Baixe cibercultura e outras Notas de estudo em PDF para Design, somente na Docsity! Pierre Lévy
CIBERCULTURA
editoralB34
coleção TRANS
Pierre Lévy
CIBERCULTURA
Tradução
Carlos Irineu da Costa
editorall34
VI. O movimento social da cibercultura ..............
Técnica e desejo coletivo: o exemplo do veículo
automotivo. A infra-estrutura não é o dispositivo:
o exemplo do correio. Ciberespaço e movimento
social. O programa da cibercultura: a interconexão.
O programa da cibercultura: as comunidades
virtuais. O programa da cibercultura: a
inteligência coletiva. Um programa sem objetivo
nem conteúdo.
VIT. O som da cibercultura ..... 135
As artes do virtual. A globalização da música.
Música oral, escrita, gravada. À música tecno.
IX. A arte da cibercultura . 145
A adequação entre as formas estéticas da
cibercultura e seus dispositivos tecno-sociais. O
universal sem totalidade: texto, música e imagem.
O autor em questão. O declínio da gravação.
X. A nova relação com o saber ..
Educação e cibercultura. A articulação de
numerosos pontos de vista. O segundo dilúvio e a
inacessibilidade do todo. Quem sabe? A
reencarnação do saber. À simulação, um modo de
conhecimento próprio da cibercultura. Da
interconexão caótica à inteligência coletiva.
XL As mutações da educação e a economia do saber . 169
A aprendizagem aberta e à distância. A
aprendizagem coletiva e o novo papel dos
professores. Por uma regulamentação pública da
economia do conhecimento. Saber-fluxo e
dissolução das separações. O reconhecimento das
aquisições.
XIL As árvores de conhecimentos, um instrumento para a
inteligência coletiva na educação e na formação .... 177
Nectar: um exemplo de uso internacional das
árvores de conhecimentos. Um sistema universal
sem totalidade.
XII. O ciberespaço, a cidade e a democracia eletrônica...
Cibercidades e democracia eletrônica, A analogia
ou a cidade digital. À substituição. A assimilação,
crítica das auto-estradas da informação. A
articulação.
Terceira Parte: PROBLEMAS
XIV, Conflitos de interesse e diversidade dos
pontos de vista...
Abertura do devir tecnológico. O ponto de vista
dos comerciantes e o advento do mercado
absoluto. O ponto de vista das mídias: como fazer
sensacionalismo com a Net? O ponto de vista dos
Estados: controle dos fluxos transfronteiriços,
criptografia, defesa da indústria e da cultura
nacionais. O ponto de vista do “bem público”: a
favor da inteligência coletiva.
XV. Crítica da substituição e
Substituição ou complexificação? Crescimentos
paralelos das telecomunicações e do transporte.
Aumento dos universas de escolha: a ascensão do
virtual provoca a do atual. Novos planos de
existência. Da perda.
XVI. Crítica da dominação...
Impotência dos atores “midiáticos”, Devemos
temer o domínio de uma nova “classe virtual”?
Dialética da utopia e dos negócios.
XVI. Crítica da crítica .....
Funções do pensamento crítico. Crítica do
totalitarismo ou temor da destotalização? A crítica
era progressista. Estaria tornando-se
conservadora? Ambivalência da potência.
XVIIL Respostas a algumas perguntas frequentes ......
A cibercultura seria fonte de exclusão? À
diversidade das línguas e das culturas encontra-se
ameaçada pelo ciberespaço? A cibercultura não é
sinônimo de caos e de confusão? A cibercultura
encontra-se em ruptura com os valores fundadores
da modernidade enropéia?
Conclusão: À cibercultura ou a tradição simultânea ........
Glossário, por Carlos Irineu da Costa.
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Introdução
DILÚVIOS
Pensar a cibercultura: esta é a proposta deste tivro. Em geral me
consideram um otimista. Estão certos. Meu otimismo, contudo, não
promete que a Internet resolverá, em um passe de mágica, todos os pro-
btemas culturais e sociais do planeta. Consiste apenas em reconhecer
dois fatos. Em primeiro lugar, que o crescimento do ciberespaço re-
sulta de um movimento internacional de jovens ávidos para experimen-
tar, coletivamente, formas de comunicação diferentes daquelas que as
mídias clássicas nos propõem. Em segundo lugar, que estamos viven-
do a abertura de um novo espaço de comunicação, e cabe apenas a
nós explorar as potencialidades mais positivas deste espaço nos pla-
nos econômico, político, cultural e bumano.
Aqueles que denunciam a cibercultura hoje têm uma estranha
semelhança com aqueles que desprezavam o rock nos anos 50 ou 60.
O rock era anglo-americano, e tornou-se uma indústria. Isso não o
impediu, contudo, de ser o porta-voz das aspirações de uma enorme
parcela da juventude mundial. Também não impediu que muitos de
nós nos divertíssemos ouvindo ou tocando juntos essa música. À música
pop dos anos 70 deu uma consciência a uma ou duas gerações e con-
tribuiu para o fim da Guerra do Vietnã. É bem verdade que nem o rock
nem a música pop resolveram o problema da miséria ou da fome no
mundo. Mas isso seria razão para “ser contra”?
Durante uma dessas mesas redondas que têm se multiplicado
sobre os “impactos” das novas redes de comunicação, tive a oportu-
nidade de ouvir um cineasta, que se tornou um funcionário enropeu,
denunciar a “barbárie” encarnada pelos videogames, os mundos vir-
tuais e os fóruns eletrônicos. Respondi-lhe que aquele era um discar-
so muito estranho vindo de um representante da sétima arte. Pois, ao
nascer, o cinema foi desprezado como um meio de embotamento me-
cânico das massas por quase todos os intelectuais bem-pensantes, as-
sim como pelos porta-vozes oficiais da cultura. Hoje, no entanto, o
cinema é reconhecido como uma arte completa, investido de todas as
legitimidades culturais possíveis. Parece contudo gue o passado não é
Cibercultura u
bilhão « meio de homens na Terra em 1900, mas serão mais de seis
bilhões no ano 2000. Os homens inundam a Terra. Esse crescimento
global tão acelerado não tem nenhum precedente histórico.
Frente à irresistível inundação humana, há duas soluções opos-
tas. Uma delas é a guerra, o extermínio do dilúvio atômico, não im-
portando qual seja sua forma, com o desprezo que isto implica em
relação às pessoas. Nesse caso, a vida humana perde seu valor. O hu-
mano é reduzido ao nível das bestas ou das formigas, esfomeado, ater-
rorizado, explorado, deportado, massacrado.
À outra é a exaltação do indivíduo, o humano considerado como
o maior valor, recurso maravilhoso e sem preço. Para valorizar o va-
lor, faremos um grande esforço a fim de tecer incansavelmente rela-
ções entre as idades, os sexos, as nações e as culturas, apesar das difi-
culdades e dos conflitos. A segunda solução, simbolizada pelas tele-
comunicações, implica o reconhecimento do outro, a aceitação e aju-
da mútuas, a cooperação, a associação, a negociação, para além das
diferenças de pontos de vista e de interesses. As telecomunicações são
de fato responsáveis por estender de uma ponta à outra do mundo as
possibilidades de contato amigável, de transações contratuais, de trans-
missões de saber, de trocas de conhecimentos, de descoberta pacífica
das diferenças.
O fino enredamento dos humanos de todos os horizontes em um
único e imenso tecido aberta e interativo gera uma situação absolutamen-
te inédita e portadora de esperança, já que é uma resposta positiva ao
crescimento demográfico, embora também crie novos problemas. Gos-
taria de abordar alguns deles neste livro, especialmente aqueles que estão
ligados à cultura: a arte, a educação ou a cidade à mercê da comunicação
interativa generalizada. Na aurora do dilúvio informacional, talvez uma
meditação sobre o dilúvio bíblico possa nos ajudar a compreender me-
lhor os novos tempos. Onde está Noé? O que colocar na arca?
No meio do caos, Noé construiu um pequeno mundo bem orga-
nizado. Face ao desencadeamento dos dados, protegeu uma seleção.
Quando tudo vai por água abaixo, ele está preocupado em transmitir.
Apesar do salve-se quem puder geral, recolhe pensando no futuro.
“E Jeová fechou a porta por fora” (Gênesis 7, 16). A arca foi fe-
chada, Ela simboliza a totalidade reconstituída. Quando o universo
está desenfreado, o microcosmo organizado reflete a ordem de um
macrocosmo que está por vir. Mas o múltiplo não se deixa esquecer.
O dilúvio informacional] jamais cessará. À arca não repousará no topo
14 Pierre Févy
do monte Ararat. O segundo dilúvio não terá fim. Não há nenhum
fundo sólido sob o oceano das informações. Devemos aceitá-lo como
nossa nova condição. Temos que ensinar nossos filhos a nadar, a flu-
tuar, talvez a navegar.
Quando Noé, ou seja, cada um de nós, olha através da escotilha
de sua arca, vê outras arcas, a perder de vista, no oceano agitado da
comunicação digital. E cada uma dessas arcas contém uma seleção di-
ferente. Cada uma quer preservar a diversidade. Cada uma quer trans-
mitir. Estas arcas estarão eternamente à deriva na superfície das águas.
Umas das principais hipóteses deste livro é a de que a cibercultura
expressa o surgimento de um novo universal, diferente das formas cul-
turais que vieram antes dele no sentido de que ele se constrói sobre a
indeterminação de um sentido global qualquer. Precisamos, de faro,
colocá-la dentro da perspectiva das mutações anteriores da comunicação.
Nas sociedades orais, as mensagens discursivas são sempre rece-
bidas no mesmo contexto em que são produzidas. Mas, após o surgi-
mento da escrita, os textos se separam do contexto vivo em que fo-
ram produzidos. É possível ler uma mensagem escrita cinco séculos
antes ou redigida a cinco mil quilômetros de distância — o que mui-
tas vezes gera problemas de recepção e de interpretação. Para vencer
essas dificuldades, algumas mensagens foram então concebidas para
preservar o mesmo sentido, qualquer que seja o contexto (o lugar, a
época) de recepção: são as mensagens “universais” (ciência, religiões
do livro, direitos do homem etc.). Esta universalidade, adquirida gra-
ças à escrita estática, só pode ser construída, portanto, ao custo de uma
certa redução ou fixação do sentido: é um universal “totalizante”. À
hipótese que levanto é a de que a cibercultura leva a co-presença das
mensagens de volta a seu contexto como ocorria nas sociedades orais,
mas em outra escala, em uma órbita completamente diferente. À nova
universalidade não depende mais da auto-suficiência dos textos, de uma
fixação e de uma independência das significações. Ela se constrói e se
estende por meio da interconexão das rmensagens entre si, por meio
de sua vinculação permanente com as comunidades virtuais em criação,
que lhe dão sentidos variados em uma renovação permanente.
A arca do primeiro dilúvio era única, estangue, fechada, totali-
zante. As arcas do segundo dilúvio dançam entre si. Trocam sinais.
Fecundam-se mutuamente. Abrigam pequenas totalidades, mas sem
nenhuma pretensão ao universal. Apenas o dilúvio é universal. Mas
ele é intotalizável. É preciso imaginar um Noé modesto.
Cibercultura t$
“Eles foram extintos da Terra; ficou somente Noé e os que esta-
vam com ele na barca” (Gênesis 7, 23). À operação de salvamento de
Noé parece complementar, quase cúmplice de um extermínio. A tota-
lidade com pretensões universais afoga tudo aquilo que não pode re-
ter. É desta forma que as civilizações são fundadas, que o universal
imperial se instaura. Na China, o imperador amarelo mandou destruir
quase todos os textos anteriores a seu regime. Qual César, qual con-
quistador bárbaro deu ordens para deixar queimar a biblioteca de
Alexandria a fim de terminar com a desordem helenística? A Inquisição
espanhola colocava fogo em autos-de-fé de onde esvaiam-se em fumaça
o Corão, o Talmude e tantas outras páginas inspiradas ou meditadas.
Horríveis fogueiras hitlerianas, fogos de livros nas praças européias,
em que ardiam a inteligência e a cultura! Talvez a primeira de todas
essas tentativas de aniquilação tenha sido a do império mais antigo,
na Mesopotâmia, de onde nos vêm tanto a versão oral como a escrita
do dilúvio, muito antes da Bíblia. Pois foi Sargão de Agadé, rei dos
quatro países, primeiro imperador da história, que mandou jogar no
Eufrates milhares de tábulas de argila, nas quais estavam gravadas
lendas de tempos imemoriais, preceitos de sabedoria, manuais de me-
dicina ou de magia, secretados por várias gerações de escribas. Os sig-
nos permanecem legíveis por alguns instantes sob a água corrente,
depois se apagam. Levadas pelos turbilhões, potidas pela correnteza,
as tábulas amolecem aos poucos, voltam a ser seixos de argila lisa que
em pouco tempo se fundem com o lodo do rio e vão se acrescentar ao
lodo das inundações. Muitas vozes foram caladas para sempre. Não
suscitarão mais nenhum eco, nenhuma resposta.
Mas o novo dilúvio não apaga as marcas do espírito. Carrega-as
todas juntas. Fluida, virtual, ao mesmo tempo reunida e dispersa, essa
biblioteca de Babel não pode ser queimada. As inúmeras vozes que
ressoam no ciberespaço continuarão a se fazer ouvir e a gerar respos-
tas, As águas deste dilúvio não apagarão os signos gravados: são inun-
dações de signos.
Sim, a tecnociência produziu tanto o fogo nuclear como as re-
des interativas. Mas o telefone e a Internet “apenas” comunicam. Tanto
uma como os outros construíram, pela primeira vez neste século de
ferro e loucura, a unidade concreta do gênero bumano. Ameaça de
morte enquanto espécie em relação à bomba atômica, diálogo plane-
tário em relação às telecomunicações.
Nem a salvação nem a perdição residem na técnica. Sempre am-
16 Pierre Lévy
Primeira Parte
Definições
I
AS TECNOLOGIAS TI
UM IMPACTO?
A METÁFORA DO IMPACTO É INADEQUADA
Nos textos que anunciam colóquios, nos resumos dos estudos
oficiais ou nos artigos da imprensa sobre o desenvolvimento da mul-
timídia, fala-se muitas vezes no “impacto” das novas tecnologias da
informação sobre a sociedade ou a cultura. À tecnologia seria algo
comparável a um projétil (pedra, obus, mís:
dade a um alvo vivo... Esta metáfora bélica é criticável em vários sen-
tidos. A questão não é tanto avaliar a pertinência estilística de uma
figura de retórica, mas sim esclarecer o esquema de leitura dos fenô-
menos — a meu ver, inadequado — que a metáfora do impacto! nos
revela.
As técnicas viriam de outro planeta, do mundo das máquinas, frio,
sem emoção, estranho a toda significação e qualquer valor humano,
como uma certa tradição de pensamento tende a sugerir?? Parece-me.
pelo contrário, que não somente as técnicas são imaginadas, fabrica-
das € reinterpretadas durante seu uso pelos homens, como também é
o próprio uso intensivo de ferramentas que constitui a humanidade
enquanto tal (junto com a linguagem c as instituições sociais comple-
xas). É o mesmo homem que fala, enterra seus mortos e talha o sílex.
Propagando-se até nós, o fogo de Prometeu cozinha os alimentos,
endurece a argila, funde os metais, alimenta a máquina a vapor, corre
nos cabos de alta-tensão, queima nas centrais nucleares, explode nas
armas e engenhos de destruição. Com a arquitetura que o abriga, reúne
e inscreve sobre a Terra; com a roda c a navegação que abriram seus
horizontes; com a escrita, o telefone e o cinema que o infiltram de
signos; com o texto e q têxtil que, entretecendo a variedade das maté-
il2) e a cultura ou a socie-
! Ver Mark Johnson, Gerge Lakoff, Les métapbores dans la vie quotidienne,
Paris, Minuit, 1985.
2 É, por exemplo, a tese tque exponho de forma caricatural aqui) de Gilbert
Hotrois em Le signe et lu technique. Paris, Aubice-Montaigne, 1984.
Cibercultura MH
rias, das cores e dos sentidos, desenrolam ao infinito as superfícies
onduladas, luxuosamente redobradas, de suas intrigas, seus tecidos e
seus véus, o mundo humano é, ao mesmo tempo, técnico.
Seria a tecnologia um ator autônomo, separado da sociedade e
da cultura, que seriam apenas entidades passivas percutidas por um
agente exterior? Defendo, ao contrário, que a técnica é um ângulo de
análise dos sistemas sócio-técnicos globais, um ponto de vista que
enfatiza a parte material e artificial dos fenômenos humanos, e não
uma entidade real, que existiria independentemente do resto, que te-
ria efeitos distintos e agiria por vontade própria. As atividades huma-
nas abrangem, de maneira indissolúvel, interações entre:
— pessoas vivas e pensantes,
— entidades materiais naturais e artificiais,
— idéias e representações.
É impossível separar o humano de seu ambiente material, a:
como dos signos e das imagens por meio dos quais ele atribui sentido
à vida e ao mundo. Da mesma forma, não podemos separar o mundo
materia! — e menos ainda sua parte artificial — das idéias por meio
das quais os objetos técnicos são concebidos e utilizados, nem dos
humanos que os inventam, produzem e utilizam, Acrescentemos, en-
fim, que as imagens, as palavras, as construções de linguagem entra-
nham-se nas almas humanas, fornecem meios e razões de viver aos
homens e suas instituições, são recicladas por grupos organizados e
instrumentalizados, como também por circuitos de comunicação e me-
mórias artificiais),
Mesmo supondo que realmente existam três entidades — técni-
ca, cultura e sociedade —, em vez de enfatizar o impacto das tecnolo-
gias, poderíamos igualmente pensar que as tecnologias são produtos de
uma sociedade e de uma cultura. Mas a distinção traçada entre cultura
(a dinâmica das representações), sociedade (as pessoas, seus laços, suas
trocas, suas relações de força) e técnica (artefatos eficazes) só pode ser
conceitual. Não há nenhum ator, nenhuma “causa” realmente indepen-
dente que corresponda a ela. Encaramos as tendências intelectuais como
sim
* Como é possível que formas institucionais e técnicas materiais transmitam
idéias... é vice-versa? Esta é uma das principais linhas de pesquisa do empreendi-
mento midialógico iniciado por Régis Debray. Ver, por exemplo, seu Cours de
médiologie gênérale, Paris, Gallimard, 1991, Transmettre, Paris, Odile Jacob, 1997,
ca bela revista Les Cabiers de Médiologie.
22 Pierre Lévy
desenvolver agentes de software inteligentes, ou knotebots. Todos esses
são fenômenos que transformam as significações culturais e sociais das
cibertecnologias no fim dos anos 90.
Dados a amplitude e o ritmo das transformações ocorridas, ain-
da nos é impossível prever as mutações que afetarão o universo digi-
tal após o ano 2000. Quando as capacidades de memória e de trans-
missão aumentam, quando são inventadas novas interfaces com o cor-
po e o sistema cognitivo humano (a “realidade virtual”, por exemplo),
quando se traduz o conteúdo das antigas mídias para o ciberespaço
(o telefone, a televisão, os jornais, os livros etc.), quando o digital co-
munica e coloca em um ciclo de retroalimentação processos físicos,
econômicos ou industriais anteriormente estanques, suas implicações
culturais e sociais devem ser reavaliadas sempre.
A TECNOLOGIA É DETERMINANTE OU CONDICIONANTE?
As técnicas determinam a sociedade ou a cultura? Se aceitarmos
a ficção de uma relação, ela é muito mais complexa do que uma rela-
ção de determinação. A emergência do ciberespaço acompanha, tra-
duz e favorece uma evolução geral da civilização. Uma técnica é pro-
duzida dentro de uma cultura, e uma sociedade encontra-se condicio-
nada por suas técnicas. E digo condicionada, não determinada, Essa
diferença é fundamental. A invenção do estribo permitiu o desenvol-
vimento de uma nova forma de cavalaria pesada, a partir da qual fo-
ram construídos o imaginário da cavalaria e as estruturas políticas e
sociais do feudalismo. No entanto, o estribo, enquanto dispositivo
material, não é a “causa” do feudalismo europeu. Não há uma “can-
sa” identificável para um estado de fato social ou cultural, mas sim
um conjunto infinitamente complexo e parcialmente indeterminado de
processos em interação que se auto-sustentam ou se inibem. Podemos
dizer em contrapartida que, sem o estribo, é difícil conceber como
cavaleiros com armaduras ficariam sobre seus cavalos de batalha e
atacariam com a lança em riste... O estribo condiciona efetivamente
toda a cavalaria e, indiretamente, todo o feudalismo, mas não os de-
termina. Dizer que a técnica condiciona significa dizer que abre algu-
mas possibilidades, que algumas opções culturais ou sociais não po-
deriam ser pensadas a sério sem sua presença. Mas muitas possibili-
dades são abertas, e nem todas serão aproveitadas. As mesmas técni-
cas podem integrar-se a conjuntos culturais bastante diferentes. À agri-
cultura irrigada em grande escala talvez tenha favorecido o “despo-
Cibercultura 25
tismo oriental” na Mesopotâmia, no Egito e na China mas, por um
tado, essas são civilizações bastante diferentes e, por outro, a agricul-
tura irrigada por vezes encontrou um lugar em formas sócio-políticas
cooperativas (no Magreb medieval, por exemplo). Confiscada pelo
Estado na China, atividade industrial que escapou aos poderes políti-
cos na Europa, a impressão não teve as mesmas conseguências no
Oriente e no Ocidente. À prensa de Gutenberg não determinou a cri-
se da Reforma, nem o desenvolvimento da moderna ciência européia,
tampouco o crescimento dos ideais iluministas e a força crescente da
opinião pública no século XVIII — apenas condicionou-as. Conten-
tou-se em fornecer uma parte indispensável do ambiente global no qual
essas formas culturais surgiram. Se, para uma filosofia mecanicista in-
transigente, um efeito é determinado por suas causas e poderia ser de-
duzido a partir delas, o simples bom senso sugere que os fenômenos
culturais e sociais não obedecem a esse esquema. A multiplicidade dos
fatores e dos agentes proíbe qualquer cálculo de efeitos deterministas.
Além disso, todos os fatores “objetivos” nunca são nada além de con-
dições a serem interpretadas, vindas de pessoas e de coletivos capazes
de uma invenção radical.
Uma técnica não é nem boa, nem má (isto depende dos contex-
tos, dos usos e dos pontos de vista), tampouco neutra (já que é condi-
cionante ou restritiva, já que de um lado abre e de outro fecha o es-
pectro de possibilidades). Não se trata de avaliar seus “impactos”, mas
de situar as irreversibilidades às quais um de seus usos nos levaria, de
formular os projetos que explorariam as virtualidades que ela trans-
porta e de decidir o que fazer dela.
Contudo, acreditar em uma disponibilidade total das técnicas e
de seu potencial para indivíduos ou coletivos supostamente livres, es-
clarecidos e racionais seria nutrir-se de ilusões. Muitas vezes, enquanto
discutimos sobre os possíveis usos de uma dada tecnologia, algumas
formas de usar já se impuseram. Antes de nossa conscientização, a di-
nâmica coletiva escavou seus atratores. Quando finalmente prestamos
atenção, é demasiado tarde... Enquanto ainda questionamos, outras
tecnologias emergem na fronteira nebulosa onde são inventadas as
idéias, as coisas e as práticas. Elas ainda estão invisíveis, talvez pres-
tes a desaparecer, talvez fadadas ao sucesso. Nestas zonas de indeter-
minação onde o futuro é decidido, grupos de criadores marginais, apai-
xonados, empreendedores audaciosos tentam, com todas as suas for-
gas, direcionar o devir. Nenhum dos principais atores institucionais
26 Pierre Lévy
— Estado ou empresas — planejou deliberadamente, nenhum grande
órgão de mídia previu, tampouco anunciou, o desenvolvimento da in-
formática pessoal, o das interfaces gráficas interativas para todos, o
dos BBS* ou dos programas que sustentam as comunidades virtuais”,
dos hipertextos!º ou da World Wide Web!!, ou ainda dos programas
de criptografia pessoal inviolável!2, Essas tecnologias, todas impreg-
nadas de seus primeiros usos e dos projetos de seus criadores, nasci-
das no espírito de visionários, transmitidas pela efervescência de mo-
vimentos sociais e práticas de base, vieram de lugares inesperados para
qualquer “tomador de decisões”.
A ACELERAÇÃO DAS ALTERAÇÕES TÉCNICAS
E A INTELIGÊNCIA COLETIVA
Se nos interessarmos sobretudo por seu significado para os ho-
mens, parece que, como sugeri anteriormente, o digital, fluido, em
constante mutação, seja desprovido de qualquer essência estável. Mas,
justamente, a velocidade de transformação é em si mesma uma cons-
tante — paradoxal — da cibercultura. Ela explica parcialmente a sen-
sação de impacto, de exterioridade, de estranheza que nos toma sem-
pre que tentamos apreender o movimento contemporâneo das técni-
cas. Para q indivíduo cujos métodos de trabalho foram subitamente
alterados, para determinada profissão tocada bruscamente por uma
revolução tecnológica que torna obsoletos seus conhecimentos e savoir-
* BS (Bulletin Board System) é um sistema de comunicações do tipo comu-
aitário, bascado em computadores conectados através da rede telefônica.
? Comunidade virtual é um grupo de pessoas se correspondendo mutuamente
por meio de computadores interconectados.
19 Hipertexto é um texto em formato digital, reconfigurável e fluido. Ele é
composto por blucos elementares ligados por links que podem ser explorados em
tempo real na tela. A noção de hiperdocumento generaliza, para todas as catego-
tias de signos (imagens, animações, sons etc.), o princípio da mensagem em rede
móvel que caracteriza o hipertexto.
UA World Wide Web é uma função da Internet que junta, em um único e
imenso hipertexto ou hiperdocumento (compreendendo imagens e sons), todos os
documentos € hipertextos que a alimentam.
12 Para uma explicação mais detalhada sobre as questões relacionadas à
criptografia, consultar, no capítulo XIV, sobre o conflito de interesses e as inter-
pretações, a seção sobre o ponto de vista dos Estados.
Cibercultura 27
— de dominação (reforço dos centros de decisão e de controle,
domínio quase monopolista de algumas potências econômicas sobre
funções importantes da rede etc.),
— de exploração tem alguns casos de teletrabalho vigiado ou de
deslocalização de atividades no terceiro mundo),
— e mesmo de bobagem coletiva (rumores, conformismo em rede
ou em comunidades virtuais, acúmulo de dados sem qualquer infor-
mação, “televisão interativa”).
Além disso, nos casos em que processos de inteligência coletiva
desenvolvem-se de forma eficaz graças ao ciberespaço, um de seus
principais efeitos é o de acelerar cada vez mais o ritmo da alteração
tecno-social, o que torna ainda mais necessária a participação ativa
na cibercultura, se não quisermos ficar para trás, e tende a excluir de
maneira mais radical ainda aqueles que não entraram no ciclo positi-
vo da alteração, de sua compreensão e apropriação.
Devido a seu aspecto participativo, socializante, descomparti-
mentalizante, emancipador, a inteligência coletiva proposta pela ci-
bercuitura constitui um dos melhores remédios para o ritmo deses-
tabilizante, por vezes excludente, da mutação técnica. Mas, neste mes-
mo movimento, a inteligência coletiva trabalha ativamente para a ace-
leração dessa mutação. Em grego arcaico, a palavra “pharmakon” (gue
originou “pharmacie”, em francês) significa ao mesmo tempo veneno
e remédio. Novo pharmakon, a inteligência coletiva que favorece a
cibercultura é ao mesmo tempo um veneno para aqueles que dela não
participam (e ninguém pode participar completamente dela, de tão
vasta e multiforme que é) e um remédio para aqueles que mergulham
em seus turbilhões e conseguem controlar a própria deriva no meio
de suas correntes.
30 Pierre Lévy
D.
A INFRA-ESTRUTURA TÉCNICA DO VIRTUAL
A EMERGÊNCIA DO CIBERESPAÇO
Os primeiros computadores (calculadoras programáveis capazes
de armazenar os programas) surgiram na Inglaterra e nos Estados
Unidos em 1945. Por muito tempo reservados aos militares para cál-
culos científicos, seu uso civil disseminou-se durante os anos 60. Já
nessa época era previsível que o desempenho do hardware aumenta-
ria constantemente. Mas que haveria um movimento gera! de virtua-
lização da informação e da comunicação, afetando profundamente os
dados elementares da vida social, ninguém, com a exceção de alguns
visionários, poderia prever naquele momento. Os computadores ain-
da eram grandes máquinas de calcular, frágeis, isoladas em salas re-
frigeradas, que cientistas em uniformes brancos alimentavam com car-
tões perfurados e que de tempos em tempos cuspiam listagens ilegí-
veis. À informática servia aos cálculos científicos, às estatísticas dos
Estados e das grandes empresas ou a tarefas pesadas de gerenciamento
(folhas de pagamento etc.).
A virada fundamental data, talvez, dos anos 70. O desenvolvi-
mento e a comercialização do microprocessador (unidade de cálculo
aritmético e lógico localizada em um pequeno chip eletrônico) dispa-
raram diversos processos econômicos e sociais de grande amplitude.
Eles abriram uma nova fase na automação da produção industrial:
robótica, linhas de produção flexíveis, máquinas industriais com con-
troles digitais etc. Presenciaram também o princípio da automação de
alguns setores do terciário (bancos, seguradoras). Desde então, a busca
sistemática de ganhos de produtividade por meio de várias formas de
uso de aparelhos eletrônicos, computadores e redes de comunicação
de dados aos poucos foi tomando conta do conjunto das atividades
econômicas. Esta tendência continua em nossos dias.
Por outro lado, um verdadeiro movimento social nascido na Cali-
fórnia na efervescência da “contracultura” apossou-se das novas pos-
sibilidades técnicas e inventou o computador pessoal. Desde então, o
computador iria escapar progressivamente dos serviços de processa-
Cibercultura 31
mento de dados das grandes empresas e dos programadores profissio-
nais para tornar-se um instrumento de criação (de textos, de imagens.
de músicas), de organização (bancos de dados, planilhas), de simula-
ção (planilhas, ferramentas de apoio à decisão, programas para pes-
quisa) e de diversão jogos) nas mãos de uma proporção crescente da
população dos países desenvolvidos.
Os anos 80 viram o prenúncio do horizonte contemporâneo da
multimídia. A informática perdeu, pouco a pouco, seu starus de téc-
nica e de setor industrial particular para começar a fundir-se com as
telecomunicações, a editoração, o cinema e a televisão. A digitalização
penetrou primeiro na produção e gravação de músicas, mas os mi-
croprocessadores e as memórias digitais tendiam a tornar-se a infra-
estrutura de produção de todo o domínio da comunicação. Novas
formas de mensagens “interativas” apareceram: este decênio viu a
invasão dos videogames, o triunfo da informática “amigável” (inter-
faces gráficas e interações sensório-motoras) e o surgimento dos hi-
perdocumentos (hipertextos, CD-ROM).
No final dos anos 80 e início dos anos 90, um novo movimento
sócio-cultural originado pelos jovens profissionais das grandes metró-
poles e dos campus americanos tomou rapidamente uma dimensão
mundial. Sem que nenhuma instância dirigisse esse processo, as dife-
rentes redes de computadores que se formaram desde o final dos anos
70 se juntaram umas às outras enquanto o número de pessoas e de
computadores conectados à inter-rede começou a crescer de forma
exponencial. Como no caso da invenção do computador pessoal, uma
corrente cultural espontânea e imprevisível impôs um novo curso ao
desenvolvimento tecno-econômico. As tecnologias digitais surgiram,
então, como a infra-estrutura do ciberespaço, novo espaço de comu-
nicação, de sociabilidade, de organização e de transação, mas também
novo mercado da informação e do conhecimento.
Neste estudo, não nos interessa a técnica em si. Contudo, é ne-
cessário expor as grandes tendências da evolução técnica contempo-
rânea para abordar as mutações sociais e culturais que as acompanham.
A esse respeito, o primeiro dado a levar em conta é o aumento expo-
nencial das performances dos equipamentos (velocidade de cálculo, ca-
pacidade de memória, taxas de transmissão) combinado com uma
baixa contínua nos preços. Em paralelo, no domínio do software têm
havido melhorias conceituais e teóricas que exploram o aumento de
potência do hardware. Os produtores de programas têm se dedicado
32 Pierre Lévy
os suportes (discos, disquetes etc.) por estrada, trem, barco ou avião.
Mas a conexão direta, ou seja, em rede ou on-line (“em linha”) é evi-
dentemente mais rápida. À informação pode usar a rede telefônica
clássica, contanto que seja modulada (codificada analogicamente de
forma adequada) ao entrar na rede telefônica e desmodulada (redi-
gitalizada) quando chegar a um computador ou outro equipamento
digital na outra ponta do cabo. O aparelho que permite a modulação
e desmodulação da informação digital, e que portanto permite a co-
municação de dois computadores via telefone, chama-se “modem”.
Volumosos, caros e lentos nos anos 70, os modems passaram a ter,
na metade dos anos 90, uma capacidade de transmissão superior à da
linha telefônica de um usuário médio. De uso comum, os modems são
hoje dispositivos miniaturizados e muitas vezes encontram-se integra-
dos aos computadores na forma de placa ou circuito impresso.
As informações podem viajar diretamente em sua forma digital,
através de cabos coaxiais de cobre, por fibras óticas ou por via hertziana
(ondas eletromagnéticas) e portanto, como ocorre quando usam a rede
telefônica, passar por satélites de telecomunicação.
Os progressos da função de transmissão (taxa de transferência,
confiabilidade) dependem de diversos fatores. O primeiro destes é a
capacidade de transmissão bruta. Neste campo, esperam-se melhorias
sensacionais nas fibras óticas. Estão sendo feitas pesquisas atualmente,
em vários laboratórios, sobre uma “fibra negra”, canal ótico do qual
um único fio, tão fino quanto um fio de cabelo, poderia conter todo o
fluxo de mensagens telefônicas dos Estados Unidos no Dia das Mães
tdara em que há o maior tráfego na rede). Um equipamento mínimo
com esta fibra negra teria mil vezes a capacidade de transmissão her-
tziana em todo o espectro de frequências.
O segundo fator de melhoria reside nas capacidades de compres-
são e de descompressão das mensagens. De fato, são os sons e as ima-
gens em movimento que mais consomem capacidade de armazena-
mento e de transmissão. Alguns programas ou circuitos especializados
em compressão podem analisar as imagens ou os sons para produzir
simplificações ou descrições sintéticas dos mesmos, que chegam a ser
milhares de vezes menos volumosas que sua codificação digital inte-
gral. Na outra ponta do canal de transmissão, um módulo de des-
compressão reconstrói a imagem ou o som a partir da descrição rece-
bida, minimizando a perda de informação. Ao comprimir e descom-
primir as mensagens, transfere-se uma parte das dificuldades de trans-
Cibercultura 3s
missão (e de gravação) para o tratamento que está se tornando, como
acabo de dizer, cada vez mais barato e mais rápido.
O terceiro fator de melhoria na transmissão reside nos avanços
em matéria de arquitetura global de sistemas de comunicação. Neste
campo, o principal progresso é sem dúvida a generalização da comu-
tação por pacotes. Esta arquitetura descentralizada, na qual cada nó
da rede é “inteligente”, foi concebida no final dos anos 50 em respos-
ta a cenários de guerra nuclear, mas só começou a ser experimentada
em escala natural no final dos anos 60, nos Estados Unidos. Neste sis-
tema, as mensagens são recortadas em pequenas unidades do mesmo
tamanho, os pacotes, cada um dos quais munidos de seu endereço de
partida, seu endereço de destino e sua posição na mensagem comple-
ta, da qual representam apenas uma parte. Computadores roteadores,
distribuídos por toda a rede, sabem ler essas informações. À rede pode
ser materialmente heterogênea (cabos, via hertziana, satélites etc.), basta
que os roteadores saibam ler os endereços dos pacotes e que falem uma
“linguagem” em comum. Se, em determinado ponto da transmissão,
algumas informações desaparecerem, os roteadores podem pedir que
o remetente as envie novamente. Os roteadores mantêm-se mutuamente
informados, em intervalos regulares, sobre o estado da rede, Os pacotes
podem, então, tomar caminhos diferentes de acordo com problemas
de destruição, pane ou engarrafamento, mas serão finalmente reagru-
pados antes de chegarem a seu destinatário. Esse sistema é particular-
mente resistente a incidentes, porque é decentralizado e sua inteligên-
cia é “distribuída”. Em 1997, está funcionando apenas em algumas
redes especializadas (entre as quais aquela que suporta a espinha dor-
sal da Internet), mas o padrão de comunicação ATM (Asynchronous
Transfer Mode), que funciona de acordo com a comutação por paco-
tes, foi adotado pela União internacional das telecomunicações. No
futuro, deve ser aplicado ao conjunto das redes de telecomunicação e
prevê uma comunicação digital multimídia de alta capacidade.
Alguns números darão uma idéia dos progressos feitos no domí-
nio das taxas de transmissão de informações. Nos anos 70, a rede
Arpanet (ancestral da Internet), nos Estados Unidos, possuía nós que
suportavam 56 mil bits por segundo. Nos anos 80, as linhas da rede
que conectava os cientistas americanos podiam transportar 1,5 milhões
de bits por segundo. Em 1992, as linhas da mesma rede podiam trans-
mitir 45 milhões de bits por segundo (uma enciclopédia por minuto).
Os projetos e pesquisas em desenvolvimento prevêem a construção de
36 Pierre Lévy
linhas com a capacidade de muitas centenas de milhares de bits por
segundo (uma grande biblioteca por minuto).
AS INTERFACES
Usamos aqui o termo “interfaces” para todos os aparatos mate-
riais que permitem a interação entre o universo da informação digital
e o mundo ordinário.
Os dispositivos de entrada capturam e digitalizam a informação
para possibilitar os processamentos computacionais. Até os anos 70,
boa parte dos computadores eram alimentados com dados por meio
de cartões perfurados. Desde então, o espectro de ações corporais ou
de qualidades físicas que podem ser diretamente captadas por dispo-
sitivos computacionais aumentou: teclados que permitem a entrada de
textos e o fornecimento de instruções aos computadores, o mouse por
meio do qual é possível manipular “com a mão” as informações na
tela, superfícies sensíveis à pressão dos dedos (tela sensível ao toque),
digitalizadores automáticos de som (samplers), módulos de software
capazes de interpretar a palavra falada, digitalizadores (ou scanners)
de imagens e de textos, leitores óticos (de código de barras ou outras
informações), sensores automáticos de movimentos do corpo (data-
gloves ou datasuits), dos olhos, das ondas cerebrais, de influxos ner-
vosos (usados em algumas próteses), sensores de todos os tipos de
grandezas físicas: calor, umidade, luz, peso, propriedades químicas etc.
Após serem armazenados, tratados e transmitidos sob a forma
de números, os modelos abstratos são tornados visíveis, as descrições
de imagens tornam-se de novo formas e cores, os sons ecoam no ar,
Os textos são impressos sobre papel ou exibidos na tela, as ordens dadas
a autômatos são efetuadas por acionadores etc. A qualidade dos su-
portes de exibição ou de saída da informação é evidentemente deter-
minante para os usuários dos sistemas de computadores e condiciona
em grande parte seu sucesso prático e comercial. Até os anos 60, a
maior parte dos computadores simplesmente não tinha monitores. As
Primeiras telas exibiam apenas caracteres (letras e números). Hoje já
dispomos de telas planas a cores em cristal líquido, e estão sendo fei-
tos estudos para a comercialização de sistemas de exibição estereos-
cópica de imagens
A evolução das interfaces de saída deu-se no sentido de uma me-
lhoria da definição e de uma diversificação dos modos de comunica-
ção da informação. No domínio visual, além das imagens na tela, a
Mibercultura 37
40
quáticas brilha sob seus olhos. Esse mundo é doce, orgânico,
dominado por uma vegetação onipresente. Ao inclinar-se
para frente, você vai em direção a uma grande árvore que
parece constituir o eixo da clareira sagrada. Surpresa: ao
entrar em contato com a casca da árvore, penetra no alburno
€, como se fosse uma molécula dotada de sensações, toma
os canais que carregam a seiva. Concentrando-se para ins-
pirar profundamente, sobe pelo interior da árvore até chegar
à folhagem. Cercado por cápsulas de clorofila de verde ten-
ro, chega agora a uma folha onde assiste à complicada dança
da fotossíntese. Saindo da folha, voa novamente sobre a
clareira. Desce rumo ao pântano com profundas expirações.
No caminho, cruza novamente uma revoada de vaga-lumes
(ou seriam espíritos?) da qual emanam estranhos sons de
sininhos distantes. Virando a cabeça, é possível vê-los afas-
tarem-se rumo à floresta enquanto chegam, atenuados pela
distância, os últimos ecos das sinetas celestiais. Agora você
se encontra bem próximo à superfície do pântano, onde os
reflexos e jogos de luz fazem com que permaneça algum
tempo. Depois cruza a superfície da água. Um peixe com
nadadeiras ondulantes o recebe no mundo aquático...
Após visitar o pântano, atravessa o mundo da floresta,
o mundo mineral, e depois um espaço estranho, listrado com
tinhas de escrita, que deve ser percorrido através de sua res-
piração e dos movimentos do peito para decifrar frases de
filósofos: englobando a natureza, este é o mundo do discur-
so humano. Por fim, chega ao mundo da informática, povoa-
do apenas por linhas de código. Pensa ter tempo de voltar
para estes diferentes mundos, mas já está tomado por um mo-
vimento ascendente que o leva de forma calma, mas firme, a
deixar o planeta Osmose. A vida neste universo possui ape-
nas um tempo. Enquanto o globo no qual você existiu e sen-
tin, por um curto instante, afasta-se agora no fundo do es-
paço sideral, você lamenta não ter usado satisfatoriamente
o período de imersão. Onde você irá reencarnar agora?
Os princípios que nortearam a concepção de Osmose
são opostos aus que governam os videogames. Não é posst-
vel agir com as mãos. A postura de apreender, manipular ou
combater encontra-se necessariamente conirariada. Ao con-
Pierre Lévy
trário, para evoluir neste mundo vegetal e meditativo, você
é levado a concentrar-se na respiração e nas sensações cines-
tésicas. É preciso estar em osmose com esta realidade virtual
para conhecê-la. Movimentos bruscos ou rápidos não são efi-
cazes. Por outro lado, comportamentos suaves e a atitude
contemplativa são “recompensados”. Em vez de cores fortes,
os mundos da árvore, do pântano, da clareira e da floresta
oferecem à vista um camafeu sutil de verdes e marrons que
evocam mais as tinturas vegetais do que o cintilamento tec-
nológico das imagens geradas por computador. Osmose mar-
caa saída das artes virtuais de sua matriz original de simula-
ção “realista” e geométrica. Este obra apresenta um desmen-
tido marcante para aqueles que querem ver no virtual ape-
nas a busca do “projeto ocidental elou machista de domínio
da natureza e manipulação do mundo”. Aqui, o virtual foi
explicitamente concebido para incitar ao retiro, à autocons-
ciência, ao respeito à natureza, a uma forma “osmótica” de
conhecimento e de relacionamento com o mundo.
À PROGRAMAÇÃO
O ciberespaço não compreende apenas materiais, informações é
seres humanos, é também constituído e povoado por seres estranhos,
meio textos meio máquinas, meio atores, meio cenários: os programas.
Um programa, ou software, é uma lista bastante organizada de instru-
ções codificadas, destinadas a fazer com que um ou mais processadores
executem uma tarefa. Através dos circuitos que comandam, os pro-
gramas interpretam dados, agem sobre informações, transformam ou-
tros programas, fazem funcionar computadores e redes, acionam má-
quinas físicas, viajam, reproduzem-se etc.
Os programas são escritos com o auxílio de linguagens de pro-
gramação, códigos especializados para escrever instruções para pro-
cessadores de computadores. Há um grande número de linguagens de
programação com maior ou menor grau de especialização em deter-
minadas tarefas. Desde o início da informática, engenheiros, matemá-
ticos e lingúistas trabalham para tornar as linguagens de programa-
ção o mais próximas possível da linguagem natural. Podemos distin-
Buir entre as linguagens de programação herméricas e muito próximas
da estrutura material do computador (linguagens de máquina, assem-
blers) e as linguagens de programação “avançadas”, menos dependen-
Cibercultura 41
tes da estrutura do hardware e mais próximas do inglês, tais como
Fortran, Lisp, Pascal, Prolog, C etc. Hoje há algumas linguagens de
“quarta geração”, que permitem a criação de programas por meio do
desenho de esquemas e manipulação de ícones na tela. São criados am-
bientes de programação que fornecem “blocos” básicos de software
prontos para montagem. O programador passa, portanto, menos tem-
po codificando e dedica a maior parte de seu esforço à concepção da
arquitetura do software. Há “linguagens de autoria” que permitem que
pessoas não-especializadas criem por conta própria alguns programas
simples, bases de dados multimídia ou programas pedagógicos.
Os PROGRAMAS
Os programas aplicativos permitem ao computador prestar ser-
viços específicos a seus usuários. Vamos mostrar alguns exemplos clás-
sicos, Alguns programas calculam automaticamente o pagamento dos
empregados de uma empresa, outros emitem faturas para clientes ou
permitem o gerenciamento de estoques, enquanto outros ainda são
capazes de comandar máquinas em tempo real de acordo com infor-
mações fornecidas por sensores. Há sistemas especializados que per-
mitem detectar a origem de panes ou dar conselhos financeiros. Como
o próprio nome já diz, um editor de textos permite a redação, modifi-
cação e organização de textos. Uma planilha mostra uma tabela com
números, mantém a contabilidade, ajuda a tomar decisões de ordem
financeira ou monetária. Um gerenciador de bancos de dados permi-
te a criação de um ou mais bancos de dados, a localização rápida da
informação pertinente segundo diversas chaves de pesquisa, bem como
a apresentação da informação de vários ângulos de acordo com as
necessidades. Um programa gráfico possibilita que gráficos impecá-
veis sejam produzidos de forma simples. Um programa de comunica-
ção permite o envio de mensagens e o acesso a informações armaze-
nadas em outros computadores etc. Os programas aplicativos estão
cada vez mais abertos à personalização evolutiva das funções, sem que
seus usuários sejam obrigados a aprender a programar.
Os sistemas operacionais são programas que gerenciam os recur-
sos dos computadores (memória, entrada e saída etc.) e organizam a
mediação entre o hardware é o software aplicativo. O software apli-
cativo não se encontra, portanto, em contato direto com o hardware.
É por isso que um mesmo aplicativo pode funcionar em diferentes ti-
pos de hardware, desde que tenham o mesmo sistema operacional.
42 Pierre Lévy
uI
O DIGITAL OU A VIRTUALIZAÇÃO DA INFORMAÇÃO
O Bezerro de Ouro
Não muito longe da basílica onde se encontram os mo-
numentos funerários dos antigos reis da França, em Saint-
Denis, ocorre a cada dois anos uma manifestação consagra-
da às artes digitais: Artifices.
Em Novembro de 1996, o principal artista convida-
do era Jeffrey Shaw, pioneiro das artes do virtual e diretor,
na Alemanha, de um importante instituto destinado à cria-
ção nas “novas mídias”.
Ào entrar na exposição, a primeira coisa que você veria
seria a instalação “Bezerro de Ouro”. No meio da primeira
sala, um pedestal claramente feito para receber uma está-
tua não sustenta nada além do vazio. À estátua está ausen-
te. Um tela plana se encontra sobre uma mesa ao lado do
pedestal. Ao pegá-la, você descobre que esta tela de cristal
líquido comporta-se como uma “janela” para a sala: ao
direcioná-la para as paredes ou teto, você vê uma imagem
digital das paredes ou do teto. Au apontá-la para a porta
de entrada, aparece um modelo digital da porta. E quando
atela é virada na direção do pedestal, você é surpreendido
por uma maravilhosa estátua, brilhante, magnificamente
esculpida, do bezerro de ouro, o qual só “existe” virtual.
mente, Ao andar em volta do pedestal, mantendo a tela
direcionada para o vazio acima dele, é possível admirar
todos os ângulos do bezerro de ouro. Aproximando-se, ele
aumenta; afastando-se, diminui. Se você levar a tela bem
para cima do pedestal, entrará dentro do bezerro de ouro
e descobrirá seu segredo: o interior é vazio. Só existe en-
quanto aparência, sobre a face externa, sem reverso, sem
interioridade.
Qualo propósito desta instalação? Em primeiro lugar,
é crítica: O virtual é o novo bezerro de ouro, o novo ídolo
Cibercultura
45
de nossos tempos. Mas também é clássica, pois a obra nos
traz a percepção concreta da natureza de todos os ídolos:
uma entidade que não está realmente presente, uma aparên-
cia sem consistência, sem interioridade. Aqui, O que se busca
não é tanto a ausência de plenitude material, e sim o vazio
de presença e de interioridade viva, subjetiva. O ídolo não
tem existência por si mesmo, somente a que lhe é atribuída
por seus adoradores. A relação com o ídolo é gerada pelo
próprio dispositivo da instalação, uma vez que o bezerro de
ouro só aparece graças à atividade do visitante.
Em um plano no qual os problemas estéticos juntam-
se às interrogações espirituais, a instalação de Jeffrey Shaw
questiona a noção de representação. Na verdade, o bezer-
ro de ouro obviamente remete ao Segundo Mandamento,
que proíbe não só a idolatria mas também a fabricação de
imagens e estátuas “que tenham a forma daquilo que se
encontra no céu, na terra ou nas águas”. Podemos dizer que
Jeffrey Sbaw esculpin uma estátua ou desenhou uma ima-
gem? Sen bezerro de ouro é uma representação? Mas não
há nada sobre o pedestal! A vida e a interioridade sensível
daquilo que voa nos ares ou corre pelo solo não foram cap-
tadas por uma forma morta. Não é um bezerro, exaltado
por uma matéria tida como preciosa, que a instalação co-
loca em cena, mas sim o próprio processo da representação.
No lugar onde, em sentido estrito, há apenas o nada, a ati-
vidade mental e sensório-motora do visitante faz surgir uma
imagem que, quando suficientemente explorada, acaba por
revelar sua nulidade.
Este capítulo é dedicado às novas espécies de mensagens que
proliferam nos computadores e nas redes de computadores, tais como
hipertextos, hiperdocumentos, simulações interativas e mundos vir-
tuais. Como vou tentar mostrar, a virtualidade, compreendida de forma
muito geral, constitui o traço distintivo da nova face da informação.
Uma vez que a digitalização é o fundamento técnico da virtualidade,
uma explicação de seus princípios e funções virá após a apresentação
da noção de virtual que inicia este capítulo.
46 Pierre Lévy
SOBRE O VIRTUAL EM GERAL
À universalização da cibercultura propaga a co-presença e a in-
teração de quaisquer pontos do espaço físico, social ou informacional.
Neste sentido, ela é complementar a uma segunda tendência funda-
mental, a virtualização!.
A palavra “virtual” pode ser entendida em ao menos três senti-
dos: o primeiro, técnico, ligado à informática, um segundo corrente e
um terceiro filosófico? O fascínio suscitado pela “realidade virtual”
decorre em boa parte da confusão entre esses três sentidos. Na acepção
filosófica, é virtual aquilo que existe apenas em potência e não em ato,
o campo de forças e de problemas que tende a resolver-se em uma atua-
lização. O virtual encontra-se antes da concretização efetiva ou for-
mal (a árvore está virtualmente presente no grão). No sentido filosófico,
o virtual é obviamente uma dimensão muito importante da realidade.
Mas no uso corrente, a palavra virtual é muitas vezes empregada para
significar a irrealidade — enquanto a “realidade” pressupõe uma efe-
tivação material, uma presença tangível. A expressão “realidade vir-
tual” soa então como um oxímoro, um passe de mágica misterioso.
Em geral acredita-se que uma coisa deva ser ou real ou virtual, que
ela não pode, portanto, possuir as duas qualidades ao mesmo tempo.
Contudo, a rigor, em filosofia o virtual não se vpõe ao reaí mas sim
ao atual: virtualidade e atualidade são apenas dois modos diferentes
da realidade. Se a produção da árvore está na essência do grão, então
a virtualidade da árvore é bastante real (sem que seja, ainda, atual).
É virtual roda entidade “desterritorializada”, capaz de gerar diver-
sas manifestações concretas em diferentes momentos e locais determina-
dos, sem contudo estar ela mesma presa a um lugar ou tempo em parti-
cular. Para usar um exemplo fora da esfera técnica, uma palavra é uma
entidade virtual. O vocábulo “árvore” está sempre sendo pronuncia-
do em um local ou outro, em determinado dia numa certa hora, Cha-
maremos a enunciação deste elemento lexical de “atualização”. Mas
! Neste ponto, gostaria de remeter o leitor a minha obra O que é o virtual,
São Paulo, Editora 34, 1997, que aborda a questão de um ponto de vista filosófi-
co e antropológico.
2 Ainda há outros sentidos para esta palavra em ótica, mecânica etc. Assinalo,
além de meu livro O gue é o virtual, op. cit., as fascinantes análises de René Berger
em L'origine dy futur, Paris, Le Rocher, 1996, sobretudo no capítulo “Le virruel
jubilatoire”, além da obra de Jean-Cler Martin, L image virtuelle, Paris, Kimé, 1996.
Cibercultura 47
as características virtualizante e desterritorializante do ciberespaço
fazem dele o vetor de um universo aberto. Simetricamente, a extensão
de um novo espaço universal dilara o campo de ação dos processos
de virtualização.
O DIGITAL
Digitalizar uma informação consiste em traduzi-la em números.
Quase todas as informações podem ser codificadas desta forma. Por
exemplo, se fizermos com que um número corresponda a cada letra
do alfabeto, qualquer texto pode ser transformado em uma série de
números.
Uma imagem pode ser transformada em pontos ou pixels (piciure
elements). Cada um destes pontos pode ser descrito por dois números
que especificam suas coordenadas sobre o plano e por outros três nú-
meros que analisam a intensidade de cada um dos componentes de sua
cor (vermelho, azul e verde por síntese aditiva). Qualquer imagem ou
segiiência de imagens é portanto traduzível em uma série de números.
Um som também pode ser digitalizado se for feita uma amos-
tragem, ou seja, se forem tiradas medidas em intervalos regulares (mais
de 60 mil vezes por segundo, a fim de capturar as altas frequências).
Cada amostra pode ser codificada por um número que descreve o si-
nal sonoro no momento da medida. Qualquer segiiência sonora ou
musical pode ser, portanto, representável por uma tista de números.
As imagens e os sons também podem ser digitalizados, não apenas
ponto a ponto ou amostra por amostra mas também, de forma mais eco-
nômica, a partir de-descrições das estruturas globais das mensagens ico-
nográficas ou sonoras. Para tanto, usamos sobretudo funções senvidais
para o som e funções que geram figuras geométricas para as imagens.
Em geral, não importa qual é o tipo de informação ou de mensa-
gem: se pode ser explicitada ou medida, pode ser traduzida digitalmente?.
3 Por exemplo, uma imagem será decomposta em pixels. Cada pixcl de uma
imagem a cores é representado em um computador por cinco números: dois nú-
meros para as coordenadas do ponto é três números para a intensidade de cada
uma das três componentes elementares da cor, Essa codificação pode gerar per-
das de informação. Quando mais fino for a “grau de resolução” da codificação,
menos perdas haverá. Por exemplo, uma imagem pode ser codificada em 2.56 pixels
1256 x 5 números), ou em 1024 pixels (1024 x $ números). A perda de informa-
ção será menor no segundo caso. A partir de um certo grau de resolução, contu-
do, a perda de informação não é mais perceptível por seres humanos.
so Pierre Léwy
Ora, todos os números podem ser expressos em linguagem binária, sob
forma de 0 e 1. Portanto, no limite, todas as informações podem ser
representadas por esse sistema, Há três motivos pelos quais essa bi-
narização interessa.
Por um lado, há dispositivos técnicos bastante diversos que po-
dem gravar e transmitir números codificados em linguagem binária.
De fato, os números binários podem ser representados por uma gran-
de variedade de dispositivos de dois estados (aberto ou fechado, pla-
no ou furado, negativo ou positivo etc.). É assim que os dígitos cir-
culam nos fios elétricos, informam circuitos eletrônicos, polarizam
fitas magnéticas, se traduzem em lampejos nas fibras óticas, micros-
sulcos nos discos óticos, se encarnam em estruturas de moléculas bio-
lógicas etc.
A seguir, as informações codificadas digitalmente podem ser
transmitidas e copiadas quase indefinidamente sem perda de informa-
ção, já que a mensagem original pode ser quase sempre reconstituída
integralmente apesar das degradações causadas pela transmissão (te-
lefônica, hertziana) ou cópia, O que não é, evidentemente, o caso dos
sons e imagens gravados de forma analógica, os quais se degradam
irremediavelmente a cada nova cópia ou transmissão. À codificação
analógica de uma informação estabelece uma relação proporcional
entre um certo parâmetro da informação a ser traduzida e um certo
parâmetro da informação traduzida. Por exemplo, o votume de um
som será codificado pela intensidade de um sinal elétrico (ou a cria-
ção de um sulco em um disco de vinil): quanto maior o volume, mais
intenso o sinal elétrico (ou mais fundo o sulco). A informação ana-
lógica é, portanto, representada por uma segiiência contínua de va-
tores. Por outro lado, a informação digital usa apenas dois valores,
nitidamente diferenciados, o que torna a reconstituição da informa-
ção danificada incomparavelmente mais simples, graças a diversos
processos de controle da integridade das mensagens.
s importante, os números codificados em bi-
nário podem ser objeto de cálculos aritméticos e lógicos executados
por circuitos eletrônicos especializados. Mesmo se falamos muitas vezes
de “imaterial” ou de “virtual” em relação ao digital, é preciso insistir
no fato de que os processamentos em questão são sempre operações
físicas elementares sobre os representantes físicos dos O e 1: apagamen-
to, substituição, separação, ordenação, desvio para determinado en-
dereço de gravação ou canal de transmissão.
Por último, o mai
Cibercultura s1
Após terem sido tratadas, as informações codificadas em biná-
rio vão ser traduzidas (automaticamente) no sentido inverso, e irão
manifestar-se como textos legíveis, imagens visíveis, sons audíveis,
sensações tácteis ou proprioceptivas, ou ainda em ações de um robô
ou outro mecanismo.
Mas por que há uma quantidade crescente de informações sen-
do digitalizadas e, cada vez mais, sendo diretamente produzidas nes-
ta forma com os instrumentos adequados? À principal razão é que a
digitalização permite um tipo de tratamento de informações eficaz e
complexo, impossível de ser executado por outras vias.
PROCESSAMENTO AUTOMÁTICO, RÁPIDO,
PRECISO, EM GRANDE ESCALA
A informação digitalizada pode ser processada automaticamen-
te, com um grau de precisão quase absoluto, muito rapidamente e em
grande escala quantitativa. Nenhum outro processo a não ser o pro-
cessamento digital reúne, ao mesmo tempo, essas quatro qualidades.
A digitalização permite o controle das informações e das mensagens
“bit a bit”, número binário a número binário, e isso na velocidade de
cálculo dos computadores.
Comecemos com um exemplo simples, um romance de trezen-
tas páginas digitalizado. Por meio de um programa de processamento
de textos, posso ordenar a meu computador que substitua codas as
ocorrências de “Durand” por “Dupont”. O computador executará a
ordem em poucos segundos. Em meu disco rígido, a memória magné-
tica permanente do computador onde as informações estão codifica-
das em binário, todos os nomes foram alterados quase instantanea-
mente. Se o texto tivesse sido impresso, a mesma operação levaria,
necessariamente, muito mais tempo. Posso também inverter a ordem
de dois capítulos e alterar a numeração das páginas em poucos segun-
dos. Posso mudar a fonte dos caracteres, enquanto essa mesma ope-
ração com caracteres de chumbo exigiria uma nova composição do tex-
to, e assim por diante.
Tomemos agora os sons. Uma vez que um trecho tocado ao vio-
lino, por exemplo, tenha sido digitalizado, programas específicos de
processamento de áudio permitem que o andamento seja retardado ou
acelerado sem modificar as frequências dos sons (graves e agudos).
Também é possível isolar o timbre do instrumento e usá-lo para tocar
outra melodia. Podemos, tocando o mesmo trecho, calcular (e repro-
s2 Pierre Lévy
nenhum estatuto ontológico ou propriedade estética fundamentalmente
diferente de qualquer outro tipo de imagem. Contudo, se considerar-
mos não mais uma única imagem (ou um único filme), mas o conjunto
de todas as imagens (ou de todos os filmes), diferentes umas das outras,
que poderiam ter sido produzidas automaticamente por um compu-
tador a partir do mesmo engrama numérico, penetramos em um novo
universo de geração dos signos. À partir de um estoque de dados ini-
ciais, de uma coleção de descrições ou modelos, um programa pode
calcular um número indefinido de diferentes manifestações visíveis,
audíveis ou tangíveis, de acordo com a situação presente ou das ne-
cessidades dos usuários. O computador, então, não é apenas uma fer-
ramenta a mais para a produção de textos, sons e imagens, é antes de
mais nada um operador de virtualização da informação.
HiPERDOCUMENTOS
Um CD-ROM (Compact-Dise Read Only Memory) ou um CD-
T(Compact-Disc Interactive) são suportes de informação digital com
leitura a laser. Contêm sons, textos € imagens (fixas ou em movimento)
que são exibidos em telas de computador no caso dos CD-ROMs, ou
em televisões no caso dos CD-I (com a utilização de equipamento espe-
cial). Quem consulta um CD-ROM “navega” pelas informações, passa
de uma página-tela ou de uma sequência animada para outra indicando
com um simples gesto os temas de interesse ou as linhas de leitura que
deseja seguir. Esta navegação é feita por meio de “cliques” executa-
dos com o mouse sobre ícones na tela, apertando uma tecla do tecla-
do, manipulando um controle remoto ou acionando joysticks quan-
do se trata de jogos. Enciclopédias, títulos com temas artísticos, mu-
sicais ou lúdicos, os CD-ROMs são as formas de hiperdocumento mais
conhecidas do público no final dos anos 90. Os CD-ROMs (capazes
de conter o texto de uma enciclopédia de trinta volumes) serão em breve
substituídos pelos DVD (Digital Video Disc)ó cuja memória, seis vez:
superior, poderá comportar um filme de vídeo em “tela cheia”.
Se tomarmos a palavra “texto” em seu sentido mais amplo (que
não exclui nem sons nem imagens), os hiperdocumentos também po-
dem ser chamados de hipertexros. À abordagem mais simples do hiper-
$ Não existe, na verdade, um consenso sobre o significado da sigla DVD que
tanto pode ser Digital Versatile Disc. mais comum, e Digital Video Disc, confor-
me diz o autor. (N. do To
Cibercultura
texto é descrevê-lo, em oposição a um texto linear, como um texto
estruturado em rede. O hipertexto é cons ruído por nós (os elemen-
tos de informação, parágrafos, páginas, imagens, sequências musicais
etc.) e de links entre esses nós, referências, notas, ponteiros, “botões”
indicando a passagem de um nó a outro.
Um romance é percorrido, em princípio, da primeira à última li-
nha, um filme da primeira à última imagem. Mas como ler uma enci-
clopédia? Pode-se começar consultando o sumário ou o índice remissi
vo, que nos remete a um ou mais artigos. No final de um artigo, são
mencionados outras artigos correlacionados etc. Cada qual entra nesta
“navegação” de acordo com os assuntos de seu interesse, e caminha
de forma original na soma das informações, usando as ferramentas de
orientação que são os dicionários, léxicos, sumário, índice remissivo,
atlas, tabela de números e índice de tópicos que são, em si mesmos,
pequenos hipertextos. Mantendo ainda a definição de “texto em rede”
on de rede de documentação, uma biblioteca pode ser considerada
como um hipertexto. Nesse caso, a ligação entre os volumes é mantida
pelas remissões, as notas de pé de página, as citações e as bibliografias.
Fichários e catálogos constituem os instrumentos de navegação global
na biblioteca.
Entretanto, o suporte digital traz uma diferença considerável em
relação aos hipertexros que antecedem a informática: a pesquisa nos
sumários, o uso dos instrumentos de orientação, a passagem de um
nó a outro são feitos, no computador, com grande rapidez, da ordem
de alguns segundos. Por outro lado, a digitalização permite a associação
na mesma mídia e a mixagem precisa de sons, imagens e textos. De
acordo com esta primeira abordagem, o hipertexto digital seria definido
como informação multimodal disposta em uma rede de navegação
rápida e “intuitiva”, Em relação às técnicas anteriores de ajuda à leitura,
a digitalização introduz uma pequena revolução copernicana: não é
mais o navegador que segue os instrumentos de leitura e se desloca
fisicamente no hipertexto, virando as páginas, deslocando volumes pe-
sados, percorrendo a biblioteca. Agora é um texto móvel, caleidos-
cópico, que apresenta suas facetas, gira, dobra-se e desdobra-se à von-
tade frente ao leitor.
Está sendo inventada hoje uma nova arte da edição e da documen-
tação, que tenta explorar ao máximo essa nova velocidade de nave-
gação entre as massas de informação que são condensadas em volu-
mes cada vez menores.
i-
56 Pierre Lévy
De acordo com uma segunda abordagem, complementar, a ten-
dência contemporânea à hipertextualização dos documentos pode ser
definida como uma tendência à indeterminação, à mistura das funções
de leitura e de escrita. Pensemos inicialmente a coisa do ponto de vista
do leitor. Se definirmos um hipertexto como um espaço de percurso
para leituras possíveis, um texto aparece como uma leitura particular
de um hipertexto. O navegador participa, portanto, da redação do texto
que lê. Tudo se dá como se o autor de um hipertexto constituíss
matriz de textos potenciais, o papel dos navegantes sendo o de realizar
alguns desses textos colocando em jogo, cada qual à sua maneira, a
combinatória entre os nós. O hipertexto opera a virtualização do texto.
O navegador pode tornar-se autor de maneira mais profunda do
que ao percorrer uma rede preestabelecida: ao participar da estru-
turação de um texto. Não apenas irá escolher quais links preexistentes
serão usados, mas irá criar novos links, que terão um sentido para ele
e que não terão sido pensados pelo criador do hiperdocumento. Há
sistemas igualmente capazes de gravar Os percursos e reforçar (tornar
mais visíveis, por exemplo) ou enfraquecer os links de acordo com a
forma pela qual são percorridos pela comunidade de navegadores.
Finalmente, os leitores podem não apenas modificar os links, mas
também acrescentar ou modificar nós (textos, imagens erc.), conectar
um hiperdocumento a outro e dessa forma transformar em um único
documento dois hipertextos que antes eram separados ou, de acordo
com o ponto de vista, traçar links hipertextuais entre um grande núme-
ro de documentos. Atente-se para o fato de que essa prática encontra-
se hoje em pleno desenvolvimento na Internet, sobretudo na Web*,
Nestas duas últimas modalidades de navegação, os documentos não
se encontram mais fixados em um CD-ROM, mas são acessíveis on-
line para uma comunidade de pessoas. Quando o sistema de visuali-
zação em tempo real da estrutura do hipertexto (ou sua cartografia
dinâmica) é bem concebido, ou quando a navegação pode ser efetua-
da de forma natural e intuitiva, os hiperdocumentos abertos acessíveis
por meio de uma rede de computadores são poderosos instrumentos
de escrita-leitura coletiva.
uma
$ Em sentido estrito, essa “prática” só é possível na Web, uma vez que a
Internet, em si, é apenas o suporte físico para a informação. Quase todos os ou-
tros serviços hoje utilizados na Internet e que não fazem parte da Web (ou seja.
não usam HTML, como é o caso de FTP ou do mIRC) não permitem a estruturação
de hipertextos de forma alguma. (N. do T.)
Cibercultura 57
60
Em quase toda a parte, as ilustrações desdobram o te-
ma da interatividade. Em um exemplo, um quadro se trans-
forma em função do deslocamento do olhar do observador
(a imagem da face do espectador é captada por uma câme-
ra oculta e analisada por um programa), Em outro, explo-
ra-se um ambiente segurando na mão uma grande bola se-
melhante ao globo ocular. O dispositivo “enxerga” como
se tivéssemos um olho na extremidade da mão. Em um ter-
ceiro exemplo, atua-se sobre os movimentos de um enxame
de borboletas em computação gráfica, deslocando o facho
de uma lanterna sobre a superfície de projeção da imagem.
Seguindo os links bipertextuais, você chega ao texto
de David Le Breton, que acredita que as tecnologias virtuais
fazem com que o corpo desapareça, ou então o reificam, e
que são apenas a continuação do velho projeto ocidental,
machista e judaico-cristão de dominação da natureza. Clara-
mente, David Le Breton não explorou Osmose. Na parte
inferior da tela, as faces de alguns conferencistas são exibidas
por alguns segundos, substituídas em seguida por outras
faces de conferencistas. Ao clicar sobre a face de Derrick de
Kerckove, com curiosidade, sua voz gravada explica que as
tecnologias do virtual e da telepresença estendem e exaltam
o sentido do toque. Algo que contradiz o que você acabara
de ler. O CD-ROM foi organizado de forma a simular uma
espécie de conversa fictícia entre os conferencistas, cada um
citando exemplos que apóiam suas teses, enquanto o nave-
gador permanece mestre do ritmo e dos rumos dessa con-
versa virtual, mestre do degelo desse discurso plural grava-
do em disco. Para que os exploradores não andem em cír-
cultos, os links já seguidos não são exibidos novamente na
mesma sessão de consulta.
A imagem de um homem se transforma progressiva e
imperceptivelmente na imagem de um macaco: morphing.
O digital é o meio das metamorfoses.
Voxelmann, o atlas anatômico virtual, permite a ob-
tenção de todos os cortes imagináveis sobre o modelo digi-
tal de um corpo. Incrível a complexidade dos seios.
Five Into One, a cidade virtual de Matt Mulican, co-
loca no espaço tridimensional um conceito filosófico, uma
Pierre Lévy
cosmologia abstrata. A imagem virtual anuncia uma pas-
sagem para o sensível do mundo das idéiaslO?
O bordo japonês modelado pelo Centro internacional
de pesquisas sobre agricultura e desenvolvimento (Cirad)
surge primeiro em seu aspecto invernal, com o vento sopran-
do na trilha sonora. Depois os brotos nascem, os galhos são
cobertos por um verde tenro, os pássaros gorjeiam. A fo-
lhagem se torna mais abundante, mais densa, seu verde es-
curece, enquanto ressoa o coaxar dos sapos, característico
das noites de verão. Finalmente as folhas ficam amarelas,
vermelhas, caem, e chega de novo o inverno. Poesia simples
das estações, atraente contração do tempo evocada pela
computação gráfica.
O autor ou, na maioria dos casos, a equipe de criação usam além
disso máquinas, programas e características de interfaces preexistentes
na constituição de seu hiperdocumento. Este resulta de uma navega-
ção particular entre informações, materiais, programas disponíveis. O
hiperdocumento editorado, portanto, é em si mesmo um percurso em
meio a um hiperdocumento mais vasto e mais vago.
A escrita c a leitura trocam seus papéis. Aquele que participa da
estruturação de um hipertexto, do traçado pontilhado das possíveis
dobras do sentido, já é um feitor. Simetricamente, aquele que atualiza
um perenrso, ou manifesta determinado aspecto da reserva documental,
contribui para a redação, finaliza temporariamente uma escrita inter-
minável. Os cortes e remissões, os caminhos de sentidos originais que
o leitor inventa podem ser incorporados à própria estrurura dos corpus.
Com o hipertexto, toda leitura é uma escrita potencial.
MULTIMÍDIA OU UNIMÍDIA?
A palavra “multimídia” gera tanta confusão que é necessário,
antes de falarmos desse assunto, definir algumas palavras-chave do
universo da informação e da comunicação.
A mídia é o suporte ou veículo da mensagem. O impresso, o rá-
dio, a televisão, o cinema ou a Internet, por exemplo, são mídias.
19 Que a imagem virtual seja a passagem para o sensível do mundo das idéias
postulado pela filosofia, esta é uma das teses do interessante livro de Jean-Cler
Martin, op. cit.
Cibercultura 6
A recepção de uma mensagem pode colocar em jogo diversas
modalidades perceptivas. O impresso coloca em jogo sobretudo a vi-
são, em segundo lugar o tato. Desde que o cinema é falado, ele envol-
ve dois sentidos: visão e audição. As realidades virtuais podem colo-
car em jogo a visão, a audição, o tato e a cinestesia (sentido interno
dos movimentos do corpo).
Uma mesma modalidade perceptiva pode permitir a recepção de
diversos tipos de representações. Por exemplo, o impresso (que mobi-
liza apenas a visão) carrega texto e imagem. O disco de áudio (que
utiliza apenas a audição) permite a transmissão da palavra e da música.
A codificação, analógica ou numérica, refere-se ao sistema fun-
damental de gravação e transmissão das informações. O disco de vi-
nil codifica o som da forma analógica, ao passo que o CD de áudio
codifica-o digitalmente. O rádio, a televisão, o cinema e a fotografia
podem ser analógicos ou digitais.
O dispositivo informacional qualifica a estrutura da mensagem
ou o modo de relação dos elementos de informação. A mensagem pode
ser linear (como ocorre com a música normal, o romance ou o cine-
ma) ou em rede, Os hiperdocumentos codificados digitalmente não
foram os criadores da estrutura em rede já que, como vimos, um dicio-
nário (no qual cada palavra nos remete implicitamente a outras pata-
vras e que em geral não lemos do início ao fim), uma enciclopédia (com
seu índice, tesauro e remissões múltiplas), uma biblioteca (com seus
fichários e referências cruzadas de um livro para outro) já possuem uma
estrutura reticulada. O ciberespaço fez com que surgissem dois dispo-
sitivos informacionais que são originais em relação às mídias prece-
dentes: o mundo virtual e a informação em fluxo. O mundo virtual
dispõe as informações em um espaço contínuo — e não em uma rede
— e o faz em função da posição do explorador ou de seu representan-
te dentro deste mundo (princípio de imersão). Neste sentido, um vi-
deogame já é um mundo virtual. A informação em fluxo designa da-
dos em estado contínuo de modificação, dispersos entre memórias e
canais interconectados que podem ser percorridos, filtrados e apresen-
tados ao cibernauta de acordo com suas instruções, graças a progra-
sistemas de cartografia dinâmica de dados ou outras ferramen-
tas de auxílio à navegação. Note-se que o mundo virtual e a informa-
ção em fluxo tendem a reproduzir em grande escala, e graças a supor-
tes tecnicamente avançados, uma relação “não-midiatizada” com a in-
formação. A noção de dispositivo informacional é, em princípio, in-
mi
62 Pierre Lévy
sentido deve ser “multimodal”, o termo não descreve suficientemente
bem a especificidade deste novo suporte, já que uma enciclopédia, ou
alguns livros manipuláveis para crianças, ou brochuras ilustradas acom-
panhadas por fitas cassete (tais como os métodos de ensino de línguas)
já são multimodais (texto, imagem, som, tato), ou mesmo multimídia.
Sendo rigoroso, seria preciso definir os CD-ROMs e CD-] como do-
cumentos multimodais interativos de suporte digital ou, de forma breve,
como hiperdocumentos.
Em segundo lugar, a palavra “multimídia” remete ao movimen-
to geral de digitalização que diz respeito, de forma mais imediata ou
mais distante, às diferentes mídias que são a informática (por defini-
ção), o telefone (em andamento), os discos musicais (já feito), a edi-
ção (parcialmente realizado com os CD-ROMs e CD interativos), o
rádio, a fotografia (em andamento), o cinema e a televisão. Se a digi-
talização encontra-se em marcha acelerada, a integração de todas as
mídias continua sendo, em contrapartida, uma tendência a longo prazo.
É possível, por exemplo, que a televisão, mesmo digital e mais “in-
terativa” que atualmente, ainda continue por bastante tempo como
uma mídia relativamente distinta.
O termo “multimídia” é corretamente empregado quando, por
exemplo, o lançamento de um filme dá lugar, simultaneamente, ao
lançamento de um videogame, exibição de uma série de televisão, ca-
misetas, brinquedos etc. Neste caso, estamos de fato frente a uma
“estratégia multimídia”. Mas se desejamos designar de maneira clara
a confluência de mídias separadas em direção à mesma rede digital
integrada, deveríamos usar de preferência a palavra “unimídia”. O
termo multimídia pode induzir ao erro, já que parece indicar uma
variedade de suportes ou canais, ao passo que a tendência de fundo
vai, ao contrário, rumo à interconexão e à integração.
Em resumo, quando ouvimos ou lemos o termo “multimídia”,
em um contexto no qual ele não parece designar um tipo particular
de suporte (ver a discussão sobre os CD-ROMs) ou de processamento,
é necessário ser caridoso e atribuir ao enunciador a intenção de designar
um horizonte de unimídia multimodal, ou seja, a constituição progres-
siva de uma estrutura de comunicação integrada, digital e interativa.
Entim, a palavra “multimídia”, quando empregada para desig-
nar a emergência de uma nova mídia, parece-me particularmente ina-
dequada, já que chama atenção sobre as formas de representação (tex-
tos, imagens, sons etc.) ou de suportes, enquanto a novidade princi-
Cibercultura 65
pal se encontra nos dispositivos informacionais (em rede, em fluxo,
em mundos virtuais) e no dispositivo de comunicação interativo e
cominitários ou, em outras palavras, em um modo de relação entre
as pessoas, em uma certa qualidade de laço social.
SIMULAÇÕES
Antes do primeiro vôo de um avião, é recomendável testar, de
alguma forma, o modo pelo qual suas asas irão reagir aos ventos, à
pressão do ar € às turbulências atmosféricas. Por razões evidentes de
custo, na verdade seria preferível ter uma idéia da resistências das asas
antes de construir um protótipo. Para tanto, é possível construir um
modelo em escala do avião e submetê-lo a ventos violentos em um túnel
de vento. Durante muito tempo, este foi o procedimento adotado. Com
o aumento da potência de cálculo dos computadores e a redução de
seu custo, tornou-se agora mais rápido e mais barato fornecer ao com-
putador uma descrição do avião, uma descrição do vento e fazer com
que ele calcule, a partir desses dados, uma descrição do efeito do ven-
to sobre as superfícies de sustentação. Dizemos então que o computa-
dor simulou a resistência do ar para o avião. Para que a resposta do
computador seja correta, é preciso que as descrições fornecidas, tan-
to as do avião como as do vento, sejam rigorosas, precisas e coeren-
tes. Chamamos de modelos essas descrições rigorosas dos objetos ou
fenômenos a serem simulados.
O resultado da simulação pode ser retornado como uma série de
números indicando, por exemplo, a pressão máxima por centímetro
quadrado das asas. Mas o mesmo resultado pode ser mostrado atra-
vés de imagens representando a superfície do avião, onde cada qua-
drado desta recebe uma cor em função da maior pressão a que foi
submetido. Em vez de uma imagem fixa, o sistema de simulação pode
exibir uma representação em três dimensões, que o engenheiro pode
girar à vontade na tela, a fim de observar a superfície do avião sob to-
dos os pontos de vista possíveis. O sistema também pode apresentar
uma representação dinâmica, como um desenho animado, visualizando
os fenômenos de turbilhonamento, a pressão exercida, a temperatura
e outras variáveis importantes (a critério do usuário) à medida que o
vento se torna cada vez mais forte, Finalmente, o sistema de simula-
ção permite ao engenheiro modificar facilmente certos parâmetros da
descrição do vento, ou a forma e as dimensões do avião, e também
visualizar imediatamente o efeito dessas modificações. Passamos sem
66 Pierre Lévy
sentir da noção simples de simulação numérica à noção de simulação
gráfica interativa. O fenômeno simulado é visualizado, podemos atuar
em tempo real sobre as variáveis do modelo e observar imediatamente
na tela as transformações resultantes. Podemos simular de forma gráfica
e interativa fenômenos muito complexos ou abstratos, para os quais
não existe nenhuma “imagem” natural; dinâmica demográfica, evo-
lução de espécies biológicas, ecossistemas, guerras, crises econômicas,
crescimento de uma empresa, orçamentos etc, Neste caso, a modela-
gem traduz de forma visual e dinâmica aspectos em geral não-visíveis
da realidade e pertence, portanto, a um tipo particular de encenação.
Tais simulações podem servir para testar fenômenos ou situações
em todas suas variações imagináveis, para pensar no conjunto de con-
segiiências « de implicações de uma hipótese, para conhecer melhor
objetos ou sistemas complexos ou ainda para explorar universos fic-
tícios de forma lúdica. Repetimos que todas as simulações baseiam-se
em descrições ou modelos numéricos dos fenômenos simulados e que
elas valem tanto quanto as descrições.
Lugares
A segunda instalação de Jeffrey Shaw em Artífices, em
1996, chama-se “Places” em inglês ou “Lugares” em por-
tuguês. No centro de uma grande sala em formato cilíndri-
co encontra-se uma torre sobre a qual o visitante pode gi-
rar uma espécie de canhão que projeta sobre a parede cir-
cular, usada como tela, uma imagem de 120 graus. Após
familiarizar-se com o manuseio do equipamento (virar à es-
querda ou direita, avançar ou recuar na imagem), o visitante
começa a explorar o universo que lhe é mostrado. Trata-se
de um complexo de doze cilindros achatados, comparáveis
em sua forma à sala onde se encontra a instalação. Quan-
do o visitante consegue penetrar (virtualmente) em um dos
cilindros, um controle especial permite que ele se coloque
automaticamente no centro e efetue uma panorâmica. Exe-
cutando uma rotação completa, o canhão de imagens pro-
jeta na parede da sala o panorama “contido” no cilindro.
Descobre-se, por exemplo, uma paisagem industrial com
grandes reservatórios de gás, gasolina e petróleo ou, em
outro cilindro, uma visão magnífica de cumes cobertos com
neve e florestas alpinas. Note-se que o visitante, em cima
Cibercultura 67
pestivos dos seres vivos perturbando a ordem simbólica e
que evocam esta frase do Talmude: “Deus é à sombra do
homem.
ESCALA DOS MUNDOS VIRTUAIS
Alguns sistemas de informação são concebidos:
— para sirular uma interação entre uma situação dada e uma
pessoa,
— para permitir que o explorador humano tenha um controle
rígido e em tempo real sobre seu representante no modelo da situa-
ção simulada.
Esses sistemas dão ao explorador do modelo a sensação subjetiva
(embora a ilusão completa seja muito rara) de estar em interação pes-
soal e imediata com a situação simulada.
No exemplo da simulação da resistência das asas à pressão do
vento, embora o explorador pudesse alterar o ângulo de visão, a vi-
sualização das variáveis pertinentes, a velocidade do vento ou a for-
ma do avião, ele mesmo não estava representado no modelo, c agia
do exterior. Vamos continuar na aviação e pensar agora em um simu-
lador de vôo. Em um sistema desse tipo, o aprendiz de piloto se em-
contra em uma cabine de pilotagem que se parece com as cabines reais.
Consulta mostradores e telas idênticos aos que estão presentes nas
cabines de verdade. Segura o manche e controles parecidos com os de
um avião que voe. Mas em vez de comandar o vôo de um avião, seus
atos alimentam com dados um programa de simulação. Em função do
fluxo de dados fornecido pelo aprendiz de piloto, bem como de mo-
delos digitais muito precisos do avião e do lugar geográfico, o programa
vai calcular a posição, a velocidade e a direção que um avião de ver-
dade teria em resposta aos controles. Graças a esses cálculos efetuados
em altíssima velocidade, o sistema de simulação projeta na tela a pai-
sagem exterior que o piloto veria, exibe nos mostradores os números
que ele leria erc.
A realidade virtual
A “realidade virtual”, no sentido mais forte do termo, especifica
um tipo particular de simulação interativa, na qual o explorador tem
a sensação física de estar imerso na situação definida por um banco
de dados. O efeito de imersão sensorial é obrido, em geral, pelo uso
de um capacete especial e de datagloves. O capacete possui duas telas
70 Pierre Lévy
colocadas a poucos milímetros dos olhos do usuário e que lhe dão uma
visão estercoscópica. Às imagens exibidas nas telas são calculadas em
tempo real em função dos movimentos de cabeça do explorador, de
forma que ele possa conhecer o modelo digital como se estivesse situado
“dentro” ou “do outro lado da tela”. Fones estéreo completam a sensa-
ção de imersão. Por exemplo, um som ouvido à esquerda ficará à direita
após uma volta de 180 graus. As datagloves permitem a manipulação
de objetos virtuais. Em outras palavras, o explorador vê e sente que a
imagem de sua mão no mundo virtual (sua mão virtual) é comandada
pelos movimentos efetivos de sua mão, e pode modificar o aspecto ou
a posição de objetos virtuais. Movimentos simples da mão transformam
o conteúdo da base de dados, e essa modificação é devolvida ao explo-
rador imediatamente de forma sensível. O sistema calcula em tempo
real as imagens e os sons resultantes da modificação executada na
descrição digital da situação e remete essas imagens e sons às telas e
fones do capacete do explorador. Diversos processos técnicos (mecâni-
cos, magnéticos, óticos) são usados para captar os movimentos da cabe-
ça e da mão do explorador. Um grande poder de processamento é ne-
cessário para calcular imagens de alta resolução em tempo real, o que
explica a característica esquemática que muitos dos “mundos virtuais”
possuíam em 1996, Há várias pesquisas em andamento acelerado para
melhorar o desempenho visual e sonoro dos sistemas de realidade
virtual e dar aos exploradores sensações tácteis e proprioceptivas mais
precisas.
Ao manter uma interação sensório-motora com o conteúdo de
uma memória de computador, o explorador consegue a ilusão de uma
“realidade” na qual estaria mergulhado: aquela que é descrita pela me-
mória digital. Na verdade, o explorador de uma realidade virtual não
pode esquecer que o universo sensorial no qual está imerso é apenas
virtual, já que as imagens é o som não terão, por muito tempo ainda,
a definição que possuem no cinema, já que há sempre um pequeno
atraso entre os movimentos é suas repercussões sensoriais, já que os
equipamentos são relativamente pesados e, sobretudo, já que o explo-
rador sabe que está interagindo com uma realidade virtual, Assim co-
mo o cinema ou a televisão, a realidade virtual é da ordem da conven-
ção, com seus códigos, seus rituais de entrada e saída. Não podemos
confundir a realidade virtual com a realidade cotidiana, da mesma
forma como não podemos confundir um filme ou um jogo com a “ver-
dadeira realidade”.
Cibercultura a
A virtualidade no sentido do dispositivo informacional (sentido
mais fraco que o anterior)
Um mundo virtual pode simular fielmente o mundo real, mas de
acordo com escalas imensas ou minúsculas. Pode permitir ao explo-
rador que construa uma imagem virtual muito diferente de sua apa-
rência física cotidiana. Pode simular ambientes físicos imaginários ou
hipotéticos, submetidos a leis diferentes daquelas que governam o
mundo comum. Pode, finalmente, simular espaços não-físicos, dotipo
simbólico ou cartográfico, que permitam a comunicação por meio de
um universo de signos compartilhados.
Um mapa não é uma foto realista, mas uma semiotização, uma
descrição úril de um território. Por analogia, um mundo virtual pode
ser da família dos mapas e não da família das cópias ou das ilusões.
Além disso, o território cartografado ou simulado pelo mundo virtual
não é necessariamente o universo físico tridimensional, Pode dizer
respeito a modelos abstratos de situação, a universos de relações, a
complexos de significações, a conhecimentos, a jogos de hipóteses, até
mesmo a combinações híbridas de todos estes “territórios”.
Em um sentido mais fraco que o implicado numa ilusão senso-
rial “realista”, a noção de mundo virtual não implica, necessariamen-
te, a simulação de espaços físicos nem o uso de equipamentos pesa-
dos e caros, tais como os capacetes para visão estereoscópica e as
datagloves.
As duas características distintivas do mundo virtual, em sentido
mais amplo, são a imersão e a navegação por proximidade. Os indi-
víduos ou grupos participantes são imersos em um mundo virtual, ou
seja, eles possuem uma imagem de si mesmos e de sua situação. Cada
ato do indivíduo ou do grupo modifica o mundo virtual e sua imagem
no mundo virtual, Na navegação por proximidade, o mundo virtual
orienta os atos do indivíduo ou do grupo. Além dos instrumentos de
pesquisa e endereçamento clássicos (índices, links hipertextuais, pes-
quisa por palavras-chave etc.), as demarcações, pesquisas e comuni-
cações são feitas por proximidade em um espaço contínuo. Um mun-
do virtual, mesmo não “realista”, é portanto fundamentalmente or-
ganizado de acordo com uma modalidade “táctil” e proprioceptiva
(real ou transposta). O explorador de um mundo virtual (não neces-
sariamente “realista”) deve poder controlar seu acesso a um imenso
banco de dados de acordo com princípios e reflexos mentais análo-
gos aos que o fazem controlar o acesso a seu ambiente físico imediato.
72 Pierre Lévy
de guerra, nave espacial, central nuclear, refinaria erc.) é impossível
listar todas as situações de falha possíveis. O manual contenta-se em
apresentar exemplos dos casos mais frequentes e cm indicar princípios
de solução de problemas para os outros casos. Na prática, apenas téc-
nicos experientes poderão executar os reparos.
Por outro lado, na informática, um sistema especializado cm ajuda
à solução de problemas da mesma instalação contém, explicitamente,
apenas algumas centenas ou milhares de regras (que cabem em pou-
cas páginas). Em cada situação particular, o usuário alimenta o siste-
ma com “fatos” que descrevem o problema enfrentado. A partir da
“base de regras” e dos “fatos”, o programa elabora um raciocínio
adaptado e uma resposta precisa (ou um leque de respostas) para a
situação do usuário, Desta forma, até mesmo os novatos poderão exe-
cutar os reparos. Se fosse preciso imprimir (atualizar previamente) todas
as situações, todos os raciocínios e todas as respostas, teríamos um
documento de milhões ou bilhões de páginas, impossível de usar. É o
caráter virtual do sistema especializado que o torna um instrumento
mais avançado do que o simples manual cm papel. Suas respostas, em
quantidades praticamente infinitas, preexistem apenas virtualmente,
Elas são calculadas e atualizadas no contexto.
Um mundo virtual, no sentido amplo, é um universo de possí-
veis, calculáveis a partir de um modelo digital. Ao interagir com o
mundo virtual, os usuários o exploram e o atualizam simultaneamen-
te. Quando as interações podem enriquecer ou modificar o modelo, o
mundo virtual torna-se um vetor de inteligência e criação coletivas.
Computadores e redes de computadores surgem, então, como a
infra-estrutura física do novo universo informacional da virtualidade.
Quanto mais se disseminam, quanto maior sua potência de cálculo,
capacidade de memória e de transmissão, mais os mundos virtuais irão
multiplicar-se em quantidade e desenvolver-se em variedade.
Cibercultura 75
IV,
A INTERATIVIDADE
Para Além das Páginas
Ao mesmo tempo fino, delicado e bem-humorado,
Beyond Pages de Masaki Fisjibata deve ser considerado unia
das mais belas ilustrações das “artes da interatividade”
emergentes.
Entra-se em um lugar pequeno e fechado. Na frente
há uma mesa real sobre a qual encontra-se projetada a ima-
gem de um livro. No fundo do aposento há uma projeção
da imagem de uma porta fechada, Sentando-se à mesa, pega-
se uma espécie de caneta eletrônica, com a qual é possível
“tocar” a imagem do livro. A imagem do livro fechado é
então substituída pela de mm livro aberto. Como se o livro
tivesse sido “aberto”. Que fique bem claro: não bá um ti-
vro de papel de verdade para abrir, apenas uma sucessão
de duas imagens controlada por um dispositivo interativo.
O tivro de Beyond Pages de Masaki Fujibata não é uma
imagem fixa clássica, e também não é uma imagem de ani-
mação que passa imperturbavelmente, é um objeto estranho,
meio signo (é uma imagem), meio coisa (é possivel atuar
sobre ele, transformá-lo, explorá-lo dentro de certos limi-
tes). Estamos acostumados a interagir com telas graças aos
videogames, à Internet e aos CD-ROMs, mas nesse caso a
imagem interativa do livro encontra-se sobre uma mesa de
madeira e não em uma tela de vídeo. Ao abrir esse estra-
nho livro, vemos escrita sobre a página direita a palavra
“maçã” em inglês, no alfabeto romano, e em japonês, com
caracteres kanji. Até aí, nada demais: signos de escrita so-
bre uma página. Mas na página esquerda há a imagem de
uma bela maçã vermelha em trompe ['oeil, unia maçã cuja
sombra está nitidamente recortada sobre a página imacula-
da. Mais ou menos como se a página da direita nos mios-
trasse signos e a da esquerda uma coisa. A sensação de que
Cibercultura
77
a maçã é realmente uma cuisa colocada sobre a página e não
apenas uma imagem é reforçada pelo que se descobre pro-
gressivamente “folbeando o livro”: a maçã encontra-se cor-
tada na página seguinte, sendo progressivamente consumida
à medida que a “leitura” continua, até que só é possível
achar, entre as páginas, um caroço. À cada vez que as pági-
nas são viradas, ouve-se claramente o som de uma mandi-
bula que se fecha sobre um pedaço de maçã, mordendo-a.
No entanto, em nenhum momento a ilusão é completa. Sa-
be-se que tanto a maçã como o som são gravações. Éim
possível comer a maçã. Comer a maça surge como uma me-
táfora para “ler um livro”. Algo foi consumido, foi produ-
zida uma irreversibilidade, ainda que nada tenha sido alte-
rado: as páginas continuam no mesmo lugar, os signos tam-
bém. Ao contrário das maçãs, o consumo ou O prazer que
possamos ter com os signos não os destroem.
Essa oscilação entre signo e coisa, signo que faz baru-
Ibo, age, interage e parece esgotar-se como uma coisa, coisa
impalpável e indestrutível como um signo, essa oscilação
continua até que a “leitura do livro” tenha sido terminada.
As pedrinhas que podem ser deslocadas com a caneta ran-
gem sobre a imagem do papel. Acionar a imagem de uma
maçaneta faz com que seja aberta a porta na parede do fun-
do, de onde surge uma garota adorável, nua e sorridente,
que aparecerá mais de uma vez.
Ao contrário das folhas secas dos herbários, o ramo
de folhas verdes que se agita entre as páginas de Beyond
Pages ainda é agitado pelo vento e pleno de seiva. A flor ou
a folha seca dos berbários está lá, morta, mas bem real, entre
as páginas. Beyond Pages nos leva para um além da página
onde as imagens “vivas” das coisas vivas parecem surgir de
imagens de páginas.
No final do livro, os signos aflorados resolvem falar. Os
rabiscos transformam-se milagrosamente em escrita japonesa
de caligrafia perfeita e claramente pronunciada pelo “livro”.
Desta forma, esse livro “fala”. Possui uma voz que o permite
ler a si mesmo, e convida-nos a contribuir para sua escrita.
Um dos recursos de Beyond Pages é o anel de Moebius,
passagem contínua e insensível de uma ordem de realidade
Pierre Lévy
comum a À e B. B faz o mesmo em relação a A. A informação trans-
mitida a cada “golpe” de comunicação é muito mais limitada do que
no jogo em realidade virtual, O equivalente do espaço de jogo, ou seja,
o contexto ou a situação, compreendendo a posição respectiva e a
identidade dos parceiros não é compartilhada por A e B sob forma
de uma representação explícita, uma imagem completa c explorável.
Isso se deve ao fato de que o contexto, aqui, é a priori ilimitado, en-
quanto é circunscrito no jogo; mas também se deve à diferença entre
os próprios dispositivos de comunicação. Com o telefone, a imagem
reatualizada da situação deve ser constantemente reconstruída pelos
parceiros, cada um por si e separadamente. O videofone não muda
absolutamente nada, já que o contexto que importa, o universo de
significações, a situação pragmática (os recursos, o campo de forças,
de ameaças, de oportunidades, o conjunto de coisas que podem afe-
tar Os projetos, a identidade ou a sobrevivência dos participantes) não
será muito melhor compartilhada se acrescentarmos uma imagem da
aparência corporal da pessoa c de seu ambiente físico imediato. Por
outro lado, sistemas que permitam o acesso compartilhado e à dis-
tância a documentos, fontes de informação ou espaços de trabalho nos
aproximam progressivamente da comunicação por um mundo virtual,
até aqueles que admitem uma ou mais imagens ativas das pessoas
(agentes de software que filtram, infobots, perfis de busca personali-
zados e outros).
À comunicação por mundos virtuais é, portanto, em certo sentido,
mais interativa que a comunicação telefônica, uma vez que implica,
na mensagem, tanto a imagem da pessoa como a da situação, que são
quase sempre aquilo que está em jogo na comunicação, Mas, em outro
sentido, o telefone é mais interativo, porque nos coloca em contato com
o corpo do interloentor. Não apenas uma imagem de seu corpo, mas
sua voz, dimensão essencial de sua manifestação física. À voz de meu
interlocutor está de fato presente quando a recebo pelo telefone. Não
escuto uma imagem de sua voz, mas a voz em si. Por meio desse con-
tato corporal, toda uma dimensão afetiva atravessa “interativamente”
a comunicação telefônica. O telefone é a primeira mídia de telepresença.
Hoje, numerosos projetos de pesquisa e de desenvolvimento tentam
estender e generalizar a telepresença a outras dimensões corporais: tele-
manipulação, imagens tridimensionais dos corpos, realidade virtual,
ambientes de realidade ampliada para videoconferências sem impres-
são de restrição etc.
Cibercultura 8
Reteremos dessa breve reflexão que o grau de interatividade de
uma mídia ou de um dispositivo de comunicação pode ser medido em
eixos bem diferentes, dos quais destacamos:
— as possibilidades de apropriação e de personalização da men-
sagem recebida, seja qual for a natureza dessa mensagem,
— a reciprocidade da comunicação (a saber, um dispositivo co-
municacional “um-um” ou “todos-todos”),
— a virtualidade, que enfatiza aqui o cálculo da mensagem em
tempo real em função de um modelo e de dados de entrada (ver o ter-
ceiro sentido no quadro sobre o virtual, página 74),
— a implicação da imagem dos participantes nas mensagens (ver
o quarto sentido no quadro sobre o virtual),
— a telepresença.
Como exemplo, o quadro que se segue cruza dois eixos entre
todos os que poderíamos destacar na análise da interatividade.
Mídias híbridas « mutantes proliferam sob o efeito da virtua-
lização da informação, do progresso das interfaces, do aumento das
potências de cálculo e das taxas de transmissão. Cada dispositivo de
comunicação diz respeito a uma análise pormenorizada, que por sua
vez remete à necessidade de uma teoria da comunicação renovada, ou
ao menos a uma cartografia fina dos modos de comunicação. O esta-
belecimento dessa carrografia torna-se ainda mais urgente, já que as
questões políticas, culturais, estéricas, econômicas, sociais, educativa
e até mesmo epistemológicas de nosso tempo são, cada vez mais, con-
dicionadas a configurações de comunicação. À interatividade assina-
la muito mais um problema, a necessidade de um novo trabalho de
observação, de concepção e de avaliação dos modos de comunicação,
do gue uma característica simples e unívoca atribuível a um sistema
específico.
82 Pierre Lévy
Quadro nº 3
Os diferentes tipos de interatividade
RELAÇÃO
com A
MENSAGEM
Disposritvo
DE COMUNICAÇÃO
Mensagem linear
nán-alterável em
tempo real
Interrupção e
reorientação do
fluxo
informacional
em tempo real
Implicação do
participante na
mensagem
Difusão unilateral
Imprensa
Rádio
Televisão
Cinema
- Bancos de dados
multimodais
= Hiperdocumentos
fixos
- Simulações sem
imersão nem
possibilidade de
modificar o modelo
- Videogames com
um só participante
- Simulações com
imersão (simulador
vôo) sem
modificação
possível do modelo
Diálogo,
reciprocidade
Correspondência
postal entre duas
pessoas
— Telefone
— Videofone
Diálogos através de
mundos virtuais,
cibersexo
Diálogo entre
vários
participantes
Cibercultura
— Rede de
correspondência
= Sistema das
publicações em
uma comunidade
de pesquisa
= Correio
eletrônico
- Conferências
eletrônicas
— Teleconferência ou
videoconferência com
vários participantes
— Hiperdocumentos
abertos acessíveis
on-line, frutos da
escrita/leitura de
uma comunidade
— Simulações (com
possibilidade de
atuar sobre o
modelo) como de
suportes de debates
de uma comunidade
- RPG multiusuário
no ciberespaço
- Videogame em
“realidade virtual”
com vários
participantes
- Comunicação em
mundos virtuais,
negociação
contínua dos
participantes sobre
suas imagens e a
imagem de sua
situação comum
83
algumas propagandas que não olho por um segundo sequer,
já que vou escrever diretamente no espaço destinado a esse
fim a seguinte chave de pesquisa: Olaf E Mansis. Isso sig-
nifica que pesquiso todos os documentos que possuam
ambas as cadeias de caracteres. Alguns segundos após ter
iniciado a pesquisa, recebo a resposta: há catorze sites que
respondem à minha pergunta. Clicando sobre cada um dos
catorze itens da lista que se encontra agora em minha tela,
posso acessar diretamente os sites correspondentes. Vou,
portanto, olhar pacientemente todos os sites, um a um, Al-
guns correspondem a atas de colóquios de medicina muito
especializados, em sueco, em alemão e em inglês, nos quais
apresentaram-se pessoas chamadas X Mansis e Olaf Y. Tra-
ta-se certamente de uma pista falsa, já que o Olaf Mansis
que procuramos é um pintor. Após examinar diversos sites
sem qualquer pertinência, começamos a perder as esperan-
ças, até que, finalmente, caímos no décimo segundo site da
lista, pertencente a um marchand canadense, no qual des-
cobrimos uma lista de obras vendidas em leilão na qual
aparecia uma tela assinada por nosso pintor. Bastante ani-
mados, usamos o endereço do marchand para enviar-lhe
uma mensagem na qual explicamos nosso problema e pe-
dimos que nos dê as coordenadas de Olaf Mansis, caso as
tenha. Em um último site, de uma universidade holandesa,
bá uma lista de estudantes com seus endereços eletrônicos,
na qual diversos Olaf X encontram-se próximos a uma Mar-
garet Mansis. Como Olaf Mansis veio da Holanda, é pos-
sível que essa seja uma parente, ainda que distante, e que
talvez possa nos dar algum indício. Mais uma vez, usamos
o correio eletrônico para fazer a pergunta a essa estudante.
Dois dias depois, recebemos uma resposta do mar-
chand que lamenta não poder nos ajudar. Ele vendeu a obra,
mas não conhece as coordenadas do pintor. Uma semana
mais tarde, tivemos o prazer de receber uma mensagem ele-
trônica de Margaret Mansis, que nos informa ser parente
do pintor (uma sobrinha-neta, na verdade), e que aceita nos
ajudar, contanto que lhe déssemos alguns detalhes sobre
nossa identidade e sobre os motivos de nossa pesquisa. Após
uma troca de mensagens, ficamos felizes ao receber as coor-
Cibercultura
87
denadas completas de Olaf Mansis, que nossa correspon-
dente bavia obtido em um jantar de família.
Vemos por esse exemplo que, mesmo quando não é possivel obter
a informação diretamente na Internet, pode-se ao menos contatar pes-
soas ou instituiç
es aptas a fornecê-la. Note-se ainda que essa pesqui-
sa nos tomou inicialmente quinze minutos, sem que tivéssemos que sair
de casa, custando quinze minutos de um telefonema local, enquanto
seria obviamente muito mais dispendioso em termos de tempo, esfor-
ço e dinheiro executar um processo que começaria, por exemplo, por
uma consulta a todos os catálogos telefônicos do planeta... Note-se,
enfim, que o objetivo da operação era o de reaproximar dois amigos
que haviam se distanciado. O virtua! não “substitui” o “real”, ele mul-
típlica as oportunidades para atualizá-lo.
Pilhagem
De tempos em tempos visito o site parisiense da Virgin
para consultar as críticas (atualizadas todos os meses) dos
últimos discos lançados. A música, os livros e os vídeos estão
classificados por estilos, e consulto preferencialmente as pá-
ginas correspondentes aus estilos “gaia” e “tecno”, Descubro
na seleção “gaia” deste mês que Gavin Bryars acaba de lan-
car um novo disco: Farewell to Philosophy. Ao lado da rese-
nha de cada álbum encontra-se, geralmente, um ícone que per-
mite a telerecepção de um trecho sonoro do disco, bem como
um ou mais links com sites relacionados aos músicos. Sigo o
link que leva ao site de Gavin Bryars, e após alguns segun-
dos de espera, posso consultar sua biografia e consultar sua
discografia completa. Descubro então que ele gravou muito
mais discos do que eu pensava. Anoto os títulos que me pa-
recem interessantes, depois retorno ao site da Virgin.
É interessante notar que essa possibilidade de aprofun-
damento de um tema que tenha sido apenas superficialmente
tratado em um site através do link imediato com outro site
mais especializado (que pode estar fisicamente situado em
qualquer parte do mundo — no caso de Gavin Bryars, na
Inglaterra) é uma das grandes originalidades e uma das mais
impressionantes vantagens da Web.
A partir da página de abertura do site da Virgin para
88 Pierre Lévy
a qual voltei agora, sigo um link que leva a um debate so-
bre uma notícia atual. Trata-se da condenação do grupo
NTM por insulto à polícia. Para estimular a discussão, os
editores do site colocaram à disposição dos internautas di-
versas canções francesas de todas as épocas que falavam mal
da polícia. Meio entretido, meio irritado, leio as contribui-
ções do fórum sobre a condenação do NTM. O debate é
bastante agitado e, apesar de algumas declarações extrema-
das e ponco fundamentadas, encontro depoimentos e idéias
muito bem expostas, tanto em um “campo” (a favor da
condenação) como no outro. De volta à página de abertu-
ra, sigo um link que leva a um museu dadaísta imaginário.
Trata-se basicamente de links para sites relativos ao da-
daísmo, ao surrealismo e ao letrismo, complementados por
fotos de obras de Max Ernst, Marcel Duchamp, Man Ray
etc. Encontram-se também notas sobre músicos inspirados
pelo dadaísmo como, por exemplo, Frank Zappa, com links
que levam a sites especializados na vida e obra dos misi-
cos em questão. Entre os diversos pontos de partida para
outros sites, destaco os seguintes no museu dadaísta imagi-
nário:
— o Web Museum (um dos mais antigos e notáveis
“museus virtuais” de iniciativa privada, executado por fran-
ceses),
— o Surrealism Server,
— o site From Dada to Wave
— diversos sites sobre Alfred Jarry e Ubu,
— o site do movimento artístico Fluxus,
— um site dedicado à Internacional Situacionista etc.
Decido seguir alguns desses links e surpreendo-me ao
encontrar no site da Internacional Situacionista uma críti
ca a um artigo de Bruno Latour publicado no jornal Libé-
ration a respeito do suicídio de Guy Debord (o famoso autor
da Sociedade do espetáculo e um dos principais fundado-
res da 18),
No site do Fluxus! encontro fotos de instalações e rela-
tos de performances, cada uma mais estranha do que a ou-
“hecpshewwr fluxas.org (N. do T.)
Cibercultura
89
ços de discussão e de encontros, mercados, tudo isso interligado, vivo,
fluido. Longe de se uniformizar, a Internet abriga a cada ano mais lín-
guas, culturas e variedade. Cabe apenas a nós continuar a alimentar
essa diversidade e exercer nossa curiosidade para não deixar dormir,
enterradas no fundo do oceano informacional, as pérolas de saber e
de prazer — diferentes para cada um de nós — que esse oceano contém.
O QUE É O CIBERESPAÇO?
A palavra “ciberespaço” foi inventada em 1984 por William Gib-
son em seu romance de ficção científica Neuromante. No livro, esse
termo designa o universo das redes digitais, descrito como campo de
batalha entre as multinacionais, palco de conflitos mundiais, nova
fronteira econômica e cultural. Em Neuromante, a exploração do ci-
berespaço coloca em cena as fortalezas de informações secretas pro-
tegidas pelos programas ICE, ilhas banhadas pelos oceanos de dados
que se metamorfoseiam e são trocados em grande velocidade ao re-
dor do planeta. Alguns heróis são capazes de entrar “fisicamente” nesse
espaço de dados para lá viver todos os tipos de aventuras. O ciberespaço
de Gibson torna sensível a geografia móvel da informação, normal-
mente invisível. O termo foi imediatamente retomado pelos usuários
e criadores de redes digitais. Existe hoje no mundo uma profusão de
correntes literárias, musicais, artísticas e talvez até políticas que se di-
zem parte da “cibercultura”.
Eu defino o ciberespaço como o espaço de comunicação aberto
pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos
computadores. Essa definição inclui o conjunto dos sistemas de comu-
nicação eletrônicos (aí incluídos os conjuntos de redes hertzianas e
telefônicas clássicas), na medida em que transmitem informações pro-
venientes de fontes digitais ou destinadas à digiralização*, Insisto na
codificação digital, pois ela condiciona o caráter plástico, fluido, cal-
culável com precisão e tratável em tempo real, hipertextual, interativo
4 Nossa definição de ciberespaço aproxima-se, embora seja mais restritiva,
daquela fornecida por Esther Dyson, George Gilder, Jay Keyworth e Alvin Toffler
em sua Magna Carta for the Knowledge Age in New Perspective Quarterly, 1994,
outono, pp. 26-37. Para estes autores, o ciberespaço é a “terra do saber” (“the land
of knowledge”), a “nova fronteira” cuja exploração poderá ser, hoje, a tarefa mais
importante da humanidade (“the exploration of that land can be the civilization's
truest highest calling”)
92 Pierre Lévy
e, resumindo, virtual da informação que é, parece-me, a marca distin-
tiva do ciberespaço. Esse novo meio tem a vocação de colocar em
sinergia e interfacear todos os dispositivos de criação de informação,
de gravação, de comunicação e de simulação. A perspectiva da di-
gitalização geral das informações provavelmente tornará o ciberespaço
o principal canal de comunicação e suporte de memória da humani-
dade a partir do início do próximo século.
Iremos agora examinar os principais modos de comunicação e
de interação possibilitados pelo ciberespaço. É claro que aquilo que
podia ser feito pela televisão, rádio ou telefone clássicos também pode
ser feito por rádios, televisões ou telefones digitais; não é preciso ex-
por em detalhes aquilo que já é conhecido. Irei desenvolver, portan-
to, em particular as inovações em relação às grandes técnicas de co-
municação anteriores.
ACESSO A DISTÂNCIA E TRANSFERÊNCIA DE ARQUIVOS
Uma das principais funções do ciberespaço é o acesso a distân-
cia aos diversos recursos de um computador. Por exemplo, contanto
que eu tenha esse direito, posso, com a ajuda de um pequeno compu-
tador pessoal, conectar-me a um enorme computador situado a mi-
lhares de quilômetros e fazer com que ele execute, em alguns minutos
ou algumas horas, cálculos (cálculos científicos, simulações, síntese de
imagens etc.) que meu computador pessoal levaria dias ou meses para
executar. Isso significa que o ciberespaço pode fornecer uma potên-
cia de cálculo, em tempo real, mais ou menos como as grandes com-
panhias de fornecimento de eletricidade distribuem energia. Do pon-
to de vista estritamente técnico, não é mais necessário ter um grande
computador no local, basta que a potência de cálculo esteja disponí-
vel em algum lugar no ciberespaço.
Com um terminal convenientemente preparado para esse fim
(computador pessoal, televisão avançada, telefone celular especial, PDA
etc.) também.me é possível acessar o conteúdo de bancos de dados ou,
em geral, a memória de um computador distante. Contanto que eu
disponha do software de interface necessário e de uma taxa de trans-
missão adequada, tudo acontece como se eu estivesse consultando a
memória de meu próprio computador. Se o custo da conexão for bai-
xo, não é mais necessário, portanto, dispor da informação no local em
que me encontro. Uma vez que uma informação pública se encontra
no ciberespaço, cla está virtual e imediatamente à minha disposição,
Cibercultura 93
independentemente das coordenadas espaciais de seu suporte físico.
Posso não apenas ler um livro, navegar em um hipertexto, olhar uma
série de imagens, ver um vídeo, interagir com uma simulação, ouvir
uma música gravada em uma memória distante, mas também alimen-
tar essa memória com textos, imagens etc. Torna-se possível, então,
que comunidades dispersas possam comunicar-se por meio do com-
partilbamento de uma telememória na qual cada membro lê e escre-
ve, qualquer que seja sua posição geográfica.
Uma outra função importante do ciberespaço é a transferência
de dados ou upload. Transferir um arquivo consiste em copiar um
pacote de informações de uma memória digital para outra, geralmen-
te de uma memória distante para a de meu computador pessoal ou
aquela do local onde trabalho fisicamente. Claro que a informação
transferida do computador do CERN em Genebra para o PC de um
estudante de física de Melbourne não desaparecerá do computador do
CERN. Esse arquivo pode ser, por exemplo, a última versão atualiza-
da de um banco de dados com os resultados das experiências mais
recentes do laboratório de física de alta energia, ou um banco de fo-
tos das colisões das partículas elementares em uma câmara de bolhas,
ou o texto de um artigo científico, on um vídeo didático de apresen-
tação das instalações, ou um modelo interativo que permita visualizar
a teoria das hipercordas, ou um sistema especializado de ajuda ao
diagnóstico de falhas no ciclotron etc. O estudante de Melbourne só
poderá copiar todos esses arquivos caso eles tenham sido classifica-
dos como de domínio público pelos administradores do computador
do CERN, é portanto possam ser acessados por qualquer um. Caso
contrário, será preciso saber a senha ou pagas a taxa exigida.
Entre todos os arquivos que é possíve! copiar à distância, há ob-
viamente os programas em si. Nesse caso, a transferência de arquivos
permite a distribuição muito rápida, por intermédio do próprio canal
do ciberespaço, de operadores (os programas) que melhoram seu fun-
cionamento. Foi assim que grande parte dos programas que otimizam
a comunicação entre computadores e a pesquisa de informações no
ciberespaço disseminaram-se.
O CORREIO ELETRÔNICO
As funções de troca de mensagens encontram-se entre as mais
importantes e mais usadas do ciberespaço. Cada pessoa ligada a uma
rede de computadores pode ter uma caixa postal eletrônica identificada
94 Pierre Lévy
texto (às vezes quatro ou cinco) no interior de uma mensa-
gem, cada “dobra” tornando-se, de certa forma, o “enve-
lope” da anterior. Os programas de correio eletrônico fa-
cilitam essa prática pois reproduzem (com uma marca es-
pecial no começo de cada linha) automaticamente na répli-
ca a mensagem que está sendo respondida. Alguns assinantes
da mailing list reclamam contra o abuso dessa prática que
incha artificialmente as mensagens, como bolas de neve em
uma ladeira, enchendo suas caixas postais.
As missivas vêm de todas as partes do mundo, com
uma nitida predominância da América do Norte e da Eu-
ropa. Como muitas vezes ocorre nas conferências eletrôni-
cas, mesmo se houver 250 assinantes (que, portanto, rece-
bem as mensagens), apenas cerca de trinta pessoas partici-
pam ativamente da conversa e alimentam regularmente a
conferência. Ponco a pouco, os receptores da mailing list vão
descobrindo o estilo desses animadores naturais, que pro-
vavelmente reflete seu caráter. Alguns demonstram mm com-
portamento espontâneo, emotivo, e redigem em um inglês
descuidado, quase fonético. Outros respondem ponto a pon-
to, de forma quase maníaca, aos enunciados de seus corres-
pondentes ou compõem, usando uma linguagem clássica,
verdadeiros mini-tratados com diversos capítulos e subca-
pítulos. Quando as coisas esquentam, moderadores (que
imagino serem “mais velhos”) aparecem e tentam acalmar
os ânimos.
Algumas vezes, quando ares de uma Paris poluída vem
bater nas janelas de meu apartamento, quando mens olhos
cansados se esforçam para ler os caracteres na tela, um cor-
respondente se afasta do assunto da conferência para falar
do tempo em Oslo, ou do retiro, sem computador nem aces-
so à Net, que ele acaba de fazer nas montanhas do Colorado.
Deitado nas encostas floridas, ele sentiu o frescor do vento
dos cumes trazendo o aroma dos pinheiros e deixou-se le-
var pela pura profundeza do azul celeste.
A rotina da conferência é interrompida pela mensagem
de um músico australiano, um certo Wesson (este não é seu
verdadeiro nome), protestando violentamente contra as ex-
periências atômicas francesas no Pacífico. Essa mensagem
Cibercultura
97
98
gera diversas respostas nos dias seguintes. Algumas pessoas
simpatizam com a causa de Wesson. Qutras lembram-no de
que esse não é o objetivo desta mailing list e que há diversos
outros fóruns na Internet onde ele poderia discutir o assunto
com pessoas interessadas. Ao que outras pessoas respondem
que os artistas não podem excluir a priori um assunto de
discussão: os artistas sempre estiveram envolvidos nos as-
suntos da cidade, que têm agora dimensões planetárias. À
discussão fica mais acalorada. Alguns participantes amea-
çam cancelar suas inscrições na conferência caso o fluxo de
mensagens sobre experiências atômicas não diminua. Wes-
son, cada vez mais animado, envia uma mensagem na qual
confessa ter começado a aprender francês, mas agora arre-
pende-se de ter se interessado pela língua. Desta vez, nin-
guém fica de seu lado. Ele tem que enfrentar aquilo que os
cibernautas chamam de flame, ou seja, um bombardeio de
mensagens que chegam de todas as partes do mundo. Fram-
ceses, belgas, suíços, canadenses do Quebec respondem a
Wesson na língua de Moliêre. Uma alemã, um inglês e um
dinamarquês também respondem em francês em solidarieda-
de a uma língua minoritária insultada. Alguns professores
americanos tentam acalmar Wesson ao mesmo tempo que
o criticam por ter desrespeitado a ética da Net. Como tantos
outros, apesar de ter me contentado antes em ler as mensa-
gens, deixo agora meu distanciamento para dirigir-me a
Wesson (em inglês). Explico-lhe que está misturando pelo
menos duas coisas: uma lingua e um povo, um povo e um
governo. Como alguém que se diz pacifista, ele deveria per-
ceber que é esse tipo de confusão grosseira e de identificação
de seres bumanos com categorias nacionais, étnicas, lingiiis-
ticas ou religiosas que torna as guerras possíveis.
Wesson faz, então, uma espécie de confissão pública.
Lamenta sua mensagem a respeito da língua francesa e pede
a todos que o perdoem. Quando redigiu aquela lamentável
mensagem, estava sozinho em frente à tela. Estava quase
pensando em voz alta, sem lembrar que havia pessoas do
outro lado da rede. Indivíduos vivos, possuidores de senti-
mentos, que poderiam ser magoados por palavras, assim
como ele. E dentre esses indivíduos, justamente alguns da-
Pierre Lévy
queles que a televisão e os jornais que ele lia diariamente
apontavam em massa para a vingança dos australianos.
Wesson bavia sido excitado pelo falatório antifrancês das
mídias que o cercavam, No entanto, a rede lhe bavia dado
uma consciência planetária muito mais concreta do que a-
quela que pensava ter. Aquela resultante do contato direto
com pessoas que exprimem suas emoções e pensamentos,
Além dessa mensagem para todos, surpreendi-me ao encon-
trar uma mensagem pessoal de Wesson, que não podia ser
lida pelos outros membros da mailing list. Disse que bavia
ficado comovido com a sinceridade e clareza de minha res-
posta e desejava conhecer-me. Trocamos então algumas
mensagens pessoais que terminaram com uma promessa
recíproca de nos encontrarmos durante o colóquio.
O verão passou.
Uma manhã de setembro, na sala de imprensa do sim-
pósio internacional, um jovem barbudo e sorridente vem
falar comigo.
— Mister Lévy?
— Yes.
— Pm Paul Wesson...
AS CONFERÊNCIAS ELETRÔNICAS
Mais complexo que o simples correio eletrônico, um sistema de
conferências eletrônicas é um dispositivo sofisticado que permite que
grupos de pessoas discutam em conjunto sobre temas específicos. As
mensagens são normalmente classificadas por assuntos e por sub-tó-
picos. Alguns assuntos são fechados quando são abandonados e ou-
tros são abertos quando os membros do grupo acham necessário, Em
um sistema de conferências eletrônicas, as mensagens não são dirigi-
das a pessoas, mas sim a temas ou sub-remas. O que não impede os
indivíduos de responderem uns aos outros, já que as mensagens são
assinadas. Além disso, indivíduos que tenham entrado em contato em
uma conferência eletrônica podem em geral comunicar-se pelo correio
eletrônico clássico, de pessoa a pessoa.
Há sistemas especiais que permitem uma comunicação direta
entre todas as pessoas que estejam conectadas a uma conferência eletrô-
nica no mesmo momento, As mensagens trocadas nesse tipo de confe-
rência eletrônica em geral não são gravadas. Os indivíduos que se
Cibercultura 99
102
muito antes que a imprensa se apossasse do assunto, que o
desenvolvimento da comunidade digital on-line geraria pro-
fundas alterações econômicas, bem como uma redistribuição
das carias entre os atores financeiros. Como será o comér-
cio quando grande parte das transações econômicas for feita
no ciberespaço? O que sobrará das moedas nacionais quan-
do o “cybercash” tornar-se corriqueiro? Não será necessário
que os banqueiros reinventem seu papel tradicional quan-
do diversas formas de crédito e de trocas on-line — ainda
em fase experimental na rede — estiverem estabelecidas?
Como influir desde agora sobre as evoluções em andamen-
to? Quem pode tomar uma ação destas, e como? Estas são
as questões que Jean-Michel Billaud começou a levantar na
comunidade francesa dos banqueiros e dos organismos de
crédito, através da revista de difusão restrita U Atelier de la
Compagnie Bancaire*. Juntando a experimentação à in-
formação e à reflexão, esse visionário impulsionou o uso de
um BBS no centro do departamento de vigília tecnológica
de sua empresa, incitando os responsáveis por outros servi-
ços a se conectar. Ele queria babituar os executivos do banco
areceber informações direcionadas e filtradas por meios ele-
trônicos, iniciá-los na cultura das trocas transversais e da
reflexão coletiva em suporte digital. O “BBS do Atelier” foi
depois aberto a pessoas não pertencentes à empresa, interes-
sadas pelas questões abordadas e também capazes de ali-
mentá-lo com suas informações e experiências. Obviamen-
te, uma parte das informações e dos grupos de discussão per-
maneceu reservada para os membros do banco. Mas a parte
“pública” logo tomou uma dimensão impressionante. O BBS
do Atelier, que acolhe centenas de pessoas, constitui hoje, em
número, uma das mais importantes comunidades virtuais
francesas, senão a mais importantes delas.
Se você é, como eu, assinante do BBS do Atelier, há
quatro serviços à sua disposição: correio eletrônico (com
conexão à Internet), informações, fóruns, transferência de
documentos e de programas. Vou detalhar abaixo a parte
relativa às informações e aos fóruns.
* hrtp:hwwrw.atelier.fr/ (N. do T.)
Pierre Lévy
As informações: os documentalistas e especialistas que
trabalham no grupo de vigília do banco alimentam dossiês
bem guarnecidos onde há uma multiplicidade de informações
recolhidas em diversos newsgroups da Internet, em sites, em
agências especializadas etc. Essas informações dizem respeito
geralmente aos mercados e às tecnologias de informática e
telecomunicações. Tendências do mercado, estatísticas, anún-
cios de compras ou de fusões, decisões de investimentos de
determinado ator no dominio do ciberespaço, inovações fi-
nanceiras na Internet... É possível assim acompanhar, dia a
dia, o progresso da linguagem de programação Java para
aplicações interativas na Web, ou o crescimento dos “network
computers”, máquinas especializadas na conexão à rede para
o grande público (e custando um terço do preço dos com-
putadores pessoais clássicos). Alguns dossiês propõem biblio-
grafias e indicações documentais em vez de informações
brutas. São encontrados também on-line todos os artigos pu-
blicados e a serem publicados no jornal V' Atelier.
Oferecendo um resumo e uma seleção das notícias do
dia, a resenha cotidiana do BBS do Atelier é particularmente
apreciada pelos assinantes. Ela é alimentada tanto a partir
dos jornais especializados quanto pela grande imprensa. Co-
mo exemplo, os temas da resenha de 5 de fevereiro de 1997
eram os seguintes: serviços on-line, monétique, telefonia
móvel, telecomunicações, informática, eletrônica, audio-
visual, televisão digital.
Os fóruns: como em qualquer comunidade virtual, os
fóruns do BBS do Atelier são espaços de trocas de informa-
ções e de debates. Alguns fóruns podem ser acessados por
qualquer um, enquanto outros, muito técnicos, são fregiien-
tados apenas por especialistas. Encontramos igualmente no
BBS reproduções de fóruns importados da Internet ou de
outros BBSs. Eis aqui a lista de alguns dos fóruns próprios
do BBS do Atelier: o comércio eletrônico, o pagamento se-
guro, a Bolsa, as auto-estradas da informação, as questões
jurídicas ligadas à cibercultura, a realidade virtual, o mun-
do dos BBS, a democracia e as novas tecnologias da infor-
mação, as cidades digitais, os CD-ROMs etc, Além disso,
o BBS abriga o fórum de discussão do Club de L'Arche, que
Cibercultura 103
tomou como sua missão sensibilizar os responsáveis políticos
e econômicos para as questões emergentes da cibercultura.
Um dos interesses dos fóruns do BBS do Atelier é que rece-
bem uma parcela cada vez maior dos atores, dos promoto-
res ou dos gestores dos domínios em questão. Foi assim que
o grupo de pressão dos responsáveis econômicos franceses
favoráveis à liberalização do uso das técnicas de criptografia
organizou-se em grande parte via BBS.
Alguns espaços coletivos “reservados” só podem ser
acessados por pessoas que possuam a palavra-chave neces-
sária. São dedicados a negociações e transações econômicas.
Para terminar, notemos que a leitura das informações
on-line e a participação nas discussões “virtuais” não subs-
tituem — muito pelo contrário — os contatos em carne e
osso. O Atelier organiza, várias vezes por semana, em Pa-
ris, encontros físicos entre os atores da “cibereconomia”.
Neles são apresentados novos produtos, iniciativas diver-
sas tocando os temas centrais do Atelier, debates bastante
abertos nos quais utopistas da democracia eletrônica e da
inteligência coletiva ficam lado a lado com profissionais de
marketing (algumas vezes são os mesmos) e podem tomar
um drinque na companhia de Jean-Michel Billaud após te-
rem se conhecido on-line.
Em resumo, o ciberespaço permite a combinação de vários mo-
dos de comunicação. Encontramos, em graus de complexidade cres-
cente; o correio eletrônico, as conferências eletrônicas, o hiperdocumen-
to compartilhado, os sistemas avançados de aprendizagem ou de tra-
balho cooperativo e, enfim, os mundos virtuais multiusuários.
A COMUNICAÇÃO ATRAVÉS DE MUNDOS
VIRIUAIS COMPARTILHADOS
Como já vimos anteriormente, a interação com uma realidade
virtual no sentido mais forte vem a ser, em seu princípio técnico, a
possibilidade de explorar ou de modificar o conteúdo de um banco de
dados por meio de gestos (movimentos da cabeça, das mãos, desloca-
mentos etc.) e perceber imediatamente, em um modo sensível (imagens,
sons, sensações tácteis e proprioceptivas), os novos aspectos do ban-
co de dados revelados pelos gestos que foram executados. O que equi-
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