eletrônico (com conexão à Internet), informações, fóruns, transferência de documentos e de programas. Vou detalhar abaixo a parte relativa às informações e aos fóruns. * hrtp:hwwrw.atelier.fr/ (N. do T.) Pierre Lévy As informações: os documentalistas e especialistas que trabalham no grupo de vigília do banco alimentam dossiês bem guarnecidos onde há uma multiplicidade de informações recolhidas em diversos newsgroups da Internet, em sites, em agências especializadas etc. Essas informações dizem respeito geralmente aos mercados e às tecnologias de informática e telecomunicações. Tendências do mercado, estatísticas, anún- cios de compras ou de fusões, decisões de investimentos de determinado ator no dominio do ciberespaço, inovações fi- nanceiras na Internet... É possível assim acompanhar, dia a dia, o progresso da linguagem de programação Java para aplicações interativas na Web, ou o crescimento dos “network computers”, máquinas especializadas na conexão à rede para o grande público (e custando um terço do preço dos com- putadores pessoais clássicos). Alguns dossiês propõem biblio- grafias e indicações documentais em vez de informações brutas. São encontrados também on-line todos os artigos pu- blicados e a serem publicados no jornal V' Atelier. Oferecendo um resumo e uma seleção das notícias do dia, a resenha cotidiana do BBS do Atelier é particularmente apreciada pelos assinantes. Ela é alimentada tanto a partir dos jornais especializados quanto pela grande imprensa. Co- mo exemplo, os temas da resenha de 5 de fevereiro de 1997 eram os seguintes: serviços on-line, monétique, telefonia móvel, telecomunicações, informática, eletrônica, audio- visual, televisão digital. Os fóruns: como em qualquer comunidade virtual, os fóruns do BBS do Atelier são espaços de trocas de informa- ções e de debates. Alguns fóruns podem ser acessados por qualquer um, enquanto outros, muito técnicos, são fregiien- tados apenas por especialistas. Encontramos igualmente no BBS reproduções de fóruns importados da Internet ou de outros BBSs. Eis aqui a lista de alguns dos fóruns próprios do BBS do Atelier: o comércio eletrônico, o pagamento se- guro, a Bolsa, as auto-estradas da informação, as questões jurídicas ligadas à cibercultura, a realidade virtual, o mun- do dos BBS, a democracia e as novas tecnologias da infor- mação, as cidades digitais, os CD-ROMs etc, Além disso, o BBS abriga o fórum de discussão do Club de L'Arche, que Cibercultura 103 tomou como sua missão sensibilizar os responsáveis políticos e econômicos para as questões emergentes da cibercultura. Um dos interesses dos fóruns do BBS do Atelier é que rece- bem uma parcela cada vez maior dos atores, dos promoto- res ou dos gestores dos domínios em questão. Foi assim que o grupo de pressão dos responsáveis econômicos franceses favoráveis à liberalização do uso das técnicas de criptografia organizou-se em grande parte via BBS. Alguns espaços coletivos “reservados” só podem ser acessados por pessoas que possuam a palavra-chave neces- sária. São dedicados a negociações e transações econômicas. Para terminar, notemos que a leitura das informações on-line e a participação nas discussões “virtuais” não subs- tituem — muito pelo contrário — os contatos em carne e osso. O Atelier organiza, várias vezes por semana, em Pa- ris, encontros físicos entre os atores da “cibereconomia”. Neles são apresentados novos produtos, iniciativas diver- sas tocando os temas centrais do Atelier, debates bastante abertos nos quais utopistas da democracia eletrônica e da inteligência coletiva ficam lado a lado com profissionais de marketing (algumas vezes são os mesmos) e podem tomar um drinque na companhia de Jean-Michel Billaud após te- rem se conhecido on-line. Em resumo, o ciberespaço permite a combinação de vários mo- dos de comunicação. Encontramos, em graus de complexidade cres- cente; o correio eletrônico, as conferências eletrônicas, o hiperdocumen- to compartilhado, os sistemas avançados de aprendizagem ou de tra- balho cooperativo e, enfim, os mundos virtuais multiusuários. A COMUNICAÇÃO ATRAVÉS DE MUNDOS VIRIUAIS COMPARTILHADOS Como já vimos anteriormente, a interação com uma realidade virtual no sentido mais forte vem a ser, em seu princípio técnico, a possibilidade de explorar ou de modificar o conteúdo de um banco de dados por meio de gestos (movimentos da cabeça, das mãos, desloca- mentos etc.) e perceber imediatamente, em um modo sensível (imagens, sons, sensações tácteis e proprioceptivas), os novos aspectos do ban- co de dados revelados pelos gestos que foram executados. O que equi- 104 Pierre Lévy
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