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Guias e Dicas
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A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica, Notas de estudo de Desenho Industrial

Walter Benjamin

Tipologia: Notas de estudo

2010

Compartilhado em 06/06/2010

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4.2

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Baixe A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica e outras Notas de estudo em PDF para Desenho Industrial, somente na Docsity! A OBRA DE ARTE NA ERA DA SUA REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA (*) Walter Benjamin As nossas belas-artes foram instituídas e os seus tipos e usos fixados numa época que se diferencia decisivamente da nossa, por homens cujo poder de acção sobre as coisas era insignificante quando comparado com o nosso. Mas o extraordinário crescimento dos nossos meios, a capacidade de adaptação e exactidão que atingiram, as ideias e os hábitos que introduzem anunciam-nos mudanças próximas e muito profundas na antiga indústria do Belo. Em todas as artes existe uma parte física que não pode continuar a ser olhada nem tratada como outrora, que já não pode subtrair-se ao conhecimento e potência modernos. Nem a matéria, nem o espaço, nem o tempo são desde há vinte anos o que foram até então. E de esperar que tão grandes inovações modifiquem toda a técnica das artes, agindo, desse modo, sobre a própria invenção, chegando talvez mesmo a modificar a própria noção de arte em termos mágicos. Paul Valéry: Pièces sur l’art. Paris (s. data) pp. 103/104 ('La conquête de l'ubiquité"). (*) Trata-se da segunda versão do texto, iniciada por Walter Benjamin em 1936 e publicada em 1955. PRÓLOGO Quando Marx empreendeu a análise do modo de produção capitalista, este modo de produção estava ainda nos seus primórdios. Marx. Orientou a sua análise de tal forma que ela adquiriu um valor de prognóstico. Recuou até às relações fundamentais da produção capitalista e apresentou-as de forma tal que elas explicitaram aquilo que, de futuro, se poderia esperar do capitalismo. Ficou explícito que dele seria de esperar, não %ó uma exploração crescentemente agravada do proletariado, como também, por fim, a criação de condições que tomariam possível a sua própria abolição. A transformação da superstrutura, que decorre muito mais lentamente do que a da infra- estrutura, necessitou de mais de meio século para tomar válida a alteração das condições de produção, em todos os domínios da cultura. Só hoje se pode indicar sob que forma isso sucedeu. A essas indicações colocam-se certas exigências de prognóstico. Mas estas exigências correspondem menos a teses sobre a arte do proletariado depois da tomada de poder, para não falar da sociedade sem classes, do que a teses sobre as tendências de evolução da arte, sob as condições de produção actuais. A sua dialéctica nota-se tanto na superstrutura como na economia. Por essa razão seria errado subestimar o valor de luta de tais teses. Eliminam alguns conceitos tradicionais – como a criatividade, a genialidade, o valor eterno e o secreto – conceitos cuja aplicação descontrolada (e actualmente dificilmente controlável) conduz ao tratamento de material factual num sentido fascista. Os conceitos seguidamente introduzidos, novos em teoria da arte, diferenciam-se dos correntes pelo facto de serem totalmente inadequados dos para fins fascistas. Pelo contrário, são aproveitáveis para formulação de exigências revolucionárias em politica de arte. I Por princípio a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens tinham feito sempre pôde ser imitado por homens. Tal imitação foi também exercitada por alunos para praticarem a arte, por mestres para divulgação das obras e, finalmente, por terceiros ávidos de lucro. Em contraposição a isto, a reprodução técnica da obra de arte é algo de novo que se vai impondo, intermitentemente na história, em fases muito distanciadas umas das outras, mas com crescente intensidade. Os Gregos conheciam apenas dois processos de reprodução técnica de obras de arte: a fundição e a cunhagem. Bronzes, terracotas e moedas eram as únicas obras de arte que podiam produzir em massa. Todas as outras eram únicas e não podiam ser reproduzidas tecnicamente. As artes gráficas foram reproduzidas pela primeira vez com a xilogravura e passou longo tempo até que, pela impressão, também a escrita fosse reproduzida. São conhecidas as enormes alterações que a impressão, a reprodutibilidade técnica da escrita, provocou na literatura. Mas à escala mundial, tais modificações são apenas um caso particular, ainda que extraordinariamente importante do fenómeno que aqui se observa. À xilografia juntam-se, no decorrer da Idade Média, a gravura em cobre e a água- forte, bem como a litografia no início do século XIX. Com a litografia, a técnica de reprodução regista um avanço decisivo. O processo muito mais conciso, que diferencia a transposição de um desenho para uma pedra do seu entalhe num bloco de madeira, ou da sua gravação numa placa de cobre, conferiu, pela primeira vez, às artes gráficas a possibilidade de colocar no mercado os seus produtos, não apenas os produzidos em massa (como anteriormente) mas ainda sob formas todos os dias diferentes. A litografia permitiu às artes gráficas irem ilustrando o quotidiano. Começaram a acompanhar a III Em grandes épocas históricas altera-se, com a forma existência colectiva da humanidade, o modo da sua percepção sensorial. O modo em que a percepção sensorial do homem organiza – o medium em que ocorre – é condicionado não só naturalmente, como também historicamente. A época das grandes invasões, em que surgiram a indústria de arte do Baixo Império e a Génese de Viena, tinha não só uma arte diferente da da antiguidade como também uma outra percepção. Os eruditos da escola de Viena, Riegel e Wickhoff, que se opuseram ao peso da tradição clássica, sob a qual aquela arte tinha estado enterrada, foram os primeiros a pensar em tirar conclusões relativamente à organização da percepção na época em que ela vigorava. Por mais amplo que fosse o seu conhecimento, tinham limites que consistiam no facto destes investigadores se contentarem com a característica formal, específica, da percepção na época do Baixo Império. Não tentaram mostrar – e talvez não pudessem esperar consegui-lo – as transformações que foram expressas nestas transformações da percepção. Actualmente, as condições para tal entendimento são favoráveis. E, se pudermos entender, como decadência da aura, as alterações no medium da percepção de que somos contemporâneos, também é possível mostrar as condições sociais dessa decadência. É aconselhável ilustrar o conceito de aura, acima proposto para objectos históricos, com o conceito de aura para objectos naturais. Definimos esta última como manifestação única de uma lonjura, por muito próxima que esteja. Numa tarde de Verão descansando, seguir uma cordilheira no horizonte, ou um ramo que lança a sombra sobre aquele que descansa – é isso a aura destes montes, a respiração deste ramo. Com base nesta descrição, é fácil admitir o condicionalismo social da actual decadência da aura. Essa decadência assenta em duas circunstâncias que estão ligadas ao significado crescente das massas, na vida actual. Ou seja: "Aproximar" as coisas espacial e humanamente é actualmente um desejo das massas tão apaixonado6 como a sua tendência para a superação do carácter único de qualquer realidade, através do registo da sua reprodução. Cada dia se toma mais imperiosa a necessidade de dominar o objecto fazendo-o mais próximo na imagem, ou melhor, na cópia, na reprodução. E a reprodução, tal como nos é fornecida por jornais ilustrados e semanários, diferencia-se inconfundivelmente do quadro. Neste, o carácter único e a durabilidade estão tão intimamente ligados, como naqueles a fugacidade e a repetitividade. Retirar o invólucro a um objecto, destroçar a sua aura, são características de uma percepção, cujo "sentido para o semelhante no mundo" se desenvolveu de forma tal que, através da reprodução, também o capta no fenómeno único. Assim, manifesta-se no domínio do concreto o que no domínio da teoria se toma evidente, com o crescente significado da estatística. A orientação da realidade para as massas e, destas para aquela, é um processo de amplitude ilimitada, tanto para o pensamento como para a intuição. IV A singularidade da obra de arte é idêntica à sua forma de se instalar no contexto da tradição. Esta tradição, ela própria é algo de completamente vivo, algo de extraordinariamente mutável. Uma estátua antiga da Vénus, por exemplo, situava-se - num contexto tradicional diferente, para os Gregos que a consideravam um objecto de culto, e para os clérigos medievais que viam nela um ídolo nefasto. Mas o que ambos enfrentavam da mesma forma, era a sua 6 Aproximar-se humanamente das massas pode significar: retirar a sua função social do campo de visão. Nada garante que um retratista actual, quando pinta um cirurgião famoso à mesa do pequeno-almoço e, no meio dos seus, represente mais exactamente a sua função social do que um pintor do século XVI que, como por exemplo Rembrandt, na sua "Anatomia", apresenta ao público os seus médicos de modo representativo. singularidade, por outras palavras a sua aura. O culto foi a expressão original da integração da obra de arte no seu contexto tradicional. Como sabemos, obras de arte mais antigas surgiram ao serviço de um ritual, primeiro mágico e depois religioso. É, pois, de importância decisiva que a forma de existência desta aura, na obra de arte nunca se desligue completamente da sua função ritual.7 Por outras palavras: o valor singular da obra de arte "autêntica" tem o seu fundamento no ritual em que adquiriu o seu valor de uso original e primeiro. Este, independentemente de como seja transmitido, mantém-se reconhecível, mesmo nas formas profanas do culto da beleza, enquanto ritual secularizado8. O culto profano da beleza, que surgiu na Renascença para se manter em vigor durante três séculos, permite reconhecer com nitidez aqueles fundamentos, ao expirar quando sofre os seus primeiros abalos significativos. Quando, com o aparecimento da fotografia, o primeiro meio de reprodução verdadeiramente revolucionário (que coincide com o alvorecer do socialismo), a arte sente a proximidade da crise que, cem anos mais tarde, se tinha tomado inequívoca, reagiu com a doutrina da "l'art pour l’art", que é uma teologia da arte. Dela surgiu precisamente uma teologia negativa na forma de uma arte "pura" que recusa, não só qualquer função social da arte, como também toda a finalidade através de uma determinação concreta. (Na poesia, Mallarmé, foi o primeiro a alcançar esta posição.) É indispensável a consideração de tais contextos, para a reflexão sobre a obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. Porque eles preparam o reconhecimento que aqui é decisivo: a reprodutibilidade técnica da obra de arte emancipa-a, pela primeira vez na história do mundo, da sua existência parasitária no ritual. A obra de arte reproduzida, toma-se cada vez mais a reprodução de uma obra de arte que assenta na reprodutibilidade9. A partir da chapa fotográfica, por exemplo, é possível fazer uma grande quantidade de cópias, o que retira 7 A definição de aura como "a manifestação única de uma lonjura, por mais próxima que esteja" mais não representa do que a formulação do valor de culto da obra de arte, em categorias da percepção espacial e temporal. Lonjura é o oposto de proximidade. A lonjura essencial é a inacessível. De facto, a inacessibilidade é uma qualidade primordial da imagem de culto. Pela sua própria natureza, mantém-se "longe, por mais próxima que esteja”. A proximidade propiciada pela sua matéria não afecta a lonjura que mantém depois da sua manifestação. 8 Na medida em que o valor de culto da imagem se seculariza, as noções de substrato da sua singularidade tomam-se mais indefinidas. Cada vez mais a singularidade da manifestação dominante na figura de culto é suplantada pela singularidade empírica do artista, ou da sua realização plástica, na concepção do observador. Claro que tal não se verifica integralmente; o conceito de autenticidade nunca cessa de se projectar para além da que se lhe atribui. (Isto é particularmente claro no caso do coleccionador que conserva sempre algo de servidor do fetiche e, através da posse da obra de arte, participa na sua força de culto.) Apesar de tudo isto, a função do conceito do autêntico na observação da arte mantém-se inequívoca: com a secularização da arte, a autenticidade toma o lugar do valor de culto. 9 Nas obras cinematográficas, a reprodutibilidade técnica do produto não é uma condição imposta do exterior para a sua divulgação em massa, contrariamente ao que sucede, por exemplo, com as obras literárias ou de pintura. A reprodutibilidade técnica da obra cinematográfica tem o seu fundamento directamente na técnica da sua reprodução. Esta possibilita não só a sua imediata divulgação em massa, como também a impõe. Impõe-a porque a produção de um filme é tão cara que alguém que pudesse, por exemplo, comprar um quadro, não poderia certamente dar-se ao luxo de comprar um filme. Em 1927, calculou-se que para rentabilizar um filme relativamente grande, seria necessário que ele atingisse um público de nove milhões de pessoas. Com o filme sonoro verificou-se, no entanto, de início um retrocesso; o seu público passou a estar limitado por barreiras de língua e isto ao mesmo tempo que os interesses nacionais eram acentuados pelo fascismo. Mas mais importante do que registar este retrocesso que, aliás, foi neutralizado pela dobragem, é considerar a sua relação com o fascismo. A simultaneidade de ambas as manifestações tem a sua origem na crise económica. Os mesmos elementos de perturbação que, de um modo geral, conduziram à tentativa de manter abertamente pela força as relações de propriedade existentes, conduziram a que o capital do cinema, ameaçado pela crise, fosse forçado a preparar terreno para o filme sonoro. Assim, a introdução do filme sonoro trouxe um alívio temporário. E não apenas porque o filme sonoro conduziu de novo as massas ao cinema, mas também porque conseguiu solidarizar novos capitais, da indústria eléctrica, com o capital do cinema. Considerado de fora, o filme sonoro promoveu assim interesses nacionais, mas considerado de dentro, internacionalizou a produção de filmes mais ainda do que anteriormente. sentido à questão da cópia autêntica. Mas nesse momento, com o fracasso do padrão de autenticidade na reprodução de arte modifica-se também a função social da arte. Em vez de assentar no ritual, passa a assentar numa outra praxis: a política. V A recepção da arte verifica-se com diversas tónicas, quais se destacam duas, polares. Uma assenta no valor culto, a outra no valor de exposição da obra de arte10;11. A produção artística começa por composições ao serviço do culto. E lícito supor-se que estas composições sejam mais importantes pela sua existência do que pelo facto de serem vistas. O alce representado pelo homem da idade da pedra, nas paredes das suas cavernas, é um instrumento mágico. É certo que ele o expõe perante os outros homens, mas é principalmente dedicado aos espíritos. Hoje o valor de culto parece requerer que a obra de arte permaneça oculta: certas estátuas de deuses só são acessíveis ao sacerdote na sua cela, certas virgens permanecem cobertas durante quase todo o ano, determinadas esculturas em catedrais medievais não são visíveis observador que está no plano térreo. Com a emancipação de cada uma das práticas da arte, do âmbito ritual, aumentam oportunidades de exposição dos seus produtos. A possibilidade de expor um busto que pode ser enviado para qualquer lado, é maior do que a de expor uma divindade que tem o seu lugar no interior de um templo. A possibilidade de expor uma pintura é maior do que a de expor o mosaico ou o fresco que a precederam. E ainda que a possibilidade de expor, em público, uma missa não seja inferior à de o fazer relativamente a uma sinfonia, esta surgiu numa época em que a sua possibilidade de ser exposta prometia ser superior à da missa. 10 Esta polaridade não pode assentar na estética do idealismo, cujo conceito de beleza, no fundo, a engloba como uma estética una (e, por conseguinte, a exclui como estética separada). Todavia, ela apresenta-se em Hegel com toda a clareza que as barreiras do idealismo permitem. Nas lições sobre a Filosofia da História, diz-se "imagens existiam há muito: a piedade há muito que necessitara delas para a devoção, mas não precisava de imagens belas, eram mesmo perturbadoras. Em quadros belos também há algo de não espiritual, de exterior, mas na medida em que são belos, o seu espírito interpela o homem; mas na devoção, a relação com uma coisa é essencial, porque ela própria é apenas um embotamento, sem espírito, da alma... as belas-artes surgiram na própria Igreja... embora... a arte tenha emanado do princípio da Igreja". (Georg WilheIm Friedrich Hegel: Obras. Edição completa, através de uma Associação de Amigos do Eternizado. Tomo 9: Lições sobre a Filosofia da História. Editado por Eduard Gans. Berlim 1837, pág. 414.) Também uma passagem, nas lições sobre a Estética, chama a atenção para o facto de Hegel ter, aqui, pressentido um problema. Assim, afirma-se, nesse texto: “Já não estamos... em posição de, além disso, venerar e ser devotos, de forma divina, de obras de arte; a impressão que nos causam é de um tipo sensato, e aquilo que provocam em nós necessita de um exame mais elevado." (Hegel, 1.c. Tomo 10: Lições sobre a Estética. Editado por H. G. Hotho. Tomo I Berlim, 1835, pág. 14.) 11 A transição do primeiro género de recepção artística para o segundo, determina o percurso histórico da recepção artística em geral. Apesar disso, verifica-se uma certa oscilação, entre ambos os pólos daquela recepção, que constitui um princípio válido para qualquer obra de arte. Como, por exemplo, a Virgem da Capela Sistina. Desde a investigação de Hubert Grimme, sabe-se que a Virgem da Capela Sistina foi originalmente pintada para ser exposta. Grimme foi levado a empreender as suas investigações, através da seguinte questão: no primeiro plano do quadro, qual a finalidade da ripa de madeira, sobre a qual se apoiam os dois cúpidos? Como pôde chegar um Rafael, perguntava ainda Grimme, ao ponto de decorar o céu com um par de reposteiros? A investigação permitiu concluir que a Virgem da Capela tinha sido encomendada por ocasião da vigília pública, em câmara ardente, do papa Sisto. As vigílias dos papas realizavam-se numa determinada capela lateral da Igreja de S. Pedro. Pousado sobre o féretro, numa espécie de nicho ao fundo da capela, estava o quadro de Rafael, por ocasião da vigília festiva. O que Rafael representa neste quadro, é a forma como, surgindo do nicho contornado por reposteiros verdes, ao fundo, a Virgem envolta por nuvens se aproxima do féretro papal. Nas exéquias de Sisto, o quadro de Rafael adquiriu um extraordinário valor de exposição. Algum tempo depois, foi colocado sobre o altar-mor da Igreja do Mosteiro dos Monges Negros de Piacenza. A razão deste exílio reside no ritual romano. Este proíbe o uso, como objectos de culto no altar-mor, de quadros exibidos em cerimónias fúnebres. A obra de Rafael foi, em certa medida, desvalorizada, devido a esta norma. No entanto, para obter o preço correspondente, a cúria decidiu tolerar tacitamente a colocação do quadro no altar-mor, ao efectuar a transacção. Para evitar celeuma, permitiu-se a entrega do quadro à irmandade de uma distante cidade de província. VIII Não há duvida de que no teatro o desempenho artístico actor é apresentado ao público pela sua própria pessoa; pelo contrário, o desempenho artístico do actor de cinema é apresentado ao público por um equipamento, o que tem dois tipos consequências. Não se espera do equipamento que transmite ao público a actuação do actor de cinema, que respeite essa acção na sua totalidade. Sob a direcção do operador de câmara, esse equipamento toma constantemente posição perante essa mesma actuação. A sequência de cenas que o montador compõe, a partir do material que lhe é fornecido, é que constitui o filme acabado. Este engloba um determinado número de momentos de acção, reconhecidos como tal pela câmara, para não falar de planos especiais, de primeiros planos. Assim, a representação do actor é submetida a uma série de testes ópticos. Esta é a primeira consequência do facto de a representação do actor de cinema ser apresentada pelo equipamento. A segunda assenta no facto de que uma vez que o actor de cinema não representa perante o público, não pode adaptar, durante a actuação, o seu desempenho à reacção do mesmo, possibilidade reservada apenas ao actor de teatro. Por essa razão, o público assume a atitude de um apreciador que não é perturbado pelo actor, uma vez que não tem qualquer contacto pessoal com ele. A identificação do público com o actor só sucede na medida em que aquele se identifica com o equipamento. Assimila, pois, a sua atitude: testa17. Isto não é atitude a que se possam expor valores de culto. IX Para o cinema é mais importante que o actor se apresente perante a câmara a si próprio do que perante o público como outrem. Uma das primeiras pessoas a sentir tal mudança do actor, devido à pressão dos testes, foi Pirandello. As observações que faz no seu romance "Filma- se", continuam válidas a de ele se limitar a realçar o lado negativo da questão, e de se referir apenas ao cinema mudo. Porque o cinema sonoro pouco alterou esta questão. O importante é que se representa para um equipamento e, no caso do filme sonoro, para dois. "O actor de cinema", escreve Pirandello, "sente-se no exílio. Exilado não só do palco, mas também da sua própria pessoa: com um mal-estar sombrio sente o inexplicável vazio causado pelo facto seu corpo se tomar numa manifestação ausente, de se desvanecer e de ser privado da sua realidade, da sua vida, da sua voz e dos sons que emite quando se move, para se transformar numa imagem muda que estremece na tela por um instante para pois desaparecer no silêncio... O pequeno equipamento que representará para o público com a sua sombra, e o actor tem que se contentar com a representação perante a máquina18. Pode caracterizar-se o mesmo facto da seguinte forma: pela primeira vez -e isso é obra do cinema – o homem vê-se na situação de actuar com a sua totalidade de pessoa viva, mas sem a sua aura. Porque a aura está ligada ao aqui e agora. Dela não existe cópia. A aura que se manifesta em tomo de um Macbeth pode ser separada da que, para um público ao vivo, rodeia o actor que representa aquele personagem. A especificidade do registo em estúdio cinematográfico reside no facto de 17 "0 filme... dá (ou podia dar) pormenorizadas informações úteis sobre comportamentos humanos... As motivações não se manifestam devido ao carácter, a vida interior das pessoas nunca exprime a razão principal e raras vezes constitui o resultado principal do comportamento." (Brecht, op. cit., pág. 268.) A ampliação do domínio do que pode ser testado, que o equipamento concretiza no actor de cinema, corresponde à extraordinária ampliação do domínio do que pode ser testado, que surgiu, para o indivíduo, devido às circunstâncias económicas. Assim aumenta, constantemente, o significado dos exames de aptidão profissional. Nos exames de aptidão profissional, o que importa são aspectos da representação do indivíduo. Tanto as filmagens como os exames de aptidão profissional são realizados perante um grupo de especialistas. O director de fotografia, no estúdio de cinema, ocupa exactamente o lugar que corresponde ao do director de testes, no exame de aptidão profissional. 18 Luigi Pirandello: On tourne, citado por Léon Pierre-Quint «Signification du Cinema», in: L'art cinématographique II, op. cit. p 14/15. colocar o equipamento no lugar do público. Assim, a aura que envolve actor tem de desaparecer e, por conseguinte, também a do personagem representado. Não é de espantar que seja precisamente um dramaturgo como Pirandello que inadvertidamente, ao caracterizar o cinema, aponta as razões da crise que assola o teatro. Para a obra de arte que surge integralmente da sua reprodução técnica – como o filme – não há maior contraste que o palco. Qualquer observação cuidadosa prova este facto. Há muito que observadores especializados reconheceram que na representação cinematográfica «quase sempre se obtêm os melhores efeitos, quando se “representa" o mínimo possível... a mais recente evolução» – admite Arnheim em 1932 –, "considera o actor como um acessório que é escolhido pelas suas características e... se insere no lugar próprio."19 A esta ideia está intimamente ligada uma outra. O actor que representa no palco, identifica-se frequentemente com um papel. Ao actor de cinema esta possibilidade é frequentemente recusada. A sua actuação não é, de modo nenhum, um trabalho único, mas sim o resultado de várias intervenções. Para além de considerações fortuitas como a renda do estúdio, a disponibilidade de contracenantes, cenários, etc. Trata-se de necessidades elementares da maquinaria que dispersam a representação do actor numa série de episódios que é preciso depois montar. Trata-se, principalmente, da iluminação cuja instalação requer, para a apresentação de acontecimento que, na tela, aparece como uma cena única se desenvolve rapidamente, a realização de uma série de registos que, no estúdio, consoante as circunstâncias, pode prolongar-se por várias horas; sem mencionar os casos cuja montagem é mais evidente. Assim, se um actor tem de saltar por uma janela, filmam-no a saltar no estúdio, com recurso a um andaime, mas a cena seguinte, da fuga, eventualmente será filmada semanas mais tarde em exteriores. Aliás, é muito fácil conceber casos ainda mais paradoxais. Pode pedir-se ao actor que, depois de baterem à porta, faça um movimento brusco, assustado. Talvez esta actuação não tenha correspondido à desejada. O realizador pode recorrer a um expediente: oportunamente, quando o actor volta ao estúdio, pode, que ele o espere, ser disparado um tiro. O susto do filmado neste momento, pode ser montado no filme. Nada mostra mais claramente que a arte abandonou o império da "bela aparência" que, até então, era considerado o único em que podia prosperar. 19 Rudolf Arnheim: O Filme enquanto Arte. Berlim 1932, págs. 176/177. Certos pormenores, aparentemente secundários, com os quais o realizador de cinema se afasta da prática do palco, adquirem, neste contexto, o maior interesse. É o caso da tentativa de fazer o actor representar sem caracterização, como sucede, entre outros, com Dreyer, em Joana d’Arc. Demorou meses para encontrar os quarenta actores que constituem o Tribunal da Inquisição. A procura dos actores assemelhou-se à dificuldade na procura de acessórios difíceis de obter. O maior esforço de Dreyer consistiu em evitar semelhanças de idade, estatura ou de fisionomias. (Cf. Maurice Schultz: Le Maquiliage, in: L’Art cinémaiographique VI. Paris 1929, págs.65/66.) Quando o actor se torna acessório de cena, não é raro que este, por sua vez, seja utilizado como actor. De qualquer forma, não é nada invulgar que o filme chegue a uma situação em que confere um papel ao acessório. Em vez de escolher um qualquer exemplo de uma série infinita de possibilidades, detenhamo-nos num de especial força probatória. No palco, um relógio em funcionamento torna-se sempre perturbador. A sua função de medir o tempo, não pode ser-lhe atribuída no palco. Até numa peça naturalista, o tempo astronómico colidiria com o tempo cénico. Nestas circunstâncias, é extremamente significativo que um filme utilize, de vez em quando e sem mais nem menos, a medição do tempo através de um relógio. Neste caso, pode reconhecer-se mais nitidamente do que noutros aspectos, como sob determinadas circunstâncias, cada um dos acessórios pode nele assumir funções decisivas. Estamos apenas a um passo da afirmação de Pudovkin, segundo a qual "a representação de actor que está ligada a um objecto e nele assenta é sempre um dos mais fortes métodos da concepção cinematográfica" [W. Pudovkin: realização cinematográfica e guião. (Livros da Praxis, Vol. 5) Berlim 1928, pág. 126.] Assim, o filme é o primeiro meio artístico que está em situação de mostrar como a matéria actua sobre o homem. Pode, por conseguinte, ser um magnífico instrumento de representação materialista. X A estranheza do actor perante o equipamento, como refere Pirandello, é essencialmente do mesmo tipo da estranheza que se sente perante a própria imagem reflectida no espelho. Mas agora, a imagem é separável da pessoa, é transportável. E para onde é transportada? Para diante do público20. O actor de cinema nunca deixa de ter consciência deste facto. O actor de cinema, quando está perante a câmara, sabe que em última instância está ligado ao público: ao público dos receptores, que constituem o mercado. Este mercado, no qual o actor empenha não só a sua força de trabalho, mas também todo o seu ser, no momento em que efectua um determinado desempenho, é-lhe tão inacessível como qualquer produto feito numa fábrica. Não terá esta circunstância a sua parte de influência na inibição, na nova ansiedade, que acomete o actor perante o equipamento? O cinema reage ao aniquilar da aura, com uma construção artística da "personality" fora do estúdio. O culto da "estrela”, promovido pelo capital cinematográfico, conserva a magia da personalidade que, há muito, se reduz à magia pútrida do seu carácter mercantil. Enquanto o capital cinematográfico der o tom, não se poderá atribuir ao cinema actual, em geral, outro mérito revolucionário para além do de promover uma crítica revolucionária de concepções tradicionais da arte. Não contestamos que o filme actual, em casos particulares, possa promover, além disso, uma crítica revolucionária das relações sociais, mesmo das de propriedade. Mas o ponto central do presente estudo está tão longe disso, como o está a produção cinematográfica da Europa Ocidental. É inerente à técnica do filme, tal como à do desporto, que quem quer que assista aos seus desempenhos profissionais, o faça como especialista incompleto. Basta ter ouvido um grupo de ardinas, apoiados nas suas bicicletas, a discutir os resultados de uma corrida de ciclismo, para nos rendermos à evidência deste facto. Não é por acaso que os editores de jornais organizam corridas para os seus ardinas. Estas despertam interesse entre os participantes, porque o vencedor tem a oportunidade de ser promovido de ardina a ciclista profissional. Da mesma forma, as "actualidades da semana" dão a quer um a possibilidade de passar de simples transeunte a figurante de cinema. Deste modo, em determinadas circunstâncias qualquer um pode ser parte de uma obra de arte; pense-se nas"Três Canções sobre Lenine" de Wertoff ou na "Borinage" de Ivens. Qualquer homem, actualmente, pode ter a pretensão de ser filmado. Esta pretensão pode ser mais bem clarificada olhando para a situação histórica da escrita contemporânea. Durante séculos, a situação da escrita foi de tal ordem que a um reduzido número de escritores correspondia um número de vários milhares de leitores. No início do século passado verificou-se uma mudança nesta situação. Com a crescente expansão da imprensa, que proporcionava aos leitores cada vez mais órgãos locais políticos, religiosos, científicos e 20 A alteração que aqui se verifica, do tipo de exposição devido à reprodução técnica, também se observa na política. A crise actual das democracias burguesas inclui uma crise das condições relevantes para a exposição dos governantes. As democracias expõem o governante, em pessoa, perante representantes eleitos. O parlamento é o seu público! Com as inovações do equipamento de registo que permitem que o orador seja ouvido por um número ilimitado de pessoas enquanto profere o seu discurso, e pouco depois divulgar a sua imagem também para muitas pessoas, a exposição do homem político perante esse equipamento de registo, passa a primeiro plano. Tanto os parlamentos como os teatros estão a ficar desertos. A rádio e o cinema alteram não só a função do actor profissional, mas também, exactamente da mesma forma a função daqueles que, como o fazem os governantes, se apresentam perante aqueles meios de comunicação. O sentido desta alteração é o mesmo tanto no que respeita ao actor como ao governante, independentemente do facto das suas tarefas específicas serem diferentes. Promove a exposição de desempenhos controláveis e até transmissíveis, sob determinadas condições sociais. Isto resulta numa selecção, selecção perante o equipamento que faz com que a estrela ou o ditador sejam os vencedores. de fruição – como reconhecidamente se passa com a pintura. O convencional é apreciado acriticamente e o que é verdadeiramente novo é criticado com aversão. No cinema, coincidem as atitudes críticas e de fruição do público. Neste caso, a circunstância decisiva é que em nenhum outro lugar, como no cinema, a reacção maciça do público, constituída pela soma da reacção de cada de um dos indivíduos, é condicionada à partida pela audiência em massa. À medida que essas reacções se manifestam, o público controla-as. A comparação com a pintura continua a ser útil. A pintura sempre foi apresentada para ser vista por uma, ou algumas pessoas. A observação simultânea de pinturas, por parte de um grande público, como sucede no século XIX, é um sintoma precoce da crise da pintura que, não só através da fotografia, mas também de modo relativamente independente dela, foi desencadeada pela pretensão da obra de arte, a dirigir-se às massas. A pintura não está, pois, em condições de ser objecto de uma recepção colectiva simultânea, como sempre sucedeu com a arquitectura, outrora com a epopeia e actualmente com o cinema. E por pouco que esta circunstância, em si, nos permita tirar conclusões sobre o papel social da pintura, é certo que isso institui uma séria limitação num momento em que, devido a uma série de circunstâncias particulares, e de um modo que até certo ponto contradiz a sua natureza, ela se vê directamente confrontada com as massas. Nas igrejas e mosteiros medievais e nas cortes da nobreza, até finais do século XVIII, a recepção colectiva da pintura não se terá verificado simultaneamente, sendo transmitida de uma forma graduada e hierárquica. Na mudança que entretanto se verificou, está contida a expressão do conflito particular causado pelo envolvimento da pintura na reprodutibilidade técnica da imagem. Mas, embora fosse exibida em público, em galerias e salões, não houve meio que permitisse às massas organizar ou controlar a sua recepção23. Assim, exactamente o mesmo público que reage com uma atitude progressista a um filme grotesco, tem de reagir de forma reaccionária perante o surrealismo. XIII O que caracteriza o filme é não só a forma como o homem se apresenta perante o equipamento de registo, mas também a forma como, com a ajuda daquele, reproduz o seu meio ambiente. Um olhar sobre a psicologia do desempenho ilustra a capacidade de teste do equipamento. A psicanálise ilustra esse facto de outro modo. De facto, o cinema enriqueceu o nosso horizonte de percepção com métodos que podem ser ilustrados pela teoria freudiana. Há cinquenta anos um lapso numa conversa passava, mais ou menos, despercebido. Podia considerar-se uma excepção que tal lapso abrisse perspectivas profundas, numa conversa que parecia decorrer superficialmente. Desde "Psicopatologia da Vida Quotidiana", esse facto alterou-se. Esta obra isolou e, simultaneamente, tornou analisáveis coisas que, anteriormente, fluíam na ampla corrente do percepcionado. O cinema, em toda amplitude da percepção óptica, e agora também acústica, teve como consequência um aprofundamento semelhante da percepção. O reverso deste facto reside em que os desempenhos num filme são analisáveis mais exactamente e sob mais pontos de vista do que os desempenhos apresentados num quadro ou no palco. No que diz respeito à pintura, o que 23 Esta perspectiva pode parecer tosca, mas como mostra o grande teórico Leonardo, perspectivas toscas podem, sem dúvida, ser utilizadas ao serviço da sua época. Leonardo compara a pintura com a música, usando as seguintes palavras: "A pintura é superior à música porque não tem que morrer logo que lhe é dada vida, como sucede com a pobre música... A música que se esvai logo que surge é inferior à pintura que se tornou eterna com o uso do verniz." (Leonardo de Vinci: Frammenti letterarii e filosofici, citado por Fernand Baldensperger: Le raffermissement des tecniques dans Ia littérature occidentale de 1840, in: Revue de Littérature Comparée, XV/I, Paris 1935, pág. 79 - nota 1 -) permite uma melhor análise do desempenho apresentado num filme é a informação mais exacta sobre as situações que o cinema faculta. Relativamente ao palco, a maior capacidade de análise do desempenho apresentado no filme é condicionada pelo facto deste ser mais facilmente isolável nos seus elementos constituintes. O significado principal desta circunstância reside na tendência para promover a penetração mútua entre arte e ciência. De facto, num comportamento cuidadosamente preparado, em determinada situação – como um músculo num corpo – é quase impossível determinar em que reside o seu grande fascínio, se no seu valor artístico, se na possibilidade de um aproveitamento científico. Uma das funções revolucionárias do cinema será a de tornar reconhecíveis como idênticos os aproveitamentos artístico e científico da fotografia, até agora divergentes, na maioria dos casos24. Isto porque o cinema, através de grandes planos, do realce de pormenores escondidos em aspectos que nos são familiares, da exploração de ambientes banais com uma direcção genial objectiva, aumenta a compreensão das imposições que rege nossa existência e consegue assegurar-nos um campo de acção imenso e insuspeitado. As nossas tabernas, as ruas das grandes cidades, os nossos escritórios e quartos mobilados, as nossas estações ferroviárias e as fábricas, pareciam aprisionar-nos irremediavelmente. Chegou o cinema e fez explodir este mundo de prisões com a dinamite do décimo de segundo, de forma tal que agora viajamos calma e aventurosamente por entre os seus destroços espalhados. Com o grande plano aumenta-se o espaço, com o ralenti o movimento adquire novas dimensões. Uma ampliação não tem por única função tornar mais claro o que "sem isso" teria permanecido confuso, o mais importante sendo a revelação de estruturas de matéria inteiramente novas. Assim, também o ralenti não revela apenas motivos conhecidos em movimento, antes descobrindo nestes movimentos conhecidos outros, desconhecidos, "que longe de parecerem movimentos rápidos retardados, actuam como peculiarmente deslizantes, aéreos e supraterrenos"25. Assim se torna compreensível que a natureza da linguagem da câmara seja diferente da do olho humano. Diferente, principalmente, porque em vez de um espaço preenchido conscientemente pelo homem, surge um outro preenchido inconscientemente. Mesmo que seja comum observar, ainda que grosseiramente, o andar das pessoas, nada se sabe da sua atitude na fracção de segundo em que avançam um passo. Em geral, o acto de pegar num isqueiro ou numa colher é-nos familiar, mas mal sabemos o que se passa entre a mão e o metal ao efectuar esses gestos, para não falar de como neles actua a nossa flutuação de humor. Aqui, a câmara intervém com os seus meios auxiliares, os seus "mergulhos" e subidas, as suas interrupções e isolamentos, os seus alongamentos e acelerações, as suas ampliações e reduções. A câmara leva-nos ao inconsciente óptico, tal como a psicanálise ao inconsciente das pulsões. 24 Se procurarmos uma analogia para esta situação, depara-se-nos uma, muito elucidativa, na pintura renascentista. Também aqui enfrentamos uma arte, cujo incomparável desenvolvimento e significado se devem ao facto de ter integrado um determinado número de novas ciências ou, pelo menos, de novos dados da ciência. Ela reivindica a anatomia, a perspectiva, a matemática, a meteorologia e a teoria das cores. "Que poderia ser para nós mais distante”, escreve Valéry, "do que a estranha pretensão de Leonardo, para quem a pintura foi supremo objectivo e demonstração do conhecimento, de forma tal que tinha a convicção que a pintura requeria um saber universal, pelo que não se furtava a uma análise teórica, perante a qual, devido à sua profundidade e exactidão, hoje ficamos perplexos." (Paul Valéry: Pièces sur l’art, op. cit. pág. 191, "Autour de Corot".) 25 Rudolf Arnheim, op. cit., pag. 138. XIV Foi, desde sempre, uma das mais importantes tarefas da arte criar uma procura para cuja satisfação plena ainda não chegou a hora26. A história de qualquer forma de arte apresenta épocas críticas, em que determinada forma aspira a obter efeitos que só mais tarde, perante um novo padrão da técnica, podem ser facilmente obtidos, ou seja, numa nova forma de arte. As extravagâncias e excessos da arte que se manifestam principalmente em períodos ditos de decadência, surgem realmente das suas energias históricas mais ricas. Recentemente, tais barbarismos abundavam no dadaísmo. O seu impulso só agora se toma reconhecível: o dadaísmo tentava criar, através da pintura ou da literatura, os efeitos que hoje o público procura no cinema. Toda a criação pioneira de procura, fundamentalmente nova, ultrapassa o seu objectivo. O dadaísmo faz isso ao sacrificar os valores de mercado, tão importantes para o cinema, em favor de intenções mais significativas de que evidentemente não tinha consciência no contexto que aqui descrevemos. Os dadaístas atribuíam muito menor valor à possibilidade de aproveitamento mercantil das suas obras de arte do que à sua inutilidade enquanto objectos de imersão contemplativa. O princípio da degradação dos materiais não foi de somenos importância na sua tentativa de atingir aquela inutilidade. Os seus poemas são "uma salada de palavras" que contêm obscenidades e os detritos verbais que é possível conceber. Não é diferente o panorama das suas pinturas em que colam botões ou bilhetes de transportes. O que conseguiram, com estes meios, foi uma destruição irreverente da aura das suas criações, as quais, pelos meios da produção, imprimem o estigma de uma reprodução. Perante um quadro de Arp ou de um poema de August Stramm é impossível ter a mesma atitude de recolhimento ou de opinião que se tem perante um quadro de Derain ou um poema de Rilke. Ao recolhimento, de que a degenerescência da burguesia fez uma escola de comportamento associal, contrapõe-se a distracção como uma espécie de jogo de comportamento social27. As manifestações dadaistas asseguravam de facto uma distracção intensa colocando a obra de arte no centro de um escândalo. Essa acção tinha que satisfazer, pelo menos, uma exigência: provocar o escândalo público. 26 "A obra de arte", diz André Breton, "só tem valor na medida em que vibrem nela os reflexos do futuro." De facto, qualquer forma de arte desenvolvida situa-se no ponto de intersecção de três linhas de desenvolvimento. A técnica, em primeiro lugar, trabalha no sentido de uma determinada forma de arte. Antes de surgir o filme, havia aqueles livrinhos de fotografias cujas imagens, através da pressão do polegar, passavam muito depressa, para o observador, um combate de boxe, ou um jogo de ténis; havia as máquinas dos bazares que, dando uma volta à manivela, mostravam sequências de imagens. - Em segundo lugar, as formas de arte tradicionais, em determinadas fases do seu desenvolvimento, esforçaram-se por obter efeitos que, posteriormente, foram facilmente obtidos por novas formas de arte. Antes do cinema se impor, os dadaístas procuraram, através dos seus espectáculos, levar ao público um movimento que Chaplin provocou com toda a naturalidade. - Em terceiro lugar, mudanças sociais, que frequentemente passam despercebidas, suscitam uma mudança na recepção, que beneficia novas formas de arte. Antes do cinema ter começado a criar o seu público, já o público se reunia no 'Kaiserpanorama' para a recepção de imagens (que tinham deixado de ser imóveis). O público ficava em frente de um biombo no qual estavam instalados estereosc6pios atribuídos a cada um dos espectadores. Nestes estereoscópios surgiam imagens, uma a uma, que persistiam um instante para depois dar lugar às seguintes. Edison ainda teve que trabalhar com meios semelhantes (antes de se conhecer a tela de cinema e o método da projecção), ao apresentar as primeiras fitas de cinema a um público pouco numeroso que fixava o olhar num aparelho em que se desenrolava a sucessão de imagens. - Aliás, na instalação do 'Kaiserpanorama' é expressa muito claramente uma dialéctica do desenvolvimento. Pouco tempo antes do cinema ter tornado colectivo o visionamento de imagens, antes do estereoscópio, surge o visionamento individual, rapidamente ultrapassado, com a mesma intensidade que outrora tinha suscitado a contemplação da imagem de Deus pelo padre, na sua cela. 27 O arquétipo teológico deste recolhimento é a consciência de estar só com o seu Deus. Nesta consciência, nas épocas áureas da burguesia é reforçada a liberdade de sacudir a tutela da Igreja. Nas épocas da sua decadência, a mesma consciência teve que ter em consideração a tendência oculta de retirar à comunidade as energias necessárias a cada um no contacto com o seu Deus. EPÍLOGO A crescente proletarização do homem contemporâneo e a crescente formação de massas são duas faces da mesma medalha. O fascismo tenta organizar as massas recentemente proletarizadas, sem tocar nas relações de propriedade que estas pretendem eliminar. O fascismo vê a sua salvação no facto de permitir às massas que se exprimam mas, de modo nenhum, que exerçam os seus direitos32. 1 As massas têm direito a exigir uma alteração das relações de propriedade; o fascismo pretende dar-lhes expressão, conservando essas relações. Por conseguinte, o fascismo acaba por introduzir uma estetização na vida politica. À violência sobre as massas a quem, através do culto de um "führer", o fascismo impõe a subjugação, corresponde a violência que sofre um aparelho utilizado ao serviço da produção de valores de culto. Todos os esforços para introduzir uma estética na política culminam num ponto: a guerra. A guerra, e só a guerra, torna possível fazer de movimentos de massas em grande escala objectivo, mantendo as relações de propriedade tradicionais. Do ponto de vista político, assim se formula a situação. Do ponto de vista da técnica, formula-se da seguinte forma: só a guerra possibilita a mobilização dos actuais meios técnicos mantendo as relações de propriedade. É evidente que a apoteose fascista da guerra não utiliza este argumento. Apesar disso, vale a pena debruçarmo-nos sobre ele. No manifesto Marinetti, sobre a guerra colonial etíope, diz-se: "Há vinte e sete anos que nós, futuristas, nos manifestamos contra o facto de se designar a guerra com anti estética... por conseguinte declaramos:... a guerra é bela porque fundamenta o domínio homem sobre a maquinaria subjugada, graças às máscaras de gás, aos megafones assustadores, aos lança-chamas e tanques. A guerra é bela porque inaugura a sonhada metalização do corpo humano. A guerra é bela porque enriquece um prado florescente com as orquídeas de fogo das metralhadoras. A guerra é bela porque reúne numa sinfonia o fogo das espingardas, dos canhões, dos cessar-fogo, os perfumes e os odores de putrefacção. A guerra é bela porque cria novas arquitecturas, como a dos grandes tanques, a da geometria de aviões em formação, a das espirais de fumo de aldeias a arder e muitas outras... poetas e artistas do futurismo... lembrai-vos destes fundamentos de uma estética da guerra, para que a vossa luta possa iluminar uma nova poesia e uma nova escultura!33" 32 Neste aspecto, considerando principalmente as "actualidades da semana", cujo carácter propagandístico não pode ser sobrestimado, há uma circunstância técnica relevante. À reprodução maciça corresponde principalmente a reprodução das massas. Nos grandes desfiles festivos, em reuniões gigantescas, em espectáculos de massas de tipo desportivo e na guerra, todas elas hoje captadas por equipamento visual e sonoro, as massas revêem- se a si próprias. Este processo, cuja amplitude não necessita de ser acentuada, está intimamente ligado ao desenvolvimento das técnicas de reprodução e registo. Os movimentos de massas apresentam-se mais nitidamente, em geral, às aparelhagens do que ao olhar. Enquadramentos de centenas de milhares de pessoas apreendem-se melhor de uma perspectiva aérea. E mesmo que esta perspectiva também seja acessível ao olho humano, a imagem obtida pelo olhar não é passível da reprodução que a fotografia possibilita. Quer isto dizer que os movimentos de massas, incluindo a guerra, representam uma forma particular de correspondência do comportamento humano à técnica dos aparelhos. 33 Cit. La Stampa Torino. Este manifesto tem a vantagem de ser claro. A sua forma de colocar as questões, merece ser retomada pelo dialéctico. A estética da guerra actual apresenta-se-lhe da seguinte forma: se o aproveitamento natural das forças produtivas for travado pelo sistema de propriedade, então o aumento de recursos técnicos, de ritmo, de fontes de energia, será impelido a uma valorização não natural. É o que sucede na guerra que, com as suas destruições, demonstra que a sociedade não tinha maturidade suficiente para incorporar a técnica como órgão seu, e de que a técnica não estava suficientemente desenvolvida para dominar as suas forças sociais elementares. A guerra imperialista é determinada, nos seus mais terríveis aspectos, pela discrepância entre os poderosos meios de produção e o seu aproveitamento inadequado no processo produtivo (por outras palavras, pelo desemprego e escassez de mercados). A guerra imperialista é uma revolta da técnica que reclama sob a forma de "material humano" aquilo que a sociedade lhe retirou como material natural. Em vez de canalizar rios, conduz a corrente humana ao leito das suas trincheiras, em vez de lançar sementes dos seus aviões, lança bombas incendiárias sobre cidades e, como a guerra do gás, encontrou um meio de aniquilar a aura, de uma nova forma. "Fiat ars – pereat mundus"34, diz o fascismo e, como Marinetti reconhece, espera que a guerra forneça a satisfação artística da percepção dos sentidos alterados pela técnica. Isto é, evidentemente, a consumação da "l'art pour l'art”. A humanidade que, outrora, com Homero, era um objecto de contemplação para os deuses no Olimpo, é agora objecto de auto contemplação. A sua auto-alienação atingiu um grau tal que lhe permite assistir à sua própria destruição, como a um prazer estético de primeiro plano. É isto o que se passa com a estética da política, praticada pelo fascismo. O comunismo responde-lhe com a politização da arte. 34 "Que a arte se realize, mesmo que o mundo deva perecer."
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